O meu primeiro sobrinho chegou quando eu tinha oito anos. Lembro de ter contado, toda feliz, a novidade na minha escola: eu já era tia. Mas aos oito anos eu estava mais interessada em… Não lembro exatamente o que me interessava quando eu tinha oito anos, mas sobrinhos com certeza não faziam parte da lista. Só quando me tornei tia pela segunda vez, dois anos depois, percebi o significado daquilo.
Quando minha irmã Lila (a da salada) engravidou ela tinha 28 anos, era independente financeiramente, vacinada e… solteira. A notícia foi um verdadeiro terremoto pros nossos pais, mas minha irmã queria aquele bebê mais que tudo e foi em frente apesar dos pesares. Anos depois li algo que eu gostaria de ter dito pros meus pais naquela época: “É melhor ganhar alguém que a gente vai amar do que perder alguém que a gente ama”. Mas nem foi preciso, eles acabaram entendendo isso sozinhos.
Eu dividia o quarto com Lila e pude ver, semana após semana, a evolução da gravidez. Tinha uma velha tv no quarto e à noite assistíamos à novela juntas, cada uma na sua cama, e ela massageava a barriga com óleo de amêndoas, pra evitar estrias. Aquele ritual ficou gravado na minha memória nos mínimos detalhes: o cheiro do óleo, os movimentos lentos e circulares que ela fazia, as luzes da tv refletidas no seu rosto, a novela que assistíamos juntas… Eu via, maravilhada, a minha sobrinha crescendo dentro da minha irmã.
Lembro quando esperei as duas voltarem da maternidade, o coração batendo acelerado, curiosa pra ver o bebê que minha irmã trazia pra nós. No meio dos adultos que esperavam comigo não consegui ver minha sobrinha, mas assim que minha irmã foi pro quarto com o bebê eu segui as duas e pedi pra ver aquele ‘pacotinho’ de perto. Lenita ficou famosa na família por ser um dos bebês mais feios que apareceu por lá, mas naquele momento eu vi um milagre: de dentro da barriga untada de óleo que eu contemplava todas as noites tinha saído um serzinho perfeito. Lila falou pra eu sentar e colocou o bebê nos meus braços. Foi a primeira vez que carreguei um recém-nascido no colo e ela me pareceu tão incrivelmente pequena e frágil que tive medo de me mexer e machuca-la. Quando levantei a vista eu estava sozinha no quarto e o medo de fazer um movimento e ferir aquela florzinha me paralisou. Eu podia ter colocado o bebê no berço, podia ter chamado alguém pra me ajudar, mas fiquei a tarde inteira ali, imóvel, quase sem ousar respirar, olhando Lenita dormir nos meus braços. Hoje me dou conta que o que minha memória de criança gravou como ‘uma tarde inteira’ provavelmente não tenha passado de alguns minutos, mas é assim que me lembro do episódio. E naquela tarde eu descobri o amor. Eu tinha acabado de conhecer aquele bebê, mas teria passado o dia inteiro sem me mexer, só pra não correr o risco de fazer algum mal pra ele. Eu já amava aquele bebê com todas as partículas do meu corpinho de criança.
Lenita cresceu com a gente e aprendi com a minha irmã a cuidar dela. Eu via Lila bater leite com biscoitos no liquidificador, cortar o ‘coração’ da melancia, a parte mais doce, e oferecer pra ela e fazia a mesma coisa. Mas ter uma babá de dez anos nem sempre é seguro e lembro muito bem do que aconteceu no dia em que coloquei Lenita sentadinha em cima da mesa enquanto eu enxugava a louça recém lavada. Ela achou uma faca e fechou a mãozinha ao redor da lâmina. Meu primeiro impulso foi puxar a faca, ao invés de abrir a mão dela. Só depois de ter feito isso me dei conta do perigo. Felizmente a faca não era nem um pouco amolada e só arranhou a pele fina que revestia os seus dedinhos. Não saiu nem uma gota de sangue, mas mesmo assim chorei de remorso.
Quando ela já falava e corria por todos os lados eu gostava de dizer: “Vou fazer cosquinha e só paro quando você ficar azul”. Ela sempre topava a brincadeira, mas quando não aguentava mais as cócegas gritava: “Eu já tô azul! Eu já tô azul!”. Anos mais tarde, quando ela já não acreditava mais que podia mudar de cor graças às cócegas que eu fazia nela, Lenita começou a me fazer perguntas. Um dia eu escutava ‘Bandeira’, de Zeca Baleiro (que eu tinha acabado de descobrir), quando ela me perguntou o que era ‘mamilo’. Aos seis anos ela se chocou com o cabimento do cantor e eu ri muito quando ela disse: “Língua no mamilo, onde já se viu!”. (Fãs de Zeca, e sei que vocês são muitas por aqui, a opinião da minha sobrinha sobre ele mudou bastante e ela até vai aos shows dele hoje em dia!)
Lê tinha dez anos quando eu fui morar no exterior. A partir daí a gente começou a só se ver a cada dois anos e eu acompanhei a adolescência dela de longe. Durante esses anos eu acabei, quase sem perceber, me afastando dela. Não tenho muita paciência com adolescentes e a florzinha que eu amava tanto tinha se transformado em uma moça com gostos e valores tão diferentes dos meus que nem sempre era fácil conversar com ela. Mas teve esse dia no ônibus, voltávamos do cinema, quando eu perguntei: “E se suas amigas mangarem de você dizendo que você tem uma tia sapatão, você faz o quê?” e ela respondeu: “Eu digo ‘E daí? Não quer ser mais minha amiga? Problema seu!”. Naquele dia minha sobrinha me ensinou o amor pela segunda vez. Pra mim ela tinha crescido e mudado, mas pra ela eu nunca tinha deixado de ser a tia que ela amava.
Hoje Lenita tem vinte anos, exatamente a idade que eu tinha quando troquei minha cidade natal por Paris. Quando penso na jovem de vinte anos que fui e na jovem de vinte anos que minha sobrinha se transformou percebo que não poderíamos ser mais diferentes. Contrariamente a mim, que só pensava em ir embora, ela adora estar com a família. Quase todo jovem de vinte anos que encontrei pela vida queria aventuras, de preferência bem longe da família, mas minha sobrinha é mais feliz quando estamos todos reunidos. Ela ainda mora na mesma casa onde Lila passou nove meses massageado a barriga com óleo de amêndoas, junto com a mãe e meus irmãos caçulas. Ano passado ela me emocionou ao ponto de me fazer chorar quando disse que sempre que meu irmão, de quem ela é muito próxima, vai trabalhar ela fica contando as horas pra ele voltar pra casa. Ela conseguiu conservar o coração sem malícia e a inocência da florzinha que ria no meu colo gritando “Já tô azul! Já tô azul!”.
Lenita ama profundamente os animais e sempre quis ser veterinária. Mas na nossa cidade não tem esse curso, então quando entrou na faculdade, dois anos atrás, ela foi estudar zootecnia. Me partia o coração saber que alguém que tinha tanta vontade de cuidar de animais não humanos estava se preparando pra exercer uma profissão que, segundo a definição da Wikipédia, “visa aproveitar as potencialidades dos animais domésticos e domesticáveis com a finalidade de explorá-los racionalmente como fonte alimentar e outras finalidades junto aos seres humanos”. Explorar animais, ‘racionalmente’ ou não, não era o que minha sobrinha queria fazer e vê-la seguir esse caminho me deixava duplamente triste. Mas ano passado ela decidiu fazer reingresso pra veterinária.
Estou escrevendo essas linhas porque minha sobrinha começou a estudar, algumas semanas atrás, medicina veterinária e eu queria muito que ela soubesse o quanto estou orgulhosa dela. Ela abandonou zootecnia no meio do curso e resolveu seguir sua verdadeira vocação. Não foi uma escolha fácil, pois agora ela está morando a quase 300km de casa. Além das dificuldades econômicas causadas pela mudança, de ter que se adaptar à uma faculdade em uma cidade diferente, em pleno oeste potiguar, tão quente que não sei como os miolos dos habitantes não derretem, além do desafio de fazer novos amigos em um lugar onde ela não conhece ninguém, pela primeira vez na vida ela está longe da família que tanto ama. Mas ela decidiu enfrentar isso tudo e correr atrás do seu sonho, assim como o que fiz na sua idade. Aos vinte anos eu fui pra bem mais longe, mas nossas motivações eram as mesmas.
Então queria que minha sobrinha soubesse o quanto eu tenho orgulho dela, da pessoa linda que ela é e que tenho certeza que ela será uma excelente veterinária. Faz muitos anos que ela não cabe mais nos meus braços, mas o amor que me invadiu naquela tarde em que a carreguei no colo pela primeira vez ainda me invade cada vez que eu a vejo sorrir.
*Fotos: 1- Lenita e o cachorro do meu sobrinho, Zeus. 2-Com a mãe, Lila. 3- Lara, outra sobrinha, Lila e Lenita (a gente gosta de nomes que começam com ‘L’). 4- Com o cachorro dela, Lilo.
Que lindo Sandra!
Estou fazendo 18 anos e não vejo a hora de conhecer o mundo (não sei por onde começar na verdade, se tiver dicas agradeço) e fico impressionada com o quanto voce é ligada a familia, vejo seu blog a muuito tempo e já me emocionei com muitas postagens, voce acabou virando um exemplo de pessoa pra mim, em todos os sentidos.
Fico honrada em saber que sou um exemplo pra você, Jenifer (olha que responsabilidade!). Não sabia que você era tão jovem… Já vou deixando aqui os parabéns pelos seus 18 anos e te desejando muita sorte e muitas aventuras.
É um prazer imenso ler tudo o que você escreve, Sandra. Obrigada por dividir conosco esses momentos tão íntimos e tão bonitos da sua vida. Estou torcendo pela realização e pela felicidade da Lenita.
Abraços,
Martha
Nossa, Sandra, chorei, chorei! Você é pessoa de sensibilidade incrível.
Que lindo! Família linda! Bjs
Que linda história! Fiquei emocionada! Lembrei de uma história q minha mãe conta de q meu tio q na época tinha 11 anos (quando nasci) correu a vizinhança toda avisando q eu havia nascido…como se isso fosse um fato extraordinário…na verdade era, p ele q tanto me amava desde aquele momento assim como vc se apaixonou pela Lenita. Bjuss e sucesso a esta veterinaria!!
Afff Sandra, que coisa mais linda!! É tão gostoso ler qualquer coisa que você escreve..
Parabéns para a futura médica veterinária 🙂
E a história da Dani aqui em cima.. quanta inocência a gente tem quando criança, né..
Beijos
Sandra, conheço teu blog a tão pouco tempo, mas não posso deixar de dizer, adoro te ler… que lindo! Beijos!
Ow Sandra…que lindo! Lê vai ficar muito feliz em saber que, finalmente, vc dedicou um post para ela!
Parabens pela linda familia!
Oi Sandra, é isso mesmo…quando vi meu sobrinho Igor pela primeira vez …foi amor a primeira vista. E agora a minha sobrinha Nina…é um amor que não cabe no peito. Mesmo eu tendo uma filha, que é tudo pra mim, ter sobrinhos é tão importante quanto ter filhos. Beijos!
Acompanho seu blog a mais ou menos 3 meses. Hoje, começando por esse post e clicando aqui e ali acabei lendo muito da sua história. PRECISEI voltar aqui para te parabenizar. Hoje em dia é muito difícil encontrar pessoas dispostas a mudar de vida para o bem do próximo, para o bem do mundo.
Você devia escrever um livro algum dia contando a sua história! Já tem uma leitora e fã aqui! Parabéns..
Um livro, Ligia? Quem sabe um dia…:)
Que lindo, Sandra! Sua doçura e sensibilidade derretem o coração dos leitores…
Olá Sandra !
Quanta beleza nessa história .vc contou com tanta beleza que consegui vivenciar cada cena .Parabéns !
Que lindo! 🙂
ÊÊÊÊHH… Finalmente ganhei um post 🙂 Minha ninhazinha vc não sabe o quanto me deu mais saudades sua depois de ler… Lu foi enredar a vc foi? Eu falei esse final de semana a ela que vc só falava dela e de Paulinho… rsrsrsr Adorei tudo que vc falou… tudinho… Já comecei chorando desde a primeira palavra, mas quando vc disse que eu fiquei famosa pela feiura eu ri muito!! Realmente eu não queria nunca sair de debaixo da asa de mainha… qria sempre que todo mundo estivesse em casa nas refeições que sempre geram assuntos polêmicos, e pelo menos todo domingo vc estivesse em casa pra tomar um açaizinho com cupuaçu. quando vc resolver voltar vamos cuidar dos bichinhos juntinhas!!! Até hoje quando Paulinho chega do trabalho Laurinho diz: Não via a hora de vc chegar.. rsrsrs E vc esqueceu de falar que eu não só fui pro show de Zeca, como tbm dei a louca e subi no palco (até hje me pergunto porque fiz isso)!! Obrigada por me deixar fazer parte do seu blog, amo mto vc ninhazinha, mto msm!! <3
Pra depois você não dizer que só amo Luna 😉
Ahhh! Que post mais bonito!
Muito legal isso tudo que vc contou!
Boa sorte para Lenita e que dê tudo certo na faculdade de Medicina Veterinária 🙂
(aliás, esse nome, Lenita, é tão legal…dá vontade de ficar repetindo…gostei!)
Sandra, não sei se é só comigo, ou se o problema ta no meu navegador de internet, mas ultimamente, quando vou comentar, da erro na caixa de comentários ou é difícil conseguir selecionar para preencher…só para avisar ^^
Também acho o nome ‘Lenita’ lindo. A gente tinha uma tia Lenita que morreu muitos anos atrás, então minha irmã escolheu esse nome pra homenagea-la. Só que tem muita gente que não conhece o nome e acaba confundindo e chamando minha sobrinha de ‘Anita’:)
Espero que o problema com os comentários tenha desaparecido. Outras pessoas comentaram que estavam tendo dificuldades com isso desde que mudei o site, mas acho que agora voltou ao normal.
QUE LINDO!
Emocionante o seu depoimento…uma verdadeira declaração de amor a esta criatura doce,meiga e cheia de sonhos LENITA. Continuem cultivando o amor…só ele vale a pena!!!!
Lindo! Fiquei encantada com o seu conto tão verídico tão cheio de vida. Você escreve com tanta habilidade quanto cozinha. Parabéns, que Deus te ilumine cada vez mais. Diva Paiva
Olá Sandra! Tenho andado um bocadinho ausente do mundo dos blogs… Infelizmente a época de exames da faculdade está a chegar, e não tenho tido tempo nenhum para mais nada…
Mas vou sempre espreitando o que há de novo por aqui, e este post comoveu-me um bocadinho… Aquela parte de seres criança e pegares pela primeira vez na Lenita, eu senti o mesmo com o meu irmão mais novo! Curioso como sentimos imediatamente o amor, e protecção que temos de dar a uma criança tão pequena.
Espero que corra bem o curso de veterinária à Lenita, que seja feliz, e que te possa ver mais vezes!
Beijinhos 🙂
Ninhaaaa,
Que lindo o seu post para Lê!! Chorei…! LINDO LINDO LINDO. Fico abismada com suas palavras, um dia ainda vou escrever assim, rsrs!
Que é isso, minha florzinha…
Que postagem linda! Você escreve maravilhosamente bem. Emocionante…
Que post lindo! E eu me identifiquei um muitas partes. Eu também sai do interior para estudar, um pouquinho mais nova aos 17 anos. Tudo que eu queria era ir embora, tinha crescido e descoberto que era tão diferente das pessoas dali, e não sei como é no seu interior, mas aqui as pessoas não lidam bem com esse diferente. Contudo, às vezes, dá uma vontade sem tamanho de voltar, agora que eu estou de férias aqui nem se fala. O cheiro forte do café sendo coado de manhã, o cheiro da comida no forno à lenha, o pomar, o rio o barulho dos primos…
Nina, eu não sou do interior, sou de Natal (talvez pro pessoal do Rio e São Paulo isso seja interior…;) Mas apesar de ser uma capital, o pessoal de lá nem sempre aceita diferenças. Felizmente as coisas estão mudando por lá e espero que na sua região também. Mas se o rio, o pomar e o forno à lenha me chamassem, não sei se resistiria…
Shame on me! Natal realmente não é interior. Acho que foi as fotos do sitio do seus pais, em outros posts que me fez ignorar que Natal é capital.
Sandra! É sempre um prazer ler seus posts. Muito fofa essa sua sobrinha todo sucesso para ela =)
Queridos leitores,
Muito obrigada pelo carinho que vocês deixaram nos comentários. Vocês sempre me fazem ganhar o dia:)
Sandra, quando vc publicou esse post eu estava em plena atividade familiar fervilhante. Minha caçula se casaria do dia 25 de maio. Minha filha, que mora nos States, estava aqui juntamente com o marido, sogra, sogro e, claro, minha neta. Quando li as primeiras linhas do post fechei a tela e pensei: esse é pra ser lido com calma. O tempo passou, a rotina voltou ao normal e acabei me esquecendo que pulara um post. Hoje, enquanto espero uma fornada de bolinhos de banana e aveia ( o perfume já está invadindo a casa), resolvi fazer um tour pelo meu blog favorito e encontro essa pérola. Eu, quando nasci já era tia de 2 e tinha mais um a caminho. Hoje, tenho 18 sobrinhos, 37 sobrinhos-netos e 9 sobrinhos-bisnetos. Por que estou dizendo tudo isso? Porque me emocionei muito com sua história e fiquei pensando que a família é realmente uma grande dádiva. Ah, diga pra Lê (olha a intimidade) que tenho duas filhas veterinárias. É uma profissão linda! Grande abraço!