Queria falar de duas coisas hoje: meu prato palestino preferido e Draguitsa, uma das minhas melhores amigas que, olha que coincidência maravilhosa, faz esse prato divinamente bem.
Como em vários lugares do mundo, os palestinos gostam de rechear folhas de parreira. Na Palestina esse prato é chamado de “waraka dawali” (ou só dawali, pros íntimos) e as folhas são recheadas com uma mistura de arroz e especiarias. Geralmente os dawalis são preparados com abobrinhas e berinjelas, recheadas com o mesmo arroz. Os legumes são colocados em camadas na panela, com um frango inteiro, e tudo cozinha junto. Algumas pessoas também colocam carne moída no arroz. Porém existe uma versão sem frango e sem carne (“dawali siami”), preparada pelos palestinos cristãos durante a quaresma.
Aqui o jejum da quaresma é levado muitíssimo a sério e os cristãos não comem nenhum produto de origem animal. Isso mesmo, o jejum aqui não se restringe à carne, ele é totalmente vegano. O termo “siami” significa que o prato em questão é 100% vegetal, logo pode ser consumido durante a quaresma. Existem versões “siami” de vários pratos tradicionais, criadas exatamente pra matar a fome da galera do jejum, digo, dos cristãos.
Mas voltemos ao dawali (versão “siami”, claro). Eu não sou a única a adorar esse prato, ele é extremamente popular entre os palestinos. Por isso tive a oportunidade de comer dawalis preparados por várias amigas e até pelas mães de algumas amigas. Os melhores que comi até então são os da minha vizinha Violete (palestina cristã ortodoxa), os da minha grande amiga Draguitsa (bósnia muçulmana), os de Khoulud (palestina muçulmana) e os de Fida (palestina católica), esposa do meu amigo Tawfic. Cada uma delas tem uma receita ligeiramente diferente, refletindo as diferenças de nacionalidade e, curiosamente, de crença também. As cristãs, por exemplo, colocam um pouco de hortelã no recheio, enquanto as muçulmanas acham isso uma heresia! Já vi minhas amigas prepararem (e ajudei a preparar) dawalis dezenas de vezes. Já dei até curso ensinando a fazer dawali (dentro do meu projeto no campo de refugiados). Depois de quase cinco anos morando na Palestina e de ter degustado quilos de dawali, acho que finalmente adquiri conhecimento suficiente pra falar dessa iguaria aqui e dividir a receita com vocês.
Esse prato é especial por duas razões. Primeiro porque só é possível fazer dawalis a partir do final da primavera e até o meio do verão. Essa é a melhor época pra colher as folhas de parreira, que estão novinhas, tenras e saborosas. Antes disso as parreiras estão peladas e no final do verão as folhas engrossam, ganham um sabor forte bem menos agradável e algumas ficam ligeiramente felpudas. A folha novinha e fresca, colhida no jardim da cozinheira na hora de preparar o prato (parreiras aqui são extremamente comuns e quase todo mundo tem uma) tem um sabor único, verde e com uma pontinha de limão. As palestinas costumam congelar alguns quilos de folhas de parreira pra consumir mais tarde e também é possível comprar folhas conservadas em garrafas durante uma parte do ano, mas nada que se compare ao sabor das folhas frescas. E como preparar as folhas e enrolar os dawalis um por um leva um baita tempo, não é um prato que podemos degustar todos os dias, fazendo com que ele seja ainda mais especial.
No final de junho, antes de sair de férias, fui convidada pra um almoço de despedida na casa de Draguitsa e Mustafa. Talvez vocês lembrem de Mustafa, pois contei a emocionante história dele e do seu pai aqui no blog. Nesse post comentei que Draguitsa é uma excelente cozinheira, daquelas que adoram fazer tudo em casa. Na minha última visita à sua casa, semana passada, ela mostrou o vinagre de figo e o kombucha que estão incubando na sua cozinha e pude degustar as alcaparras e picles colhidos e preparados por ela.
Draguitsa estudou hotelaria na Iugoslávia, onde conheceu o marido, que estava estudando fisioterapia na mesma universidade. Como temos a paixão pela cozinha em comum, nossas conversas sempre giram em torno de comida. Além de cozinhar divinamente bem e de ser uma maga das conservas, Draguitsa borda e tem um verdadeiro dom com as plantas (ornamentais e comestíveis). Ela é uma daquelas pessoas com “mãos de fadas” e sua aparência delicada e voz suave me fazem desconfiar que talvez minha amiga seja realmente da turma dos elfos. Ela também é extremamente inteligente, além de Bósnio, Esloveno e Árabe ela fala um Inglês digno da corte da rainha Bete (que ela aprendeu sozinha, assistindo televisão, meu povo!) e coordena um projeto de mulheres que fazem bordados tradicionais, vendidos aqui e na Europa. Sua generosidade é infinita e nunca saí da casa dela com as mãos vazias. Na última visita, por exemplo, ganhei figos do jardim e seu maravilhoso pão, assado nas pedras.
Naquele almoço de junho Draguitsa fez questão de preparar dawalis, pois ela sabe o quanto adoro esse prato. Cheguei cedo pra fotografar suas mãos de fada em ação, pois já tinha decidido dividir a receita com vocês. Sei que poucas pessoas têm parreiras no jardim, o que torna o ingrediente principal desse prato quase impossível de encontrar por aí. Mas aqui vai um consolo: é possível fazer uma versão usando folhas de repolho pré-cozidas e exatamente o mesmo recheio. Esse é outro prato tradicional daqui e gosto quase tanto dele quanto de dawali. Consolo número dois: inspirada pelos sabores desse prato, criei uma receita usando ingredientes encontrados facilmente no Brasil e em Portugal. Modéstia à parte, minha versão não faz feio perto dos dawalis de Draguita. Voltem aqui na sexta pra conferir.
Agora passemos à receita (sem medidas, como toda boa receita tradicional) dos dawalis de Draguitsa. Comece escolhendo folhas de parreiras bonitas e viçosas, de tamanho médio. Lave-as e corte o cabinho de cada uma. Ferva uma quantidade grande de água e mergulhe as folhas na água fervente por 30 segundos. Cozinhe 10-15 folhas por vez e repita a operação até acabar o estoque de folhas. Reserve. Deixe o arroz de molho por meia hora, enxague e escorra bem (pra se livrar de uma parte do amido, que deixa o arroz grudado). Misture o arroz escorrido com cebola e tomate picadinhos, alho ralado, um pouquinho de salsinha e as seguintes especiarias: cominho, semente de coentro em pó, páprica suave, noz moscada, pimenta do reino e cúrcuma. Tempere com sal e um pouco de azeite. Recheie cada folha de parreira pré-cozida (o lado brilhante pra baixo) com um pouco do arroz cru temperado. Não exagere na quantidade de arroz e enrole a folha apertando bem.Veja o passo a passo nessas fotos (clique em cada uma pra ver melhor).
Se quiser fazer a abobrinha e a berinjela recheadas, que acompanham tradicionalmente os dawali e aumentam consideravelmente o sabor do prato, o trabalho será dobrado. As palestinas usam um utensílio próprio pra cavar o interior dos legumes, que nunca vi em nenhum lugar fora daqui, mas talvez com uma colher, uma faca e muita paciência seja possível conseguir o mesmo resultado. Escolha abobrinhas e berinjelas bem pequenas, cave o interior dos legumes crus, retirando a maior parte da polpa, e preencha a cavidade com o arroz temperado. Só precisa encher até a metade, pois durante o cozimento o arroz expande bastante. Disponha fatias grossas de tomates e cebolas (mais tomate do que cebola) em uma panela grande e alta, forrando completamente o fundo com uma camada espessa desses legumes. Regue generosamente com azeite e tempere com sal e pimenta do reino. Coloque as berinjelas recheadas, as abobrinhas recheadas e, por último, as folhas de parreira recheadas. É preciso respeitar essa ordem, pois as folhas são mais delicadas do que os legumes e não podem ficar muito perto da chama do fogão. Junte água suficiente pra cobrir tudo (pra deixar o prato ainda mais saboroso você pode usar um caldo de legumes caseiro), junte mais um pouquinho de sal e azeite e leve ao fogo. Quando ferver, baixe a chama e deixe cozinhar em fogo baixíssimo, coberto, até os legumes ficarem macios e o arroz bem cozido (prove regularmente). Esse é um prato que é ainda mais gostoso quando os legumes cozinham até quase se desfazerem, então não tenha medo de cozinhar longamente (se a panela secar, junte mais água ou caldo de legumes). O prato pronto não deve ter quase nenhum líquido, então retire a tampa e deixe evaporar o caldo no final do cozimento.
Se quiser servir da maneira tradicional, despeje o conteúdo da panela sobre uma travessa redonda e grande. Deguste regado com um pouco de suco de limão, acompanhado de pão rústico e salada de tomate, pepino e hortelã fresca. Aqui não se usa pratos individuais, todos comem diretamente da travessa, com as mãos. Acho que fica ainda mais gostoso degustado assim.
Espero que tenham gostado desse mergulho na culinária palestina. Draguitsa vai ficar feliz ao ver que publiquei a receita dela (ela lê o blog com a ajuda de google translator), mas, modesta que é, não vai concordar com os elogios. Cibele a conheceu quando esteve aqui e pode confirmar que tudo que disse é verdade (não é, moça?). E não esqueçam de passar por aqui na sexta pra conferir a minha versão (muito mais acessível) desse prato.
Olá Sandra :o)
Obrigada …. deu-me vontade de experimentar … as parreiras já estão secas, por aqui … mas a versão “couve galega ou portuguesa” parece-me uma boa alternativa (aquela bem verde escuro) … agora, perguntaria, que arroz usaram ? .. o integral, o branco ou outro? …
Um Abraço Português … e sempre … Parabéns pela Presença :o)
Disponha, Isabel. Aqui se usa o arroz branco, do grão curtinho.
impecável 🙂 … Obrigada 😉
Que post! O texto e a delicadeza tão deliciosos de ler quanto parece essa receita. Tentarei a versão com repolho 🙂
Obrigada, Sandra, por dividir essas experiências com a gente.
Eu que te agradeço por ler meus textos, Nina:-)
Que delícia de história! E a receita também, parece que vi fumacinha saindo da panela da foto…
Viu, mesmo! Tirei as fotos quando a panela tinha acabado de sair do fogo.
Adorei! aqui na Holanda sempre vejo as folhas no supermercado turco mas não tinha idéia do que se preparava com elas.Vou comprar e tentar fazer esse prato!Não me lembro no Brasil de ter comido alguma vez um figo fresco…experimentei aqui e achei uma delícia!
As folhas de parreira usadas na Turquia são maiores do que as daqui (variedades diferentes de uva), mas acho que também dá certo. Você só vai precisar colocar mais recheio em cada uma.
Sandra, esta postagem tem sabores e aromas inconfundíveis!Pena que aqui estamos no outono e as parreiras estão com as folhas velhas, mas quando estivermos na primavera vou tentar fazer este delicioso prato. O difícil vai ser fazer uns rolinhos tão bonitos. Draguitsa tem mesmo mãos de fada, mas uma inteligência bem terrena e rara, aprender inglês a ver filmes?!Parabéns!
Amanhã passo por aqui, quero ver a sua versão acessível para nós, de certeza que também será deliciosa!
Adorei a história e conhecer Draguitsa.
Vou transmitir os “parabéns” à Draguitsa. Enrolar as folhas é realmente a parte mais difícil e é preciso muito treino pra conseguir charutinhos tão perfeitos quando os dela… Mas mesmo se os seus rolinhos ficarem feios, o gosto será o mesmo 🙂
Sandra, sua maneira de escrever é deliciosa! Adoro ler seu blog.
Obrigada, Mônica.
Oi, Sandra, seu Blog desta vez pareceu um tapete mágico que levou todos nós,seus leitores, para a Palestina. Foi ótimo saber notícias de Draguitsa ,mãos de fada, que além de bordar belos desenhos tradicionais é poliglota e tal como vc uma mestra na arte culinária. Sinto como se tivesse feito um passeio no jardim de Draguitsa ,colhendo uvas e figos e depois apreciei passo a passo vcs. fazendo os dawali .Estão deliciosos!
Um abraço afetuoso p/ todos vocês
Fátima Yasbeck Asfora
E p/quem está em Pernambuco eu lembro que folhas de uva podem ser encontradas c/facilidade em Petrolina. .
Já que você não vem aqui me visitar, eu levo um tiquinho da Palestina pra sua casa, Fátima:-)
Mmm! Que delícia! Aqui em casa fazemos charutos de repolho, mas já comi com folhas de uva fora de casa! Não sabia que fazia assim! Mas parece que o trabalho que dá compensa! Meu pai está tentando fazer pegar parreira aqui em casa… Os cavalos das uvas já nasceram, então acho que posso roubar umas folhas!
Que sorte a sua, Aline, ter uvas em casa:-) Quando a parreira se cobrir com as primeiras folhas peça ao seu pai pra roubar algumas pra fazer dawalis. Os palestinos dizem que a primeira “folhada” do ano é a melhor pra fazer esse prato.
Adorei este artigo! Nem imaginas Sandra como adoro conhecer comida típica de outras regiões do mundo (mas que se adapte à minha alimentação)! Achei tão curiosa a forma como cozinham os dawalis que tenho de experimentar um dia destes… E a tua versão também! Já experimentei uma similar, mas com abobrinha e quinoa, e menos aromatizada, mas tenho de experimentar com os temperos todinhos! 🙂
Ainda tenho tanto para conhecer… Até me sinto meia pacóvia por não apresentar nada típico ou tradicional aos meus leitores :b
Está na hora de muda isso, Márcia! Eu não sei praticamente nada da culinária portuguesa e adoraria conhecer os tesouros escondidos nos cadernos de receitas das avós e que estão só esperando serem descobertos (ou veganizados:-) Conto com você, menina!
Eu sempre deixei a cozinha Portuguesa de lado porque envolve muita carne, peixe, marisco (…) mas tenho de começar a veganizar e a explorar… Quem sabe não encontro verdadeiras iguarias (à minha moda) 🙂
De carona no tapete da Fátima, de volta ao final da década de 40, casa do meu avô palestino, no Recife (Rua Imperial, 1827…)… ainda estava nos arremates e ele já cuidava de cultivar um pequeno espaço, ao lado do muro vizinho, para plantar sua parreirinha. Só uma vez ou outra minha avó precisava recorrer a repolhos para os charutos dos nossos almoços dos domingos. Como esquecer, depois de ler sua linda história, táo ligada à minha infância?
Beijos, amiga.
Lúcio, o convite se extende à você:-) Se quiser ver a minha parreira, e todas as outras aqui em Belém, será muito benvindo. Beijos.
Oi Sandra! Aproveitei a parreira da horta da mamãe pra fazer essa receita, mas foi praticamente um desastre! Na hora em que a água começou a ferver, mesmo no fogo baixo, metade dos rolinhos se abriram e, daqueles que se salvaram, achei impossível engolir a folha! Não sei se elas estavam meio velhas ou se cozinhei muito pouco, só sei que mastigava sem parar e nada daquela coisa desmanchar! No fim das contas comi só o recheio (que ficou ótimo) com salada. Hahahaha, mas valeu a tentativa! Beijos!
Que pena que não deu certo, Bruna. Pensando aqui com os meus botões, encontrei várias possíveis explicações pra isso. A primeira é a qualidade da folha. Dawalis são feitos na primavera por uma razão: as primeiras folhas que aparecem nas parreiras são tenras e saborosas. Depois elas engrossam demais e fica realmente impossível comê-las. Talvez as folhas da sua mãe estivessem realmente velhas. Me disseram também que nem todo tipo de parreira dá folhas comestíveis, algumas são sempre grossas e felpudas. Além de ferver as folhas antes de enrolar (o que as deixam mais maleáveis) é preciso ter uma boa técnica de enrolação pra que elas não abram durante o cozimento. Levei muito tempo pra aprender a ainda hoje alguns dos meus rolinhos se abrem, enquanto os feitos pelas palestinas quase nunca encontram esse problema. A quantidade de recheio também é muito importante (se você colocar demais as folhas se racham, se colocar de menos elas podem acabar se abrindo) e só descobrimos isso com a prática. Terceiro: as folhas devem ser arrumadas apertadinhas na panela porém, mais uma vez, nem demais (o arroz precisa de um pouco de espaço, pois expandirá após o cozimento) nem de menos (se os rolinhos boiarem na água vão acabar se abrindo). E a água deve só cobrir os rolinhos (não pode ser muita), acrescenta-se mais, aos pouquinhos, durante o cozimento. E por último, os rolinhos precisam cozinhar durante muito tempo. Algumas palestinas até usam a panela de pressão pra acelerar o processo, pois em uma panela comum leva horas. Eu não pensei que alguém seria corajoso o suficiente pra tentar essa receita, se soubesse teria dado explicações mais detalhadas. Mais uma vez, sinto muito pelo “desastre”, Bruna:(
Para que os charutinhos não abram, deve-se colocar um prato sobre eles assim que terminar de arrumá-los na panela…o peso do prato é o suficiente para eles não abrirem.
José Roberto Bandouk. São Paulo-Brasil