Há muitos anos me faço essa pergunta e depois de muita pesquisa e reflexão acabei descobrindo que a resposta é complexa.
Em 2014 o Human Research Council fez um estudo com ex vegetarianas/veganas (vou escrever “vegs”, pra encurtar) pra tentar entender por que pessoas abandonam o vegetarianismo/veganismo. O estudo foi encomendado pra tentar entender esse fato alarmante: 84% das pessoas que se tornaram vegs voltam a comer animais. É essencial entender as razões por trás disso se quisermos construir um movimento antiespecista eficaz. Foram 11 mil ex vegs entrevistadas e a lista de razões que as fizeram deixar de ser vegs é longa, mas as principais são de ordem social. A razão principal (apontada por 84% das entrevistadas) foi “não participar ativamente de grupos vegs”, seguido de “não gostar de ser visto como diferente por ter dieta veg” (63%), “não ver vegetarianismo/veganismo como parte da identidade” (58%) e “não ter interações suficientes com outras vegs” (49%).
O estudo também confirmou algo que eu já tinha descoberto de maneira empírica: 33% das ex vegs voltaram a comer animais depois de começar um relacionamento com uma não-veg.
Tem um argumento usado pra despolitizar o veganismo que diz que o “veganismo radical”, que segue boicotando empresas especistas, faz as pessoas abandonarem o veganismo, mas isso não se confirmou. A verdade é que quem se torna veg, mas não faz parte de uma comunidade veg, pode se sentir tão isolada e diferente que acaba voltando a comer animais. Somos seres sociais e se for preciso escolher entre viver nossa ética ou pertencer à uma comunidade, a maioria de nós escolherá a segunda opção.
Tá, vimos os motivos que levam pessoas a deixarem de ser vegs, mas será que os motivos que as levaram a se tornar vegs também importam aqui? Sim! 58% das ex vegs se tornaram vegs pela saúde, enquanto somente 27% o fizeram pelos animais. Quando a motivação é saúde, a pessoa tende a abandonar o veganismo com mais facilidade: se aparecer outra “dieta” que seja vista como mais saudável, se ela não sentir os “benefícios” que prometeram que ela sentiria adotando o veganismo…
Resumindo. Pessoas deixam de ser veganas principalmente porque 1-entraram no veganismo por razões não-éticas, 2-não tinham uma comunidade vegana (amigas, familiares) pra apoiá-las e 3-ter uma prática que sai da norma era um peso pra elas. O custo social de ser vegana (ser vista como diferente, ser chamada de “difícil” nos almoços de família, ser alvo de piada carnista) parece alto demais quando as motivações não são de ordem ética.
Isso nos dá pistas de como construir um movimento vegano eficaz, mas antes de traçar estratégias, é preciso dar um passo pra trás e analizar isso dentro de um contexto mais amplo.
Como alguém pode voltar a participar ativamente da opressão animal depois de ter entendido que é possível não compactuar com ela? Não vim aqui culpabilisar ninguém, só oferecer uma reflexão pra tentar entender por que pessoas abandonam o veganismo, mesmo quando elas têm todas as condições de seguirem veganas.
Apesar de ter começado esse texto explicando as razões que, segundo as pessoas entrevistadas no estudo citado acima, as levaram a abandonar o veganismo, é preciso ir além e não se contentar em individualizar esse debate.
O especismo é a ideologia que discrimina e oprime com base na espécie e isso é o resultado de uma força social organizada. Tudo na nossa sociedade facilita e incentiva a exploração animal: propaganda de carne por todos os lados, oferta de produtos animais em todos os locais, médicos e nutricionistas afirmando que é essencial comer animais pra ter saúde. Os interesses econômicos por trás do hábito de comer animais e seus derivados são gigantes. Ir contra essa força é uma prática constante que pode ter um custo social alto demais pra certas pessoas. Afinal, ser vegana é, de certa forma, entrar num grupo minoritário e navegar um mundo que, estruturalmente organizado de maneira especista, não foi feito pra acolher e levar em consideração as necessidades de veganas.
E é aqui que entra nossa missão: construir um movimento organizado e forte, capaz de mexer na estrutura especista, enquanto, ao mesmo tempo, lutamos por transformações mais imediatas pra, de um lado, acabar com a exploração animal onde já é possível e, por outro lado, retirar os obstáculos que impedem as pessoas de adotarem o veganismo e facilitar a vida de quem já é vegana. Trabalhar pra ter merenda vegetal nas escolas e opção vegetal no restaurante universitário são alguns exemplos.
E se ex-veganas resolverem voltar pro movimento, vamos garantir que elas serão bem recebidas:)
PS Bora parar de glorificar celebridades veganas? Aí já evita o desgaste quando elas anunciarem (surpresa!) que não são mais veganas.
Bom dia.
Sou Vegetariano estrito a mais de 10 anos e no começo eu tinha vergonha de ir em restaurantes e ou lanchonetes e perguntar se tinha opções veganas. Festas de família também eram muito estranhas pois as pessoas achavam engraçado a pessoa que não comia carne.
Hoje em dia está bem melhor e como você disse as pessoas até acham na moda.
Obrigado por mais esse ótimo texto.
Eu jamais imaginaria que 84% das pessoas desistem do veganismo. Pensei que fosse 15%, no máximo. Me tornei vegana há cerca de dois meses e já fico triste com isso.
Virei vegana por motivos éticos e confesso que nunca tive amigos veganos, mas cai mesmo no grupo dos 33% que volta por causa do parceiro. Estávamos tendo MUITAS brigas e chegamos ao acordo de que os dois seriam ovolactovegetarianos quando saíssemos para comer fora ou quiséssemos fazer alguma comida diferente em casa… Agora tem queijo e ovo em tudo, tanto em casa como na rua. Sem falar que ele só cumpriu com a parte dele do acordo nos primeiros meses, hoje em dia sempre pede algo com carne nos restaurantes e faz coisas com carne pra ele em casa com frequência… Acredita que quando eu reclamo ele ainda tem a ousadia de me falar que EU tenho que lembra-lo do nosso acordo? Estou voltando a ter uma alimentação completamente vegetal aos poucos e estou me preparando para a próxima briga.
Seu comentário se junta a vários relatos que recebi durante os anos. Interessante notar a questão de gênero aqui, pois em todos os relatos se tratava de uma mulher vegana/vegetariana e de um parceiro homem que comia animais. Acho que tem matéria pra refletir aqui.
Conheci um camarada que tinha sido preso político na Itália durante anos. Já velho ele me contava que introduziu no presídio, com outros, as massagens. Os mais fortes massageavam os mais velhos ou doentes. E depois se massageavam mutuamente, aprimorando a prática com virtuosismo.
Nunca vi essa parceria entre mulheres…
Esse homem me contou que chegou a ser o líder de sua cela e assim pôde, finalmente, se ocupar da comida.
Quem cozinha tem poder. Trouxe essa máxima para minha vida. Sou eu quem me ocupo da cozinha porque em caso contrário, os bichos voltam para a geladeira, para as panelas e para a mesa.
Agradeço pelo espaço de reflexão.
Verdade, mas as vezes penso que pode ser só de pessoa pra pessoa também… Já namorei um onívoro que virou ovolactoveg por minha causa, por exemplo. Ah, e também conheço um garoto ovolactoveg que namora uma onívora, mas nenhum dos dois reclama da alimentação do outro… Aparentemente a namorada se sentiu meio culpada no começo, mas ele disse que ela não precisava mudar por causa dele, só se ela quisesse. Gostaria de ouvir mais relatos dos homens sobre isso pra termos uma discussão legal 🙂