Durante a visita anual à minha família em Natal me dei conta de algo que, por mais estranho que possa parecer, até então não tinha percebido: como é difícil ser vegano em uma casa onde todos são onívoros. Assim que me tornei vegana decidi abandonar a linguística e trabalhar com culinária vegetal, logo comecei a passar a maior parte do meu tempo na cozinha, mesmo durante as férias. Aonde quer que eu fosse, eu levava meu kit de sobrevivência e ocupava a cozinha de quem estivesse me hospedando. Mas esse ano decidi que a prioridade era passar o máximo de tempo possível com a família e tirei férias da cozinha pela primeira vez. Acabei preparando alguns pratos, como a torta de chocolate, banana e amendoim que fiz pra minha sobrinha, mas a maioria das refeições que comi foi preparada por outra pessoa (mãe, irmã, prima, tia…). Isso mudou tudo. É fácil ser vegano quando sua maior diversão é criar pratos vegetais deliciosos, mas quando você depende de cozinheiros onívoros pra preparar suas refeições a coisa fica bem mais complicada. Desde então fiquei matutando sobre a questão e resolvi fazer um mini guia de sobrevivência pros veganos que moram com famílias onívoras e não têm tempo (nem intimidade suficiente com as panelas) pra preparar todas as suas refeições.
Como ser vegano e não morrer de fome, nem ficar desnutrido, em uma família onívora
1- Converse com a sua família e exponha as razões que te levaram a escolher o veganismo. Explique que essa decisão é importante pra você e o quanto você ficaria feliz com a ajuda deles. Sem o apoio dos seus familiares será muito difícil seguir em frente, pelo menos enquanto vocês morarem embaixo do mesmo teto. Um conselho: não acuse seus familiares por serem onívoros. Respeite a opção deles, se quiser que eles respeitem a sua.
2- Peça pro(a) cozinheiro(a) da casa preparar os pratos de base, como arroz, feijão e salada, veganos. Assim você tem a garantia de sempre ter o que colocar na barriga na hora do almoço.
3- Se tiver um tempinho antes de começar a comer, faça uma verdura rápida pra complementar a refeição. Couve ou brócolis refogados, por exemplo, levam minutos pra ficar prontos e aumentam a quantidade de proteína e fibra do seu prato.
4- Reserve um tempinho no fim de semana pra preparar pratos que possam ser congelados em porções individuais e que quebrarão um galhão durante a semana. Bolinhos e burgers complementam o almoço e, dentro de um pão, formam um ótimo jantar. Uma panela de sopa garante seu jantar durante vários dias.
5- Cozinhe uma quantidade grande de grão de bico e/ou lentilha na água e sal, separe porções individuais (sem a água) e congele. Esses grãos podem incrementar uma salada, entrar na composição de uma sopa de legumes, se transformar em prato principal ou em pasta pra passar no pão.
6- Resista à tentação de comer soja todo dia (ou, pior ainda, em todas as refeições). Eu sei que é prático, barato e rico em proteína, mas “carne” de soja é um alimento altamente processado e, com tanta variedade de alimentos vegetais, seria uma pena só comer um. Seu corpo precisa das vitaminas/minerais encontrados no resto do mundo vegetal.
7- Não é preciso gastar todo o seu dinheiro, ou o dos seus pais, com hambúrguer de soja congelado, salsicha vegetal enlatada e outras pseudo-comidas industrializadas. Só porque é vegano não significa que seja bom pra você. Reconheço a praticidade dessas preparações, mas elas são caras, pobres em nutrientes e cheias de ingredientes artificiais.
8- Eu já falei sobre isso na seção “Dicas pra se tornar vegano”, mas vou repetir: aprenda a cozinhar, pelo menos o necessário pra fazer pratos simples, mas nutritivos e variados. Talvez sua família ponha deliciosos pratos veganos na mesa diariamente, mas se esse não for o caso você terá que aprender a se virar na cozinha se não quiser passar o resto dos seus dias comendo feijão com arroz e pão com soja.
9- Sempre que puder, se ofereça pra preparar um prato vegano pra toda a família. Os parentes mais resistentes podem até cozinhar algo de origem animal pra acompanhar, mas pelo menos eles terão provado algo vegetal e saboroso e você poderá degustar uma refeição mais caprichada. Comer fica ainda mais gostoso quando a comida é dividida com as pessoas que amamos.
10- Às vezes conflitos são inevitáveis, mas tente manter a harmonia no seu lar. Criticar o regime da família ou afirmar sua superioridade moral diante dos carnívoros não vai fazer bem nenhum a você, muito menos ao veganismo. O fato de defender uma causa justa não te dá o direito de ter uma postura agressiva com os outros. Seja a mudança que você quer ver no mundo, como aconselhou Gandhi, e seu exemplo terá muito mais chances de inspirar as pessoas, incluindo seus parentes.
Gostaria de acrescentar mais uma coisinha, não exatamente relacionada com comida. Respeite as limitações das pessoas. Eu não aconselho ninguém a pregar o veganismo pra avó de 85 anos, nem expor a superioridade do regime vegetal pro tio que mora no interior e que criou galinhas a vida inteira. Se me fazem perguntas sobre o assunto, se sinto interesse nas pessoas, converso sem problemas sobe as razões que me levaram a adotar o veganismo, mas não perco o meu latim tentando convencer ninguém. Acho importante levar conhecimento àqueles que precisam, e pode ter certeza que não perco uma ocasião de militar a favor do veganismo. Porém, pro seu ativismo ser eficiente é preciso ter inteligência pra reconhecer o momento oportuno e sensibilidade pra saber se o outro está pronto pra ouvir aquilo. É pouco provável encontrar essas duas condições reunidas durante o almoço de aniversário do seu pai ou o jantar de bodas de prata da sua madrinha. Às vezes a melhor coisa a fazer é esquecer os discursos e aproveitar a companhia da família. Se for ao redor de uma mesa farta, com pelo menos um prato vegano delicioso, melhor ainda.
Update: Quando escrevi o post ontem esqueci de colocar as legendas das fotos que ilustram o texto.
Foto 1- O meu primeiro (e único) “thanksgiving”, na casa da mãe de uma amiga de Anne, em Nova York. Eu levei um prato principal vegano e a anfitriã foi extremamente generosa e preparou alguns acompanhamentos veganos e até um bolo de chocolate totalmente vegetal.
Foto 2- Almoço na casa de uma amiga de Anne, no interior da França. Ela, o marido e o filho são onívoros responsáveis (aqueles que, por razões de saúde e ecológicas, só comem carne de vez em quando) e fizeram questão de preparar um almoço 100% vegano pra nós. Até compraram três sorbets (sorvetes de frutas à base de água) diferentes pra sobremesa.
Foto 3- Essa foi feita por Anne, durante o ano novo na França, alguns anos atrás. A família dela me pediu pra preparar o jantar todo vegano, da entrada à sobremesa. Todo mundo ajudou na preparação e eles adoraram tudo. No primeiro plano dá pra ver o prato principal: canelones recheados com abóbora, creme de castanha e cebola caramelizada.
Dicas maravilhosas que revelam mais uma vez a delicadeza de suas intenções e o respeito ao próximo. Admiro sua maneira de pensar e tenho certeza que vivemos num planeta amigável e lindo por causa de pessoas como você. Beijos! Mariangela.
Que bom que você gostou do post, Mariangela. Respeito só funciona se for mútuo. Não posso esperar que me respeitem se eu não respeito os outros. Sou totalmente contra ativismo agressivo, acho contraprodutivo. Por mais difícil que seja pra mim hoje aceitar a morte de seres indefesos pelo simples prazer gastronômico, tento lembrar sempre que durante a maior parte da minha vida (até poucos anos atrás) eu fazia parte desse grupo. Não me sinto superior à ninguém, só sortuda por ter enxergado o caminho certo.
Belíssimo post. Eu tenho a sorte de ter um cozinheiro de mão cheia em casa que já foi vegetariano e faz deliciosos pratos, meu querido pai. Esse post me lembrou que preciso voltar pra cozinha, faz quase um mês que não pratico a arte de cozinhar.
“Seja a mudança que você quer ver no mundo.” Lindo.
Que sorte a sua, moça! Você deixou muita gente com inveja depois desse comentário. A frase que você citou é de Gandhi e é o meu mantra:-)
Lindo post, Sandra!!!
Concordo plenamente com vc, e apesar de nem sempre ser fácil enfrentar com paciência e respeito algumas “saias justas”, vale muito a pena respirar e “mantrar” essa frase do Gandhi, eu tb a adoro!!! E o melhor de tudo, é que qdo nos propomos a uma atitude de amorosidade e respeito, vai ficando mais fácil enfrentar os conflitos, familiares ou com amigos, né??
Admiro muito sua postura, tenho buscado isso pra minha vida tb.
Bjs, gratidão por partilhas tão belas!!
Concordo plenamente com você, Edith. Obrigada pelo comentário.
Nossa, muito obrigada pela postagem, um presente de Natal antecipado! 😉 Sou uma nova vegana e o mais difícil, pelo menos no começo, é resistir às pressões externas e se esforçar pra não ser o “chato” do pedaço. hehehe A sua postura é um exemplo a ser seguido. Nessa minha recente caminhada, seu blog foi o meu maior achado. Muita informação e muitas receitas que parecem deliciosas! Vou testar várias! Muito obrigada novamente por compartilhar tudo isso conosco. Beijos de Florianópolis, SC.
Fico feliz em saber que meu texto será útil pra você, Tatiana. Acho muito importante se esforçar pra não ser o chato de plantão, o veganismo não precisa de propaganda negativa da parte dos veganos, afinal já tem tanta gente que pensa/prega coisas negativas sobre esse estilo de vida… Boa sorte na sua jornada e espero que algumas das minhas receitas cheguem na sua mesa:-) Abraços da terra santa.
é realmente bem dificil sem vegan em uma familia que nem sequer procura entender sobre isso ! obrigada pelas dicas e pelo blog !
Eu é que agradeço por ler o blog.
Cara Sandra,
por acaso encontrei e li seu blog e além de muito rico na sua forma de expressar é muito consciente e objetivo nas informações. Conheço muito pouco sobre o veganismo e há poucos dias assisti a uma entrevista onde uma moça vegana comentou sobre usarem uns “besourinhos” torrados pra obter coloração nos sucos de uva e goiaba. (Qdo comentei com minhas filhas,kkkkkk, ninguém mais quer tomar sucos de uva,kkkk. Pra mim foi ótimo pois era uma luta pra que elas evitassem estes sucos prontos devido ao açúcar e conservantes).
Apesar de não comer carnes há muito (devido a enxaquecas) não sou vegetariana e nem vegana porém me identifiquei muito com suas receitas visuais do Natal. Farei uma leitura no seu blog e sobre o Veganismo pra adaptar e iniciar este modo de vida, se é que posso dizer assim.
Obrigada pelo incentivo e
até sempre,
Jane
Jane, você sempre poderá contar com meu incentivo e apoio. Precisando de ajuda nessa jornada, é só me escrever.
Era o que eu precisava. Estou numa dificil transição entre o vegetarianismo e o veganismo. Muito dificil eu diria, já que o tempo e a grana são escassos.
Eu estava sim recorrendo a salsicha enlatada.
Ah se quiser fazer um post sobre “como viver sem queijo” u agradeço, rsrs.
Muito Obrigada.
Joana, que a força verde esteja com você:-) Você já viu minha receita de queijo de castanha fermentado? Me ajudou muito a esquecer os queijos de origem animal.
será que vc poderia dar a receita desses canelones recheados com abóbora? fiquei muito interessada em faze-los, quanto ao creme de castanhas eu já peguei a receita no seu blog, maravilhoso!ah! parabéns por suas explicações, são muito claras.
Posso, sim, Suzana. Você só terá que esperar um pouco, pois atualmente não tenho forno:( Mas como é época de abóbora por aqui, vou aproveitar pra tirar essa receita da gaveta.
espero sim, muito ansiosa, pois amo canellones e aboboras, os dois juntos devem ser d+.
Olá de Portugal!
Muito, MUITO obrigado por ser uma voz positiva no diálogo entre vegans e omnívoros.
A verdade é que desde os meus anos de adolescente que quero tornar-me vegetariana ou vegan, mas para além de ser difícil, como todos nós sabemos, o discurso utilizado pelos vegans que se faziam ouvir não só era extremamente moralizante, como também áspero, arrogante, autoritário, e sempre passivo-agressivo. Como se os vegans olhassem para o resto das pessoas como se fossem estúpidas por não partilharem os mesmos valores. Digamos que demorou um bom bocado até ganhar coragem para visitar sites vegan, e perceber que decidir tornar-me vegan não queria dizer que teria de ser como os que me desencorajaram a tentar seguir este estilo de vida durante pelo menos 14 anos.
É engraçado, porque mesmo hoje, a falar desta decisão com o meu irmão (e indignada com pelo menos um site que me apareceu na mesma pesquisa que me trouxe a este), fiz alusão a essa mesma citação do Gandhi: posso tornar-me vegan e continuar a ser a mesma pessoa bem-disposta e educada que sou agora, ser alguém que possa inspirar outros omnívoros, em vez de lhes andar a azucrinar a cabeça de cada vez que comem carne “porque não é eticamente correcto”.
Lutar por uma causa, por melhor que seja, não nos dá carta branca para sermos indelicados ou rudes com ninguém, aliás, é contra-produtivo e prejudica toda a gente. Não diz o povo que se apanham mais moscas com mel do que com vinagre? (sim, eu sei, o mel não é vegan, etc, etc. É só uma expressão =p)
Desejos de um bom Ano Novo e boa continuação do blog!
Muito obrigada, Ana. Fico muito feliz por você ter encontrado o meu blog. E te desejo um ótimo ano novo também 🙂