Quando provei alcachofra pela primeira vez eu já era adulta e morava em Paris. Nunca tinha visto esse vegetal em Natal, minha cidade de origem. Mas eu fui apresentada a coração de alcachofra em conserva, não a versão fresca. Embora eu tenha visto muitas alcachofras nos mercados parisienses, eu me sentia extremamente intimidada por ela. “Como preparar essa flor em casa?” eu me perguntava, mas não me dava o trabalho de perguntar a alguém que conhecesse a resposta. Durante anos me convenci, mais uma vez, sem nunca ter me dado o trabalho de verificar se minhas suspeitas tinham fundamento, que era extremamente complicado preparar aquilo em casa.
Até que um dia, quando ainda morava na Palestina, confessei pra minha amiga Johanna que apesar de adorar alcachofra em conserva e ter certeza absoluta que a versão fresca era ainda melhor, eu nunca tinha preparado uma em casa. Contei também que muitos anos atrás eu tinha visto um filme, “Como água para chocolate”, e que nesse filme uma mulher, imagino que se trata da protagonista, explica pra outra mulher como comer alcachofras e foi uma das cenas mais sensuais que já vi. Eu era adolescente e lembro de ter ficado impressionada com a cena, mas somente anos depois interpretei que aquilo era uma metáfora pra sexo. Mais precisamente sexo oral com uma mulher, explicado por uma mulher. Preciso rever o filme pra ver se a cena existe mesmo, ou se vi/li em outro lugar, pois não encontrei nenhuma referência à ela na internet. Será que imaginei a cena? Será que minha mente gastro-vegana-lésbica alterou a minha percepção da cena e na verdade era um homem e uma mulher comendo um pobre bichinho ou falando de flores?
Johanna se animou e disse que precisávamos ter um encontro romântico-amistoso-gastronômico ao redor de uma alcachofra e me fez prometer que minha primeira vez seria com ela e mais ninguém. Só que fui embora da Palestina e isso acabou nunca acontecendo. Uns dois anos depois dessa conversa eu me encontrava de volta à Terra Santa, hospedada na casa de uma ex-namorada em Jerusalém, só que na época estávamos naquela fase nebulosa onde já não estávamos juntas nas grandes linhas da vida, mas estávamos juntas no espaço de alguns dias. Vi algumas alcachofras cruas em cima da mesa da cozinha e contei que nunca tinha comido uma fresca, somente em conserva, e ela prometeu prepara-las comigo naquela noite. Mas ela tinha um trabalho pra terminar e acabou me dando instruções, sentada no sofá olhando pro computador que estava no seu colo, pra cozinhar as flores sem a presença dela na cozinha.
Foi a primeira vez que comi alcachofra fresca e eu tinha preparado tudo sozinha, com uma expectativa e ansiedade que estavam batendo no teto. Eu estava ansiosa pra descobrir, enfim, o sabor do vegetal fresco. E, inconscientemente, tinha expectativas de reproduzir de alguma maneira a sensualidade da cena (imaginária?) do filme e talvez, talvez, reconectar com a paixão que tinha sido interrompida no ano anterior.
A degustação foi menos sensual do que eu tinha imaginado. Na verdade não foi nem um pouco sensual. Tantos anos sonhando com aquele momento e lá estava eu, na mesa com a mulher por quem eu ainda estava apaixonada e com as minhas primeiras alcachofras frescas, preparadas pelas minhas próprias mãos…mais a amiga com quem ela dividia a casa, a preocupação de terminar o trabalho dela e uma ausência total de paixão do lado de lá da mesa. Aquele jantar foi muito simbólico pra mim e dois dias depois deixei aquela casa, saí do país (estava previsto) e escrevi no meu caderno de anotações íntimas, onde escrevo o que não quero esquecer, que o capítulo tinha se fechado definitivamente e que a conexão mágica que um dia tivemos tinha desaparecido e não voltaria nem mesmo com uma degustação lenta e sensual de pétalas de alcachofra.
Meses depois me mudei pra Beirute e dividi o apartamento com Valentina, uma italiana de quem me tornei amiga. Ela também adorava alcachofras e sempre comprava e preparava em casa. Só que a receita dela era completamente diferente da maneira que eu tinha aprendido, com minha ex em Jerusalém, a preparar o vegetal. E o resultado era ainda melhor. Valentina me explicou passo-a-passo como preparar alcachofra do jeito que ela tinha aprendido com a mãe, na Itália, e preparamos essa delícia várias vezes durante os meses que moramos juntas. Valentina tinha o costume interessante de comer alcachofra com garfo e faca. Nunca entendi como ela conseguia retirar os poucos gramas de polpa de cada pétala dessa maneira e assistia à cena fascinada. Mas estou convencida de que comer com as mãos é o que acrescenta sensualidade à experiência, deixando a alcachofra ainda mais deliciosa.
Depois daquela primeira degustação que deixou um sabor amargo na boca que não tinha nada a ver com a pobre alcachofra, todas as seguintes foram positivas. Comi muitas vezes com Anne. Jantei alcachofras em Paris recentemente, preparadas (no vapor) pela minha querida amiga Martine. Antes de ontem fiz alcachofras pro meu sogro e minha cunhada, que achou interessante e mais saborosa a minha maneira de prepara-las (na verdade, a maneira de Valentina). Até preparei, finalmente, alcachofras pra minha amiga Johanna e confessei, com uma certa culpa, que eu a tinha traído e que tinha comido alcachofras pela primeira vez com outra mulher. Ela tinha esquecido completamente da promessa e continuou retirando as pétalas do pedaço de alcachofra no prato e comendo distraidamente, sem nenhuma ofensa.
E assim acabaram-se minhas expectativas românticas com relação à essas lindas e suculentas flores e hoje elas são sinônimo de convivialidade e amizade. Mas ainda preciso rever “Como água para chocolate” pra descobrir se a tal cena, que alimentou minhas fantasias por tantos anos, só existe na minha imaginação.
*Graças à ajuda das pessoas bacanas que lêem esse blog (Obrigada, Lila e Theo!) descobri que a cena existe, sim, mas em outro filme: “A excêntrica família de Antônia”. Mistério resolvido.
Como preparar alcachofra
Antes de prepara-las, algumas dicas na hora de escolhe-las. Prefira alcachofras pequenas e que são pesadas pro tamanho (significa que tem mais polpa). Aperte as flores na mão. Se parecerem esponjosas, não estão mais frescas. Escolha as que tiverem uma consistência mais firme e sem pétalas murchas ou secas.
A maneira mais simples de preparar alcachofras é cozinhando o vegetal inteiro na água grande ou no vapor. Nada mais simples e menos intimidante. Não sei porque passei tanto tempo com medo de cozinhar alcachofra em casa. Ferva uma grande quantidade de água com sal (como se fosse cozinhar macarrão) e quando começar a ferver mergulhe as alcachofras inteiras (corte somente o caule, caso ainda esteja junto da flor) e deixe cozinhar tampado. Está cozido quando você puxar uma pétala e ela se desprender facilmente, ou quando uma faca inserida na base da alcachofra (coração) entrar facilmente.
Outra maneira simples e mais saborosa é cozinhar as flores inteiras no vapor. Você pode cortar a base e o topo das alcachofras (como na primeira foto abaixo) pra cozinhar mais rápido. Mas a minha maneira preferida de preparar alcachofras, a que produz o melhor sabor, na minha opinião, é guisada. Pra isso você vai ter que preparar as flores da seguinte maneira:
Lave as alcachofras. Encha uma saladeira de vidro ou plástico (ou bacia, dependendo do número de alcachofras preparadas) com água fria e o suco de um limão. Você vai mergulhar os pedaços de alcachofra que for cortando na água com limão pra impedir que se oxidem e escureçam.
Corte o caule e o topo da alcachofra, como na foto abaixo. A parte superior das pétalas não tem polpa e pode ser descartada.
Corte a alcachofra ao meio na vertical (no sentido do caule) e em seguida corte cada metade ao meio novamente, dividindo cada alcachofra em quatro.
Enquanto você prepara um pedaço, mergulhe os três outros na água com limão. Use uma colher de chá pra retirar o miolo da alcachofra, a parte “peluda”, com o mesmo gesto que você usaria se estivesse retirando a polpa de um abacate. Em seguida use a ponta da colher pra raspar algum pelo que tenha ficado pra trás.
Mergulhe o pedaço limpo na água com limão e repita a operação com os outros pedaços. Só depois de ter terminado de tratar a primeira alcachofra, corte a segunda e assim por diante. Deixe a alcachofra na água com limão até o momento de colocar na panela.
A alcachofra de Valentina (alcachofra guisada)
Escolha 1 alcachofra por pessoa. Prepare as flores como explicado acima.
Em uma panela grande, de preferência com o fundo espesso, aqueça um pouco de azeite. Pra preparar 4 alcachofras usei aproximadamente uma colher de sopa de azeite. Coloque dois dentes de alho descascados e cortado em 4. É importante cortar o alho em pedaços grandes pois alho picadinho tem um sabor mais intenso (e inversamente) e as italianas usam o alho de maneira bem mais delicada que nós. Imediatamente escorra as alcachofras, sacuda um pouco pra eliminar o máximo de água possível e coloque os pedaços na panela, um por um, com um dos lados cortados em contato com o fundo. O ideal é formar uma só camada, pra que todos os pedaços possam dourar, mas dependendo do tamanho da sua panela você terá que colocar alguns pedaços sobre os outros (eles vão cozinhar no vapor, então sem problemas). Tempere com algumas pitadas de sal e cozinhe tampado, em fogo baixo. Não precisa acrescentar água nem outro tipo de líquido, pois a água presente naturalmente dentro do vegetal será suficiente pra criar vapor dentro da panela e cozinhar tudo. Dê uma olhada dez minutos depois e vire os pedaços pra dourar do outro lado. Essa etapa é opcional, mas eu acho que intensifica ainda mais o sabor. O tempo de cozimento vai depender do tamanho das suas alcachofras, mas se as suas forem pequenas vai levar uns 25 minutos. Pra saber se estão cozidas insira uma faca na base (a parte mais densa e que leva mais tempo pra cozinhar) e se estiver macia, está pronta. Se sentir que sua alcachofra está começando a queimar, mas ainda não está totalmente cozida, acrescente um pouquinho de água, só o suficiente pra molhar o fundo da panela, cubra e cozinhe mais um pouco.
Sirva a alcachofra guisada com uma vinagrete (francesa, não a brasileira que tem cebola e tomate picados) simples: misture uma parte de vinagre (balsâmico, de preferência), duas de azeite, um pouquinho de mostarda de Dijon -opcional- sal, pimenta do reino e as ervas frescas, picadinhas, que você tiver na cozinha.
Nunca comeu alcachofra fresca? Aqui vai um breve tutorial. Descole uma pétala, começando pelas exteriores e avançando em direção ao centro. Molhe a base da pétala na vinagrete, coloque a base da pétala na boca (o lado interno em contato com a língua) e raspe a base entre os dentes, extraindo a polpa da alcachofra. Não se surpreenda se pensamentos sensuais atravessarem sua mente e você sentir vontade de sorrir pra pessoa sentada do outro lado da mesa. Já pensando nisso, escolha seu lugar na mesa de maneira estratégica. Quando tiver feito isso com todas as pétalas você vai se deparar com o coração da alcachofra, a parte mais gostosa e onde tem mais polpa. Como você já retirou os pelinhos na preparação que descrevi acima, é só comer e se deliciar. Mas se você cozinhar a alcachofra inteira, na água ou no vapor, você vai precisar retirar os pelos com uma colher antes de comer.
Suponho que a cena seja do “Antonia’s line” – é exatamente assim, uma cena linda de uma mulher seduzindo a professora da filhinha (ok, essa parte não é tão sensual).
Rapaz, vivi todos esses anos enganada!! 0_0 Acabo de procurar e é exatamente dessa cena que eu estava falando. Me enganei de filme. Obrigada por resolver o mistério.
🙂
e é isso, neste impávido colosso o título virou essa coisa algo patética – A excêntrica família de Antonia. As habituais excelentes traduções das distribuidoras.
O filme é A Excêntrica Família de Antonia! Sei porque tbem me marcou, o filme e a cena!
Isso, isso, isso! Agora vou ter que ver o filme todo novamente.
Ótima história como sempre, se essa alcachofra guisada estiver a altura do seu tutorial de degustação de alcachofras essa receita deve ser mesmo um espetáculo!!!
Salivei com esse tutorial! Minha mãe costuma preparar as alcachofras na pressão e faz um molhinho simples e delicioso pra molhar as pétalas, com alho, azeite, vinagre, orégano e reino. Adorei a receita dela guisada!
Hoje tirei a tarde para “por em dia” as leituras lá no grupo do telegram e também aqui no blog… pra mim, tem poucas coisas na internet que são tão deliciosas e ricas em aprendizados quanto passar um tempo mergulhando nas suas publicações por aqui, Sandra. Vim parar nesse texto sobre a Alcachofra e estou maravilhada. Compartilhei com um amigo que disse “deu vontade de não só preparar, mas criar uma história com alcachofra”. Eu não poderia concordar mais, pois é exatamente esse o sentimento que toma conta de mim quando leio o que você escreve: vontade de viver também uma história com aquela receita ou com o vegetal em questão ao cozinhar com/para alguém.
Um abraço forte!
Mulher, deixa eu te contar que tem uma sequência dessa história da alcachofra! Com a mesma pessoa (a ex ex mítica), dez anos depois, em outro país. Alcachofra rende muita história 😉