Uma das perguntas que escuto com mais frequência é: “Como substituir a carne?” Geralmente feita por pessoas que estão pensando em diminuir ou parar de comer animais, ela diz respeito ao aspecto nutricional da refeição. O que a pessoa está perguntando, na verdade, é: “O que preciso comer no lugar da carne pra ter acesso aos nutrientes que antes eu conseguia através dela?”
Mas pra além da questão nutricional, isso também está relacionado a um conceito que herdamos da culinária que vê animais como comida, o conceito de mistura. E é sobre isso que gostaria de escrever hoje.
O conceito de mistura (proteína animal vista como o componente principal do prato) tem três camadas: nutricional, de status e gastronômica. Vou tratar da nutrição primeiro e das outras em seguida.
Do ponto de vista nutricional carne não é essencial. Vários povos do mundo vivem sem comer animais, além de nós, veganas, e se isso não é evidência suficiente pra você, a ciência já provou que não precisamos comer animais nem o que seus corpos produzem (ovos, leite) pra viver, nem pra ter saúde. Logo, você pode substituir a carne por…nada. Ela não precisa ser substituída.
O tradicional pf segue completo sem a carne (feijão + arroz + salada). Feijão é a melhor fonte de proteína que conhecemos, sem os inconvenientes da carne animal, e é uma excelente fonte de ferro. Se você não tem o costume de comer leguminosa todos os dias, essa é a única adaptação que você precisa fazer pra excluir a carne de animais do cardápio (imaginando que o resto da sua alimentação já é variada, com cereais, frutas, verduras e sementes). Lembrando que leguminosas são o grupo do feijão, lentilha, grão de bico, ervilha e fava. Não sabe como prepará-las? Tem várias receitas aqui, só clicar na página “Receitas”.
Mas se não precisa substituir a carne por nada (mais uma vez, imaginando que você tem uma alimentação variada, que é a recomendação pra todas as pessoas, veganas ou não), por que pessoas não-veganas, e até veganas, olham pra um prato de feijão+arroz+verduras e acham que está faltando algo? Aqui entra a questão de status.
Na escala de valor da sociedade em que vivemos, comida vegetal ocupa uma posição inferior quando comparada à comida animal. Fomos treinadas a ver pedaços de animais e seus derivados como “mais nutritivos”, mas também com “mais status”. É a comida da elite e isso acaba se tornando o modelo que desejamos seguir.
Mas tem uma pergunta muito importante por trás disso. Quem ganha com o protagonismo de produtos animais na alimentação? E quem ganha quando a estrela do nosso prato passa a ser o vegetal (fresco)? Respostas: a agropecuária e a agricultura familiar, respectivamente. Aqui começamos a entender os interesses financeiros por trás do mito de que carne é essencial e da fabricação dos nossos desejos alimentares carnistas.
E esse mito/manipulação tem uma versão vegana. Entram em cena salsicha, hambúrguer e agora até frango… vegetal, feitos pelas gigantes do agroalimentar. Isso não é apontamento de dedo pra quem gosta desses ultraprocessados, é um convite pra uma reflexão mais profunda.
Ninguém precisa de “carne vegetal” pra retirar animais e seus derivados do prato. A existência desses produtos, longe de ser uma vitória pro movimento vegano, busca nos manter dependentes da indústria. É isso que está em jogo quando a maior produtora de carne de vaca do mundo lança um hambúrguer “vegano”. E tem mais. Isso perpetua outro mito, o de que é caro e difícil ser vegana. Mas tem mais uma consequência que se relaciona com o assunto de hoje. Produtos que imitam animais reforçam o mito de que feijão com arroz e verdura não formam um prato completo.
E pra entender a última camada desse folhado, precisamos também entender o conceito de mistura do ponto de vista do sabor.
A culinária que vê animais como comida estrutura o prato ao redor do animal morto. É ele que vai receber o melhor tipo de cozimento, o molho caprichado, os temperos especiais. Junta-se a isso o fato que animais são ricos em proteína e possuem o sabor “umami”. Essa palavra japonesa, que pode ser traduzida como “delicioso”, faz referência ao quinto sabor básico (junto com doce, salgado, ácido e amargo). Carne de animais também tem gordura, um componente chave pra realçar o sabor. Muitas moléculas de sabor são lipossolúveis, ou seja, se dissolvem, e se tornam perceptíveis pras nossas papilas, apenas em contato com gordura.
Nesse tipo de culinária, o animal é o prato principal, o vegetal é acompanhamento. Por isso vegetais não trazem a mesma carga de sabor, pois estão sempre em segundo plano. E ainda assim pedaços de animais e seus derivados são usados pra realçá-los. Basta pensar na função da manteiga, creme, queijo e bacon em muitas receitas de vegetais. Assim somos induzidas a achar o sabor de vegetais inferior. Retirar o animal do cardápio, mas manter esse padrão de culinária, faz com que o prato vegetal não ofereça a mesma satisfação, pois o elemento que carregava todo o sabor sumiu.
Essa maneira de cozinhar precisa ser superada. Ela cria necessidades falsas (como os ultraprocessados “veganos” que imitam vaca, frango… pra ocupar o lugar da mistura) e nos impede de apreciar o sabor dos vegetais pelo que eles realmente são. Se libertar do conceito de “mistura” (seja um animal ou algo que imite um produto animal) é o primeiro passo numa importante mudança de paradigma. É passar a valorizar o vegetal e quem planta o vegetal. E é ver valor no vegetal pelo que ele é, não pelo que ele tenta imitar. Como diz meu compa de panela e luta Ruan Felix, “nessa revolução lentilhas serão lentilhas”.
Culinária vegetal não precisa e, na minha opinião, não deve, ser uma culinária de imitação. São tantos sabores, texturas e possibilidades no reino vegetal que seria uma pena se contentar em simplesmente reproduzir pratos com animais em versão vegetal. Vegetais só parecem coadjuvantes pra quem nunca os convidou pra ser a vedete da alimentação. Preparando certo eles viram a estrela do prato e enquanto você se delicia com a comida vegetal bem preparada, o conceito de “mistura” vai parar de fazer sentido: está tudo saboroso ali e você não sente mais falta de nada.
Concordo totalmente com você nesse ponto. Eu sinceramente não vejo o veganismo liberal como fim da exploração animal, porque teoricamente vai alcançar mais pessoas. Consumo poucos alimentos industrializados. Mesmo antes de me tornei vegana, há 3 meses, eu passei 12 anos como ovolactovegetariana e sinceramente nunca senti falta de carne. Eu simplesmente odeio o cheiro, mesmo cozida.
Sou onívora mas concordo plenamente com você. Já te sigo desde 2009 porque amo tanto os textos, principalmente os da época da sua residência na Palestina, e AMO suas receitas. Quando da polêmica da carne de frango impressa pela KFC foi que mais me lembrei dos seus pensamentos e fatos expostos. Eu não tenho intenção de me tornar vegana ou ovolactovegetariana, mas meu consumo de carne é bem reduzido, pelo simples motivo de que não consigo comer sem vegetais. Um prato de arroz, feijão e carne não é completo pra mim, mas um de arroz, feijão e um vegetal já é. Pelo sabor dos alimentos mesmo. Meus pratos são sempre mais focados no vegetal e este é a minha mistura, desde criança. Me dói perceber que amigas veganas sentem mais esse apego do que eu, uma onívora :/