Perguntas frequentes sobre veganismo – parte II

No último post trouxe algumas das perguntas/afirmações que ando escutando com frequência de pessoas que comem animais e seus derivados. Agora chegou a hora de conversar com pessoas veganas ou que estão considerando o veganismo, mas ainda têm dúvidas.

“Não me sinto à vontade pra recusar carne em comunidades tradicionais.”

Chegar em territórios tradicionais pra veganizar pessoas cheira a colonialismo. A menos que você faça parte da comunidade em questão, não faça isso.

Mas se você diz “como carne se for preparada por povos tradicionais/lavradores/pessoas empobrecidas porque elas não vão entender o veganismo e recusar seria falta de educação/elitismo”, deixa eu perguntar:

O que te faz pensar que vir de uma comunidade tradicional ou ser de origem humilde torna a pessoa incapaz de entender as razões que levam alguém a ser vegana?

Pessoas historicamente oprimidas não são incapazes de compreender a luta por emancipação animal, nem de somar pra derrubar a estrutura que produz especismo. No veganismo popular, a vertente que defendo, essas pessoas são as verdadeiras protagonistas dessa luta. Não ONGs internacionais, não celebridades e seu veganismo-estilo-de-vida.

Me manter vegana em territórios tradicionais não é a mesma coisa que impor o veganismo a outras pessoas: é coerência com meu compromisso com a luta por emancipação animal. E o que justifica supor que povos tradicionais e populações empobrecidas não têm a capacidade de respeitar esse meu compromisso? Isso é condescendência.

O problema não é recusar o animal oferecido e sim a maneira como isso é feito. Falo de experiência própria: basta dizer, com educação: “Não como animais e seus derivados e fico feliz comendo só batata, mesmo, muito obrigada.” E nem precisa explicar as razões do seu veganismo (a menos que te perguntem). Podem ficar curiosas pra saber a razão, podem inclusive achar bobagem sua (não se ofenda). Mas todas as vezes que recusei o corpo de um animal com educação e agradeci pelos vegetais oferecidos, ninguém se ofendeu nem me achou mal educada. E não me surpreende que foram as pessoas com o maior capital econômico e social que reagiram de maneira negativa e na defensiva com relação ao meu veganismo.

“Como substituir a carne?”

Do ponto de vista nutricional carne não é essencial, logo não precisa ser substituída.

O tradicional PF segue completo sem a carne (feijão + arroz + salada). Feijão é a melhor fonte de proteína que conhecemos (sem os inconvenientes da carne animal) e uma excelente fonte de ferro. Então por que pessoas não-veganas (e até veganas) olham pra um prato de feijão+arroz+verduras e acham que tá faltando algo? E a mistura?

Na escala de valor da sociedade em que vivemos, comida vegetal ocupa uma posição inferior quando comparada à comida animal. Fomos treinadas a ver pedaços de animais e seus derivados como “mais nutritivos”, “com mais status”. O animal é o prato principal, o vegetal é acompanhamento. E é esse mito que faz com que vegetais, sozinhos, pareçam incompletos.

Quem ganha com o protagonismo de produtos animais na alimentação? E quem ganha quando a estrela do nosso prato passa a ser o vegetal (fresco)? (Respostas: a agropecuária e a agricultura familiar, respectivamente.) Aqui começamos a entender os interesses financeiros por trás do mito.

E esse mito tem uma versão vegana. Entram em cena salsicha, hambúrguer e agora até frango… vegetal, feitos pelas gigantes do agroalimentar. Isso não é apontamento de dedo pra quem gosta desses ultraprocessados, é um convite pra uma reflexão mais profunda.

Ninguém precisa de “carne vegetal” pra retirar animais e seus derivados do prato. Já falei de como a existência desses produtos pode nos manter reféns da indústria (é isso que ela busca ao lançar produtos “veganos”) e de como isso perpetua outro mito, o de que é caro ser vegana. Mas tem outra consequência que se relaciona com o assunto de hoje. Produtos que imitam animais reforçam o mito de que feijão com arroz e verdura não são um prato completo.

Então vim saudar o PF e dizer que se libertar do conceito de “mistura” (seja um animal ou algo que imite um produto animal) é o primeiro passo numa importante mudança de paradigma. É passar a valorizar o vegetal e quem planta o vegetal. E é ver valor no vegetal pelo que ele é, não pelo que ele tenta imitar. Como diz meu compa Ruan Felix “Nessa revolução, lentilhas serão lentilhas”.

“Misturar veganismo com outras causas enfraquece o movimento e afasta pessoas.”

Se engana quem acha que o veganismo popular quer “passar o humano na frente do animal”, ou que ele afirma que “devemos esperar o fim da opressão humana pra aí, sim, lutar por libertação animal”. O que acontece é que enxergamos a estrutura que produz a lógica de dominação e ao perceber que as opressões (humana e não humana) se alimentam entre si, torna-se evidente que combater opressões de maneira seletiva não é eficaz: temos que destruir a estrutura. A solidariedade com outros movimentos sociais não enfraquece o veganismo, pelo contrário! Ela fortalece nosso compromisso com a causa animal.

“Mas humanos tem vários movimentos. Animais só tem o veganismo!”. Veganismo é sobre libertação animal, não sobre humanos. Mas a luta contra o especismo não pode ser feita por suas vítimas: animais precisam de humanos pra lutar por eles. E humanos estão sujeitos à matriz de dominação que produz o especismo, mas também o racismo, machismo, LGBTfobia… É mais difícil abraçar a causa animal quando você tem que mobilizar toda a sua força pra chegar vivo no final do dia. Quando paira em permanência sobre a sua cabeça a ameaça de uma bala da polícia, porque você é negro e periférico.

Se a ideia é popularizar o veganismo, então precisamos do maior número de pessoas possível lutando pelos animais e isso só vai acontecer se as pessoas se sentirem acolhidas no movimento. Tem quem acredite que não se posicionar como anti-racista é estratégico pra “não afastar pessoas do veganismo”. Mas que pessoas se afastam de um veganismo anti-racista? Racistas.

Que movimento vegano queremos construir? Se você respondeu: “Um que funcione!”, saiba que pra isso acontecer precisamos da adesão da maior parte da população e a maior parte da população quer distância de um movimento que não se solidariza com a sua opressão e reproduz, no seu ativismo, as discriminações que ameaçam a sua existência. Não se trata de “só luto pela sua causa se você se solidarizar com a minha” e sim de precisar (no mínimo) estar viva e em segurança pra poder lutar pelos animais.

“Como trazer veganos liberais pro nosso lado?”

Veganismo liberal se opõe à exploração animal sem no entanto buscar o fim da estrutura socio-econômica responsável por ela. Foca na mudança individual, ignorando os fatores sociais que limitam nossas escolhas, e vê o capitalismo como aliado, pois acredita que a expansão do mercado vegano é a melhor estratégia pra veganizar pessoas.

É o discurso que tem mais visibilidade atualmente, então muitas pessoas (do povo) entram no veganismo acreditando nele, até conhecerem a vertente popular e passarem a questiona-lo. Esse texto não é sobre elas, é sobre quem produz esse discurso.

Percebendo que a exploração animal é um dos pilares que sustentam o capitalismo, se torna óbvio que veganismo que não é anti-capitalista trabalha contra os interesses dos animais. E ao entender que por trás da dominação animal tem a mesma lógica que produz a dominação humana e que elas se alimentam entre si, fica evidente a impossibilidade de acabar com opressões de maneira seletiva. Um movimento de libertação animal que ignora outras formas de opressão é ineficaz.

Então por que certas pessoas defendem o veganismo liberal? Porque mexer na estrutura socio-econômica significa mudar relações de dominação das quais elas se beneficiam. Querem acabar com um tipo de dominação, o especismo, enquanto participam ativamente da manutenção de outros sistemas de dominação. Isso explica a reprodução de práticas racistas, machistas e classistas dentro do veganismo liberal, assim como a defesa do colonialismo (soldados veganos israelenses, por ex).

Veja que o cerne da questão não é a disputa de estratégias de ativismo e sim a defesa de visões de mundo opostas. Veganos liberais não virão pro nosso lado porque o projeto de sociedade que defendemos não permitirá que nenhum sistema de dominação perdure, o que significa que eles não farão mais parte de uma classe dominante e não poderão mais se beneficiar da exploração de outros grupos. O compromisso de veganos liberais com libertação animal está condicionado à manutenção do sistema que preserva seus interesses de classe e um movimento vegano que vá contra esses interesses nunca vai fazer sentido pra eles.

2 comentários em “Perguntas frequentes sobre veganismo – parte II

  1. É impressionante esse protagonismo da carne em um prato para muita gente:

    1) Vi um episódio do Globo Repórter em 2013: mostrou o almoço de um motorista de táxi, que o almoço dele era carne, arroz e feijão; a entrevistadora do programa perguntou para ele, se ele não iria comer salada/outros vegetais e ele respondeu que não.

    2) Vi o vídeo Como e porque parei de comer carne (um vídeo do canal Lu Azevedo, esse canal é apresentado por uma brasileira que mora no Canadá), nos tempos 5:33 a 6:28 e 8:26 a 8:50:
    Ela falou que era cliente de um atacadista, então ela comprava bastante carne, ela falou que através disso a janta estava garantida por um mês. Ela teve dificuldade em parar de comer frango e carne bovina, porque ela falou que a janta dela era muito prática porque era a carne, arroz e salada; e que por isso quando ela resolveu parar de comer essas carnes, ela falou que sentiu dificuldade para fazer o jantar. Ela falou que as jantas são menos práticas do que quando ela comia frango e carne vermelha; mas ela já está adaptada em fazer refeições sem essas carnes e a não comer frango e carne vermelha.

    3) Vi o vídeo Como eu virei vegana (um vídeo do canal Drica na Cozinha; esse canal é apresentado pela Drica Avelar, que é vegana e chefe de cozinha; em 2018, ela participou do Masterchef; talvez seja o único canal vegano brasileiro no Youtube apresentado por um(a) chefe), nos tempos 8:49 a 9:22:
    Ela falou que quando fez curso de gastronomia, ela falou que aprendeu que a comida começa pela proteína animal; ela falou que a proteína animal está escrita de forma destacada no cardápio de muitos restaurantes, como picanha e o resto e salmão e o resto, ela falou que esse resto é acompanhamento e serve para acompanhar a proteína animal. Ela falou que nessa percepção dos vegetais serem acompanhamentos, ela teve dificuldade de elaborar um prato principal quando ela se tornou vegana.

    Observação:
    Quanto a essa brasileira que mora no Canadá, ela já tinha parado de comer carne de porco antes de parar de comer frango e carne bovina, por que ela sentiu muito enjoo na gravidez e depois da gravidez.

    Links de alguns vídeos:
    Como e porque parei de comer carne (Lu Azevedo): https://www.youtube.com/watch?v=0Ft8gYAX7iw.
    Como eu virei vegana (Drica na Cozinha): https://www.youtube.com/watch?v=1zv_R-tD1CE.

Deixe uma resposta