Continuando a série “Histórias palestinas”, gostaria de apresentar uma amiga minha muito querida.
Khoulud Ayyad tem 32 anos e mora no campo de refugiados de Aida, na região de Belém, com seu marido Ayman e quatro filhos. Sua família é de Ras Abu Ammar, um vilarejo que fica a 14 quilômetros de Jerusalém. Os 719 habitantes de Ras Abu Ammar foram expulsos pelas tropas do recém-criado estado de Israel no dia 21 de outubro de 1948 e o vilarejo foi completamente destruído. Conheci Khoulud em um centro cultural no campo de Aida assim que me mudei pra cá. Trabalhamos um tempo juntas e logo nos tornamos amigas. Ela é uma das pessoas mais fortes que já encontrei e sua história merece ser contada.
“A vida no campo de refugiados nunca foi fácil, mas lembro de um período, quando eu era criança, que as coisas eram ainda piores. Durante a primeira intifada (entre 1987 e 1993) os soldados israelenses entravam no campo o tempo todo e muitas pessoas foram assassinadas. Todo mundo tinha medo de sair de casa e levar um tiro. Lembro que um dia, eu devia ter uns 8 anos, vi dois jovens correndo no campo. Pensei que os soldados estavam os perseguindo então abri a porta de casa e comecei a agitar os braços, chamando eles pra se esconderem ali. Quando meu avô viu a cena me colocou pra dentro e fechou a porta imediatamente. Depois explicou que aqueles jovens não eram palestinos fugindo de soldados israelenses e sim soldados israelenses a paisana correndo atrás de palestinos. Durante a primeira intifada muitos soldados entraram nos campos e nas cidades à paisana pra prender palestinos e ainda continuam fazendo isso.
A adolescência, e as formas de mulher, chegaram muito rápido pra mim e aos 12 anos recebi minha primeira proposta de casamento. A situação econômica era muito difícil e as pessoas se casavam mais jovens do que hoje em dia. Na mesma época um vizinho que era muito próximo da nossa família estava pensando em se casar e quando minha avó disse que eu tinha recebido uma proposta, ele perguntou se também podia pedir minha mão a meu pai. Esse vizinho era quinze anos mais velho do que eu e tinha me pegado no colo quando eu era bebê. Desde criancinha eu nutria uma paixão secreta por ele e quando falaram pra eu escolher um dos dois pretendentes eu não hesitei um segundo! Ayman foi preso pela polícia israelense pouco tempo depois e eu tive que esperar ele sair da cadeia pra fazer a festa de noivado. Como eu era jovem demais, esperamos dois anos antes de casar.
As pessoas sentem pena de mim por eu ter me casado aos 14 anos, mas a verdade é que eu casei com o homem que amava e nunca tive nenhum arrependimento. Eu era a melhor aluna da sala, mas depois do casamento abandonei a escola. Eu tinha que cuidar do meu marido, da nossa casa e também dos meus sogros. Por causa da ocupação militar israelense a economia estava parada e depois de ter sido preso várias vezes pelos israelenses Ayman não conseguia arrumar emprego. Aos 15 anos me tornei mãe de gêmeas. Minha mãe, que tinha me tido aos 14 anos, foi avó aos 29! Poucos meses depois, uma das gêmeas morreu e comecei a me sentir muito triste. Eu via minhas colegas de escola passar em frente à minha casa e me olhar com um ar de superioridade, como se elas valessem mais do que eu. Eu sentia falta da escola, dos meus pais, do tempo em que eu ainda podia brincar de boneca e não tinha tantas responsabilidades.
Alguns anos mais tarde tive meu segundo filho, seguido do terceiro. Meu marido continuava desempregado e nós morávamos, com nossos três filhos, em um pequeno cômodo nos fundos da casa dos meus sogros. Tentei voltar a estudar sozinha algumas vezes, mas as obrigações, a pressão da família e o cansaço sempre me faziam desistir. Quando meu marido finalmente conseguiu um emprego fixo, como motorista de ônibus, começamos a economizar dinheiro pra construir nossa casinha, em cima da casa dos pais deles. Embora feliz pelo meu marido, eu me sentia muito deprimida, enterrada cada vez mais nas obrigações domésticas. De tanto ver o olhar de desprezo das minhas antigas colegas de escola acabei me convencendo de que eu não tinha valor nenhum.
No dia em que nos mudamos pra nossa nova casa, que era pequena, mas que pelo menos tinha um quarto, sala, cozinha e banheiro, me debrucei na janela e fiquei olhando a rua lá embaixo. Eu tinha 24 anos e ainda sonhava em terminar meus estudos, mas meu sonho parecia cada vez mais distante. Ayman veio pro meu lado e vendo minha tristeza disse: ‘Quero que você volte a estudar. Vai ser difícil, as pessoas vão falar que é tarde demais, que você deveria estar em casa cuidando dos filhos, mas eu quero que você ignore todos os comentários que elas possam fazer e siga em frente. Eu te darei todo o apoio que você precisar.’ No dia seguinte, dez anos depois de ter abandonado a escola, eu voltei a estudar. Fazia tanto tempo que eu não pegava em um lápis que tive dificuldades pra escrever no início. Comecei um supletivo intensivo, que me permitiria terminar o ginásio e o segundo grau em apenas um ano, e estudava o tempo todo pra recuperar o tempo perdido. Começaram a falar muito de mim, como meu marido tinha previsto, mas isso não me atingia mais. Ayman estava do meu lado e eu não ia deixar mais nada impedir meus planos de se realizarem.
Poucos dias antes das provas de final de ano (“taugihi”, equivalente do nosso vestibular) meu cunhado Ali foi assassinado por um soldado israelense. Naquele dia os soldados tinham cercado o campo e atiravam pra todos os lados. Ali foi prestar socorro a alguns feridos que estavam na rua quando um soldado o viu e atirou pra matar. Meu marido e toda a sua família ficaram devastados e de repente, no meio de tanta dor, injustiça e revolta, terminar meus estudos parecia algo tão sem importância. Eu segui em frente, mas sem a convicção do começo do ano. Ninguém mais acreditava que eu seria capaz de completar o supletivo e no dia seguinte às provas finais meus parentes começaram a me visitar pra dizer que eu não deveria ficar triste quando recebesse os resultados, que eu tinha me esforçado, mas esse negócio de estudar já não era mais pra mim. Qual não foi a surpresa deles quando cheguei em casa com um papel da escola dizendo não somente que eu tinha passado nas provas, mas que minhas notas tinham sido as melhores de toda a Cisjordânia naquele ano! Eu não cabia em mim de felicidade e dois jornais de Belém publicaram artigos sobre minha proeza. (Khoulud guarda até hoje os jornais e me mostrou um deles onde tinha escrito: ‘Depois de dez anos sem estudar, uma mulher do campo de Aida passa em primeiro lugar no taugihi’). Graças às minhas excelentes notas a Universidade Americana de Jenine (no norte da Cisjordânia) me ofereceu uma bolsa de estudos. Como eu não queria ficar longe da minha família, tive que recusar a oferta. Felizmente a Universidade de Belém também me ofereceu uma bolsa de estudos e pude realizar o maior sonho da minha vida: fazer faculdade.
Comecei a estudar Língua e Literatura Inglesa e assim que terminei o curso consegui um emprego de professora. Eu estava grávida do meu quarto filho quando duas amigas francesas, Anne e Caroline, que conheciam minha vontade de aprender, me perguntaram se eu gostaria de fazer um mestrado. Respondi que sim, mas que meu salário de professora, mesmo junto com o salário de motorista de Ayman, não me permitia ir tão longe (na Palestina só existem universidades particulares e o custo de um curso superior ou mestrado são bastante elevados). Elas me ajudaram a preparar uma carta onde eu contava minha história, que enviamos em seguida à algumas ONGs européias que financiam a educação de mulheres em países pobres. No dia que dei a luz à minha caçula, recebi o telefonema de uma associação belga dizendo que eles estavam dispostos a custear meu mestrado.
Os anos de mestrado foram os mais difíceis da minha vida. Eu trabalhava das 8 às 14 horas e como a escola fica em um vilarejo um pouco distante de Belém, eu saía de casa às seis e meia da manhã e só voltava depois das três da tarde. Minha mãe cuidava do bebê enquanto eu trabalhava e na volta da escola eu passava pela casa dela pra pegá-lo. Chegando em casa eu tinha que preparar comida pras crianças, ajudá-las a fazer a lição, limpar a casa… tudo em poucas horas. Às cinco da tarde Ayman chegava do trabalho e eu saía pra universidade, onde eu ia três vezes por semana pra assistir às aulas do mestrado. Eu voltava pra casa de noite e depois de dar banho no bebê, fazer o jantar e colocar as crianças pra dormir eu tinha que preparar a aula dos meus alunos e estudar pro mestrado. Eu só ia dormir às duas da manhã e no dia seguinte me levantava às cinco pra preparar o café das crianças, deixar as grandes na escola e o bebê na casa de minha mãe, antes de ir pro centro de Belém pegar o ônibus que me levaria pro trabalho. Às vezes, por causa dos check points (barragens militares israelenses dentro dos territórios palestinos, onde os soldados controlam a identidade dos palestinos e decidem quem pode ou não passar), a viagem que podia ser feita em poucos minutos levava mais de uma hora. Eu só tinha um dia de folga por semana e aproveitava pra fazer pesquisas e escrever minha dissertação. Até hoje quando penso no meu mestrado me pergunto como consegui ir até o final. Se antes de ter começado alguém me dissesse que eu teria que enfrentar tudo aquilo, eu teria dito que nunca seria capaz de passar por cima dessas dificuldades. Mas consegui. Quando recebi meu diploma de mestrado ano passado Ayman fez uma grande festa e chamou toda a família. Ele trouxe um bolo imenso, com minha foto colada na cobertura e tudo, enquadrou meu diploma e pregou na parede da sala. Ele estava tão orgulhoso de mim! Ayman nunca fez faculdade e hoje me olha cheio de admiração.
Nossa vida mudou muito. A ocupação israelense continua e os check points aumentam a cada ano. O muro construído por Israel passa ao lado do campo e roubou mais um pedaço das nossas terras. Ainda não temos o direito de entrar em Jerusalém. O exército ainda invade o campo semanalmente. Perdi a conta do número de vezes que os soldados entraram na minha casa no meio da noite, nos colocaram pra fora e nos deixaram esperando no frio, às vezes embaixo de chuva, durante horas, sem razão nenhuma. É sempre mais difícil quando você tem crianças pequenas e é obrigada a tirá-las da cama porque os soldados estão gritando no seu ouvido e quebrando os seus móveis. Numa noite muito fria fiquei com tanta pena de colocar meus filhos, tão pequenininhos, na rua que disse aos soldados que não ia sair de casa coisa nenhuma, mas eles nos obrigaram a sair e fiquei horas em pé, com o bebê nos braços e os outros chorando agarrados às minhas pernas, sentindo a dor terrível que é não poder proteger os próprios filhos. Nossos dias são tão duros e de noite não temos o direito de colocar a cabeça no travesseiro e descansar porque os soldados israelenses invadem nossa casa, nosso quarto, nosso sono… E depois eles dizem que somos nós os terroristas! Mas a gente continua lutando. Graças aos nossos esforços, reformamos nossa casa e pudemos comprar móveis melhores. Continuo trabalhando como professora de Inglês e Ayman ainda é motorista de ônibus. Nossa caçula vai fazer quatro anos em breve e já posso pensar no meu próximo objetivo: fazer doutorado. Só falta encontrar uma organização que queira me ajudar a realizar mais esse sonho.”
Khoulud sempre me recebeu, independente do quão cansada e ocupada estivesse, com um grande sorriso no rosto e um copo de chá na mão. Nos conhecemos há quatro anos e nunca, nunca escutei ela reclamar, somente agradecer as oportunidades que a vida ofereceu e o apoio incondicional do seu marido. Sua determinação me inspira e minha admiração por ela é imensa. Vi várias pessoas ficarem impressionadíssimas com a escolha de vida que fiz, ter deixado pra trás um mestrado em Paris pra ir morar na Palestina e trabalhar em um campo de refugiados, declarando que sou muito corajosa. Quando isso acontece eu agradeço o elogio, embora sinta que não o mereço, mas só consigo pensar em uma coisa: “Ah, se vocês conhecessem Khoulud…”
Gente, fiquei de olho na foto das comidas que ela fez e me deu água na boca, viu? Ô mulher de fibra, essa Khoulud. Eu reclamo tanto da minha vida…
Eu fico imaginando a vida nesses campos de refugiados e simplesmente não consigo entender como as coisas funcionam, como as pessoas conseguem viver num lugar assim, em suspenso, provisório, cheio de violência gratuita.
Meus irmãozinhos palestinos têm minha profunda admiração.
Sou estudante de Jornalismo e estava pesquisando sobre a questão da Palestina pois, coincidentemente, tenho amigos palestinos e é com eles com quem vou fazer uma entrevista neste próximo final de semana. Felizmente “esbarrei” nessa matéria sobre a Khoulud e fiquei extremamente emocionada e me sentindo a pessoa mais “mal agradecida” do mundo quando reclamo dos meus pequenos problemas! Realmente, a Khoulud é uma mulher de fibra, muito corajosa, dedicada, inteligente, e merece servir de exemplo à todas as mulheres e pessoas no geral, que por acaso do destino algum dia venham à duvidar de seus sonhos. Desejo de coração, muita felicidade, amor, sucesso, prosperidade e saúde, à Khoulud, Ayman e seus quatro filhos!!!
Gabriela, obrigada pelo comentário. E vou passar sua mensagem pra Khoulud na próxima vez que visita-la.
Tiveram momentos, lendo o post, que quase chorei…é “engraçado” ver pessoas que passam por tanta dificuldade, que como ela, vivem em constante perigo e injustiça e ainda assim, agradecem o que possuem e são felizes.
E eu só reclamo, dá atpe vergonha!
Que história emocionante! Gostei de ver o empenho do esposo em realizar o sonho da esposa! Isso é raro hoje em dia.
Belíssima história.
Realmente torço para que ela e seus familiares possa viver em paz, em sua nação, em seu país, orgulhosos de suas conquistas.
Que história! Essa mulher realmente merece toda nossa admiração. Nem eu estou acreditando que ela conseguiu criar 4 filhos, trabalhar e fazer mestrado. Esse tipo de história nos faz refletir quando reclamamos da vida porque trabalhamos e estudamos… Eu me sinto super cansada trabalhando e estudando, mas vejo que meus esforços não chegam nem aos pés de Khoulud. Com certeza essa é a motivação que eu precisava para continuar batalhando!
Tirando a história de coragem de Khoulud, eu fico também muito triste com toda a injustiça e violência que está ocorrendo nesta terra tão linda. É realmente um absurdo o que acontece por lá…. Parabéns Sandra por seu trabalho aí no campo de refugiados e pelos seus esforços em minimizar o sofrimento dos palestinos!
mesmo com tanta dor tentando apagar a beleza das coisas… como são bonitas essas histórias!
Nossa Sandra, chorei litros…
Sandra, fiquei muito feliz de conhecer Khoulud. A história da vida dela é um exemplo de força, de maturidade:casar com 14 anos com o amor de sua vida e tendo a certeza disso é incrível! Fiquei emocionada com o amor do marido dela, é muito raro isso acontecer, o apoio e o orgulho dele, mesmo com a diferença de idades é de admirar! O empenho de Khoulud em concretizar o seu sonho é um exemplo para todos nós. Agora penso que reclamo tantas vezes por pura besteira! Jamais esquecerei esta história. Qual será o próximo super herói de verdade que nos apresentas?Afinal eles existem…
Realmente devia pensar mais na sorte que tenho em poder estudar e ter liberdade e conforto no meu país. Acho que às vezes as pessoas que tem tudo são as que mais se queixam…
Desejo a maior felicidade e coragem para Khoulud, para a família dela, e para ti Sandra. Espero um dia ler outra vez a história dessa senhora, mas que dessa vez já tenha concluído o doutoramento e que a situação política tenha melhorado aí no campo de refugiados.
Nossa, que história bonita! Muito inspiradora! Que bom que além da força pessoal de Khoulud ela foi abençoada com um marido dos sonhos! Espero que ela siga realizando seus objetivos e vencendo na vida!
Muito bonita a revelação. Essa mulher de fibra vai conseguir fazer o doutorado, além de ter determinação, ela conta com o apoio amoroso do seu marido. Muito linda essa história de luta e de realizações, adorei! um grande abraço e sucesso para eles!
Sandra, ja ta na hora de voce escrever um livro!
Eu já estou escrevendo, Meire, mas é um livro de receitas, não de histórias:-)
Fico muito feliz em ver que a história de Khoulud inspirou vocês. Ela realmente merece a nossa admiração. É fácil esquecer a sorte que temos, a vida confortável que vivemos (mesmo muita gente achando que poderia ter ainda mais conforto) e passar boa parte do nosso tempo reclamando. Isso também acontece comigo, mas nessas horas sempre penso em Khoulud e meu “problema” fica tão pequenininho…
Gostaria de falar um pouco sobre Ayman, pois muitos de vocês elogiaram o apoio que ele sempre deu à esposa. Essa história é importante pra mim porque ela quebra alguns estereótipos: o da mulher muçulmana submissa que só serve pra limpar a casa e ter filhos e o do homem muçulmano machista que trata a mulher como se ela tivesse menos valor que ele. Eu não vou dizer que não é preciso fazer um trabalho grande pelos direitos das mulheres aqui na Palestina (onde não precisa?), mas generalizações são sempre falsas. Ayman nunca fez faculdade, mas apoiou a vontade da esposa de ir mais longe do que ele tinha ido nos estudos. Ele não fala Inglês e hoje Khoulud fala essa língua perfeitamente. Ao invés de se sentir diminuído por causa dos conhecimentos da esposa, ele é a pessoa que mais se orgulha dela e mostra os diplomas de Khoulud (que ele pregou na parede da sala) pra todos que entram na casa. Os olhos dele brilham de admiração quando ele fala dela e isso é tão lindo. Mas muitas pessoas têm preconceitos tão fortes com relação aos muçulmanos que não imaginam que as mulheres possam usar véus e no entanto serem independentes e cultas, que os homens queiram que as esposas se desenvolvam intelectualmente etc.
Espero que com esse post eu tenha ajudado a quebrar esses preconceitos. Além, claro, de expor mais uma vez as injustiças que os palestinos sofrem diariamente e a força desse povo que, apesar de tanto sofrimento, ainda ousa sonhar.
Esta história de vida emocionou-me e muito! Quebra os esteoreótipos da mulher e do homem palestinos que eu tinha, construidos sobretudo com o que é passado pela comunicação social.
Não sei por qual deles tenho mais admiração. Se houvessem mais homens e mulheres como eles (e como você Sandra) este mundo seria um lugar muito melhor. Porque tenho dois filhos pequenos confesso que chorei com o episódio em que Khoulud ficou horas na rua de noite e ao frio com os filhos sem poder entrar em casa. Não há nada que justifique esta barbaridade.
Obrigada pelo testemunho
Nossa. Tô arrepiado até agora. Exemplo para todos que desistem sem lutar, que reclamam sem motivo, que acham que suas vidas é só “oh, céus, oh, vida…”… E ainda por cima exemplo para quebrar vários estereótipos que ainda temos sobre o universo muçulmano (os que já não têm podem atirar as primeiras pedras em mim, por favor!).
Uma amiga da minha esposa, que hoje é servidora pública, para poder estudar para o concurso, com dois filhos pequenos, levava-os à praça perto de casa, deixava-os brincando enquanto estudava, era a única maneira de entretê-los, porque em casa era impossível… Perto da história da Khoulud, a história dela é canção de ninar! Ela nunca precisou se preocupar com soldados israelenses invadirem a praça, nem de que uma bala de um tiroteio atingisse um dos filhos dela…
Temos vários exemplos aqui. Exemplos de amor, de respeito, de aceitação, de resignação, de vontade, de fé, de perseverança, de admiração. E de alteridade, também, que é a aceitação e o respeito às diferenças.
Se cultivarmos mais esse sentimento de alteridade em nós, pouco a pouco nos tornaremos melhores, as diferenças aos poucos deixarão de existir, e histórias como a dessa guerreira que tivemos o prazer de conhecer nos trarão somente felicidade, e não também perplexidade e um quê de assombro.
Bjs, Sandra!
Inchala, Carlos!
Olá, Sandra!
Só agora pude parar um pouco e ler o seu post sobre sua amiga Khoulud, aí as lágrimas começaram a descer e parece que ainda vou continuar chorando por algum tempo. Você nem pode imaginar a dimensão que esses relatos detalhados e verídicos exercem na vida das pessoas ..
De algum tempo para cá temos visto muitos homens e mulheres muçulmanos na nossa cidade: estão nas ruas, supermercados, parques e consigo identificá-los pelos trajes típicos. São pessoas sérias, e como não tenho amizade com nenhuma, não sei como vivem, ou como se sentem.
Ontem à noite estávamos, meu marido, meus dois filhos e eu caminhando pelas ruas de Itajaí (cidade vizinha à nossa) quando fomos surpreendidos por uma pancada de chuva. Meio correndo para conseguirmos nos abrigar, cruzou o nosso caminho um casal de muçulmanos, ele sisudo, olhando para o chão e ela exibindo um sorriso lindo, segurando o filho recém nascido embrulhado numa manta. Retribuí o sorriso e continuamos em frente. Naquele instante pensei, automaticamente: que motivos teria uma mulher muçulmana para sorrir…e ainda à noite, debaixo de chuva… Eu sei, foi um pensamento fortemente preconceituoso, mesmo porque eu não me considero uma pessoa totalmente desinformada… Mas talvez deva tomar mais cuidado com o que penso, vejo e leio, para acabar de vez com a ideia de que todos os homens muçulmanos são machistas e que as mulheres cobertas por véus não podem ser alegres, cultas e, principalmente, fortes.
Os seus relatos cuidadosos sobre a verdadeira situação dos palestinos, as pinceladas sobre os costumes das pessoas muçulmanas, as fotos tão admiráveis que ilustram todos os posts, realmente mereceriam que você pensasse com carinho não só em nos brindar com o seu livro de culinária, mas também ao mundo com um livro sobre a cultura toda particular dos refugiados, suas histórias de vida, o amor verdadeiro que vence todas as barreiras ( Ayman e Khoulud, assim como os personagens do seu post Só Pela Transgressão).
Parece absurdo ter de afirmar isso, mas talvez haja mais pessoas por aí que precisem se convencer que uma mulher muçulmana pode sorrir, sim, na rua, debaixo da chuva, com seu bebê nos braços, e não tremer de frio e medo abraçando seus filhos, na rua, no meio da noite, em seu próprio país.
Fico emocionada em saber que meu post te ajudou a quebrar um pouco os preconceitos contra os muçulmanos, Mariangela. Como eu disse mais acima, não vou afirmar que não é preciso trabalhar muito pelos direitos das mulheres aqui, pois seria uma grande mentira (mas, de novo, onde não precisa fazer esse trabalho?). Porém é importante pra mim mostrar que precisamos parar de julgar as mulheres pela maneira como se vestem. Dá pra usar véu e ser independente, assim como dá pra ir à praia de fio dental e ser submisssa. Como disse a rainha da Jordânia (que não usa véu), precisamos parar de julgar as mulheres muçulmanas de acordo com o que elas usam em cima da cabeça e prestar mais atenção no que elas têm dentro da cabeça.
Essa estória é de uma mulher “bem sucedida”. Imagine, então, as que não podem casar com o homem que gostam e não podem estudar. Mas o que mais me perturba ao ler esses relatos é a humilhação à qual os palestinos estão expostos pelo comportamento agressivo e arrogante dos israelenses. Parabéns pelo seu trabalho junto a esse povo tão sofrido.
Obrigada, Paula. Pois é, existem muitos casos de mulheres que casaram com homens escolhidos pela família, que não podem estudar etc. Mas é importante pra mim mostrar que isso não acontece 100% do tempo.
Já compartilhei com vários amigos!! Realmente quando estamos achando que as coisas estão apertadas, difíceis, é bom ter exemplos como esse pra ver como só falta mesmo a nossa vontade!
Lindo mesmo! Exemplos de vida!!
Vc tb tem sido um maravilhoso exemplo!
Obrigada pela inspiração! Tanto pelo seu trabalho como pelas histórias dessas pessoas incríveis que vc está dividindo com a gente!!
Eu é que te agradeço por compartilhar, Aline.
Achei uma história surpreente, inspiradora e emocionante, um exemplo de determinação e superação! O que vc tá fazendo, Sandra, didivindo suas histórias conosco, é sem dúvida uma quebra de preconceitos, mas sobretudo uma forma de incentivar as pessoas para não desistir de seus sonhos! Sem esquecer, inclusive, de agradecer por vivermos num país livre!
Obrigada, Sandra! E leve meus parabéns a Khoulud!
Tambem tive momento de quase chorar. Muito agradecido.
A história é incrível, mas eu acho que a sua visão sobre a postura do marido é um pouco deturpada. Com certeza a postura dele é melhor que da maioria dos homens (não apenas mulçumanos, diga-se de passagem). Mas pra mim de que adianta um apoio no campo do discurso, em “permitir” que a esposa estude e trabalhe, ou como você disse “apoiar” a esposa se isso ficou apenas nas palavras:
Pelo relato, o apoio prático nunca veio. Quem cuidava dos filhos na ausência dela era a mãe. Ela vivia a tripla jornada de trabalho, pois ficou claro que além do trabalho e dos estudos, TODAS as tarefas relativas ao cuidado com os filhos, com a casa e preparo das refeições ficava a cargo dela. Se ele fosse realmente apoiá-la, dividiria essas tarefas, não: (aliás como deveria ser em toda casa, afinal os dois são os adultos).
Enfim, fico um pouco chocada em ver a postura dele ganhar tanto confete e celebração como se ele tivesse sido um herói, quando na verdade o apoio dele só ficou no campo das ideias. Melhor que nada, claro, mas ainda assim longe de merecer tanto alarde.
Thais, entendo perfeitamente sua opinião e se eu não morasse aqui há mais de 4 anos eu pensaria exatamente a mesma coisa. Por isso preciso explicar melhor o contexto pra você ver o que eu quis dizer com “apoio”. A sociedade palestina é muito tradicional e nos campos de refugiados as pessoas são ainda mais conservadoras. Isso acontece por causa das condições ainda mais difícil desses lugares, que empurram as pessoas ao extremisto religioso (como em qualquer lugar do mundo). Só o fato de uma mulher aqui precisar da autorização do marido pra estudar já me revolta, claro, mas é preciso analisar a história de Khoulud nesse contexto preciso.
Aqui é obrigação da mulher (principalmente a mulher do filho mais velho, que é o caso de Khoulud) cuidar dos sogros. Quando ela casou se viu, aos 14 anos, responsável de duas casas: a dela e a dos pais do marido, que ainda por cima têm a saúde muito frágil e precisam de cuidados constantes. Khoulud cuidou deles durante dez anos e quando Ayman disse que queria que ela estudasse, ele se comprometeu a cuidar dos pais no lugar dela. Era a única maneira de liberá-la pra fazer faculdade. Foi a primeira vez que isso aconteceu na família dele e os pais acharam um absurdo! Aqui é considerado uma vergonha fazer o trabalho que é obrigação da esposa, mas Ayman seguiu em frente, ignorando a enxurrada de críticas da família. Até hoje é ele quem prepara comida pros pais na maior parte do tempo e cuida deles (leva ao médico, troca curativos etc). Ou seja, ele apoiou Khoulud com ações concretas também.
Khoulud conseguiu uma bolsa de estudos, mas só a partir do segundo semestre. O primeiro semestre foi Ayaman que pagou. Cada semestre na Universidade de Belém custa cerca de 2.500 reais, o que representava uma quantia absurda pra eles, e isso sem contar com o custo dos livros. Na época só o marido trabalhava e o seu salário de motorista tinha que manter a casa, os filhos e a faculdade de Khoulud. Então mais uma vez seu apoio foi além das palavras. Ela começou a faculdade sem saber que ia ganhar a bolsa e Ayman estava disposto a fazer todos os sacrifícios pra pagar os estudos dela até o final.
Durante o mestrado Khoulud estudava à noite. Ayman chegava do trabalho as 5 da tarde e tomava conta das crianças pra ela poder ir pra faculdade. Antes do mestrado de Khoulud ele costumava passear com os amigos depois do trabalho, mas durante os anos de estudo dela ele sempre voltava direto pra casa pra ficar com os filhos. Mais uma vez, sei que isso não é mais do que a obrigação do marido e ele não cozinhava pros filhos nem limpava a casa, o que acho que todo esposo tem obrigação de fazer, mas é preciso entender que esses gestos que parecem mínimos pra nós representam uma verdadeira revolução aqui.
As mulheres palestinas quase nunca andam sozinha, principalmente à noite. Khoulud estudava das 18h as 22h e voltava pro campo depois das dez da noite. Você não pode imaginar o quanto a família (dele, mas dela também) e os vizinhos falavam dela! Quantas vezes os pais e os irmãos dele não disseram que sua mulher ia “perder as virtudes”, fazer vergonha ao marido e manchar o nome de toda a família… E Ayman sempre, sempre defendia a esposa e andava na rua de cabeça erguida, com o peito cheio de orgulho de Khoulud, apesar de todos ao seu redor comentarem sobre o comportamento “errado” da esposa e mesmo insinuar que ele ia acabar com um belo par de chifres na cabeça.
Você pode argumentar que tudo que ele fez não passava de sua obrigação e não vou discordar disso, mas nesse contexto preciso, levando em consideração a sociedade patriarcal onde eles vivem e o peso das tradições, o que Ayman fez foi admirável pois sem o apoio dele ela nunca poderia ter voltado a estudar e não teria hoje um diploma de mestrado. Claro que 95% do mérito é dela, mas sem os 5% do marido, que foram as ações que citei acima e que pra nós não passam de sua obrigação, ela nunca poderia ter realizado seu sonho.
Não coloquei essas informações no post porque quis me concentrar na história de Khoulud, que é a verdadeira heroína aqui, mas acho que Ayman merece nossa admiração também. Ainda torço pra que Ayman, e o marido das minhas irmãs, primas, tias e mãe, divida as obrigações domésticas com a esposa. Mas é preciso muito mais força e coragem pra quebrar preconceitos, ir contra a sociedade, a família e os amigos do que pra lavar louça e trocar fralda.
Ah, agora sim com mais contexto acho que ele merece sim aplausos, pois voce demonstrou que o apoio foi material (nao apenas no sentido financeiro, mas pratico) tambem.
Eu entendo o contexto, tanto de refugiados (trabalhei muitos anos no UNHCR) e mulcumano (acabo de voltar de uma missao a mautirania, pais 99% mulcumano com meu emprego atual). Realmente eu7 entendo que nao podemos comparar o que se espera de um marido na Europa ou mesmo no Brasil, com todo seu machismo. Meu ponto tinha sido que eu achava que ele estava recebendo muito credito (e na minha opiniao isso estava tirando o credito que eh DELA). Mas agora que voce deu mais informacoes vejo que ele merce sim bastante credito.
Abs
PS: Concordo que eh preciso mais forca pra ir contra a sociedade e trazer uma mudanca a longo prazo, mas pra cada caso individual (que eh o que importa) eh preciso sim o apoio pratico. Quando eu comecei a dar training sobre violencia domestica, so falavam com as mulheres. O que piorava a situacao, elas passavam agora a saber que era errado apanhar do marido, mas continuavam na mesma. Dai a importancia em incluir os homens pra conevrsar sobre o machismo, sobre a violencia. Isso sim gera mudanca no contexto de UMA casa, UMA familia. E muitas vezes salva a vida de UMA mulher.
Mais uma vez você está certa. Por isso é preciso trabalhar dos dois lados, com mudanças na maneira que a sociedade vê determinados comportamentos, mas também com ações concretas (no nível individual, como o seu training sobre violência doméstica, e da sociedade, como a criação e aplicação de leis que protegem as mulheres).
Que bom que estamos entendidas agora:) Mas não podemos esquecer que a verdadeira heroína aqui é Khoulud. Abraço pra você também.
Nossa Sandra..
Este texto me emocionou muito.
Diante do esforço hérculeo desta mulher para superar as adversidades e conseguir realizar seu sonho, tudo se torna tão pequeno.
Que sorte a sua de poder conviver com pessoas tão especiais.
Ao longo da minha vida conheci algumas ” Khoulud”.
Me lembrei de uma senhora paupérrima que visitava quando fazia trabalho voluntário.
Sempre saía de lá com a sensação de quem precisava de ajuda era eu e não ela.
Era como se um sopro de vida me tomasse toda vez que a encontrava, tamanho o seu entusiamos pela vida, sua alegria e otimismo mesmo diante daquela situação de extrema miserabilidade material, onde não raro não havia o que comer , mas mesmo assim, tal qual Khoulud, sempre nos recebia com um imenso sorriso no rosto.
Tem um livro chamado” Queimada Viva” que aborda justamente a questão do preconceito em relação à mulher no oriente médio.
É um livro forte mas que todo mundo deveria ler.
A vida da autora, Souad, foi a maior história de superação que vi até hoje e aposto que você já encontrou também várias outras “Souad” por aí.
Percebo que aos poucos uma nova consciência vai surgindo e admiro o marido de Khoulud por ser um homem a frente de seu tempo.
O que ele fez pode parecer pouco para nós, mas para a realidade que ele vive ele foi um revolucionário!
É assim que as grandes mudanças começam, com um passo.
Abraços
Susana
ops..cometi um erro grave de português, se você não fosse linguista nem me preocuparia tanto em desfazê-lo rsrs.
Hercúleo, pronto.
abç
Susana
Wow… Que mulher de fibra essa Khoulud! Uma história triste, porém linda devido a determinação dela e de seu marido. Espero muito que ela consiga a bolsa para o doutorado! Ela sim merece!!! Espero que depois de ler este post, eu nunca mais venha a reclamar da minha vida!
Sérgio Luiz
Gostaria de ter mais informações sobre como conhecer e me casar com uma palestina, sempre tive interesse na cultura e na história deste povo. E resolvi escrever a vc para me orientar.
Att:Sérgio Luiz
Sérgio, não sei se esse seu comentário é sério. Espero que não.
Cheguei aqui inocentemente atras de uma receita de overnight oats, e agora, como faço com todo esse choque de realidade?
Me emocionei demais com as histórias, acho que nunca na minha vida me senti tão impotente, me dói tanto saber que tantas pessoas passam por essas coisas e nós nem imaginamos… que temos tanto e sempre achamos que temos tão pouco.
Me apaixonei por sua história, me identifiquei ctg em vários fatores e mesmo que vc não se sinta tão corajosa quanto as pessoas que vc conheceu aí, ainda é a pessoa mais corajosa que já li..
Enfim, obrigada.
Não tenho resposta pra sua pergunta (“o que faço com esse choque de realidade?”), Andreza, pois confesso que me pergunto isso frequentemente. Mas espero que, agora que você descobriu o blog, que continue lendo minhas histórias. Seja bem-vinda.