Uns dias atrás eu estava no interior da França, visitando o meu sogro, e pedi pra ele me mostrar os cardápios antigos que ele herdou da mãe. O pai dele era chef e tinha um restaurante com uma estrela Michelin. A avó materna dele também era chef, também tinha um restaurante e também tinha uma estrela. Uns anos atrás ele me mostrou um cardápio de 1920 e fiquei impressionada com a quantidade de comida, mas, principalmente, com o número de animais servidos numa mesma refeição. A mãe dele gostava de guardar tanto os menus que a mãe e o esposo preparavam em seus restaurantes respectivos, quanto menus de lugares onde ela comia. Ela deixou esse mundo há alguns anos e meu sogro guarda preciosamente a caixa cheia com as dezenas de menus que ela colecionou durante a vida.
Vou compartilhar alguns aqui porque é fascinante dar esse mergulho no passado, mesmo se ele vai embrulhar o estômago de algumas pessoas.
O primeiro, de fevereiro de 1903, tem:
Sopa (de galinha)
Truta com molho de camarão
Filé de boi
Peru jovem
Foie gras (fígado de um pato ou ganso que foi alimentado de maneira forçada até que seu fígado fique entupido de gordura – daí o nome “fígado gordo”- num processo extremamente cruel e doloroso)
Galo capado (exatamente o que o nome indica)
Salada
Lagosta
Alcachofra com tutano
Cogumelo (na manteiga)
Abacaxi com chantilly
3 outras sobremesas
Frutas
Queijo
+vinho, champanhe, café e licor
O segundo, de maio de 1907, tem:
Sopa cremosa de crustáceo
Sopa de ervilha seca e bacon
Hors d’oeuvre (petiscos)
Peixe
Cordeiro
Faisão
Aspargos (com molho de gema e manteiga)
Galinha jovem
Salada de alface
Sorvete
2 outras sobremesas
Queijo
Frutas
+vinho, champanhe, café e licor
Esse menu, de novembro de 1910, tem:
Creme princesa (única referência que achei a esse creme explica que é um creme doce, feito com leite e gema, mas talvez o restaurante chamasse outra coisa de “creme princesa”)
Filé de peixe
Coxa de bezerro
Purê de ervilha com manteiga
Bolo de batata assada (espécie de tortilla, mas na manteiga)
Galinha de menos de 120 dias
Souflé (ovo, leite, queijo)
Galinhola flambada (um pássaro lindo)
Salada Niçoise (com atum)
Vagem com manteiga
Bomba Alaska (bolo com sorvete, coberto de merengue e flambado)
Biscoitos e chocolates
Cesta de frutas
Queijo
Vinho, café etc.
Se você está se perguntando se é pra escolher os pratos dessa lista, não. Isso é um menu fechado, o que significa que cada cliente vai receber uma porção de cada um desses pratos, na ordem listada. Como conseguiam comer tudo isso? Também me pergunto. Principalmente porque nessa época a “Nouvelle Cuisine” com suas porções do tamanho de uma colher de café ainda não tinha aparecido. Meu sogro contou que as porções eram bem generosas naquela época.
Esse menu, também de fevereiro de 1903, traz uma curiosidade relacionada com a pergunta acima:
Petiscos variados
Trutas com molho Genèvoise (caldo de peixe com vinho, manteiga e anchovas)
Filé de peru
Corça (um bichinho lindo que vive na floresta e parece com Bambi)
Foie gras com trufas (as trufas aqui são o fungo, não o chocolate, que são um tipo de cogumelo raríssimo, a comida mais cara do planeta)
Sorbet (sorvete à base de água) com água ardente de cereja
Faisão com trufas (a ostentação não tem limites)
Cascata de lagosta e camarão
Alcachofra no tutano
Cogumelos
Bolo de sorvete com crocante de amêndoas
Bolo Bretão (com uma quantidade obscena de manteiga)
Sobremesa de laranja
Frutas e biscoitos
Queijos, vinhos, café, licores
O sorvete com álcool forte é servido no meio da refeição pra “limpar o paladar” e, é a crença, ajudar na digestão pra que você continue comendo. Mais tarde surgiu um costume ainda mais chocante: beber uma dose de calvados (água ardente de maçã), pura ou com sorbet, depois de se entupir de comida pra dilatar o estômago e fazer você comer mais, mesmo depois de ter enchido a pança. Esse costume é conhecido como “trou Normand” (buraco normando). Vejam a que ponto a orgia gastronômica pode chegar. Lembrou dos banquete na Roma antiga, onde a galera forçava o vômito, com um instrumento especialmente feito pra isso, pra poder comer mais? Ou dos Jogos Vorazes (livrou ou filme), onde a elite tomava um líquido que fazia vomitar pra poder continuar comendo, ultrapassando os limites do estômago, nos jantares?
Esse aqui, de setembro de 1924, tem:
Sopa de rabo de boi
Salmão
Vísceras de vitelo (bezerro)
Alcachofra com tutano (continua sendo um grande sucesso)
Galinha no espeto
Salada de folhas
Pêssegos Bourdalou (com creme inglês -creme de leite e gemas- e macarons)
Bolo moka
Frutas
Queijos, vinhos etc
O menu acima é de 1940, em plena segunda guerra mundial. Foi o menu de casamento dos pais do meu sogro e fiquei surpresa ao ver que, no meio de uma guerra, a família conseguiu oferecer um jantar com perdiz e mais outros animas. Mas perceba que só estou mostrando menus de festa, as pessoas não comiam assim todos os dias (nem em tempos de paz).
Logo depois da segunda guerra mundial os menus vão ficando um pouco mais enxutos, embora ainda com muito mais comida – e mais animais- do que se julgaria aceitável hoje em uma única refeição. Esse menu é de 1950 e tem vários petiscos, um tipo de presunto de porco recheado com trufas e dentro de uma brioche (!), lagosta e galinha. Veja que o número de sobremesas também diminuiu: aqui tem uma bem elaborada, mais frutas com água ardente de cereja. Os queijos e vinhos seguem iguais e o café ainda vem acompanhado de biscoitos.
Seguimos avançando nas décadas pra ver como a cozinha francesa evoluiu (ou não). Esse menu de 1967 tem um detalhe hilário:
Peru recheado com foie gras e trufas
Um tipo de lagosta francesa
Vísceras de bezerro
Galinha d’Angola bebê
Algumas folhas
Sobremesa especial
Bolo
Biscoitos e chocolates
Algumas folhas! A única coisa vegetal desse menu é: algumas folhas. Agora imaginem como veganas são vistas aqui na França. Sim, não estamos em 1967, mas ano passado Anne ligou pra um restaurante estrelado da cidade do pai dela e perguntou se poderiam fazer um jantar vegetal pra ela. O chef respondeu, irritadíssimo, que o restaurante não fazia comida vegetal e que ela fosse procurar em outro lugar.
Dando um salto de 20 anos, chegamos em 1988, o ano em que eu fui alfabetizada. Nesse almoço de outubro, foi servido:
Codorna com foie gras (até hoje é uma obsessão por aqui)
Salmão com massa fresca
Ensopado de corça (o bichinho lindo que vive na floresta)
Batatas com creme
Salada
Prato de queijos
Cerejas jubiladas (também achei engraçado)
Champanhe, vinhos, café
O último menu que vou compartilhar é de 1991. Era o aniversário de 50 anos do irmão do meu sogro e foi o primeiro menu onde vi a palavra “legumes”. Nos pratos de animais dos outros menus vinha um ou outro legume em acompanhamento, provavelmente cozido pra além do possível e embaixo de muito molho. Mas eram tão sem importância que nem eram mencionados. E também foi a primeira vez que vi o queijo como opcional (o menu sugere escolher entre queijo ou “fromage blanc”, que apesar de significar “queijo branco”, quando traduzido, faz referência a um tipo de iogurte mais espesso, feito com leite e creme de leite.
Salada rica
Peixe na manteiga
Pato bebê
Legumes
Prato de queijo ou “fromage blanc”
Vacherin (sobremesa feita com sorte de baunilha, merengue chantilly e frutas)
Vinho, café
Como concluir esse post? Falar da carnificina que eram esses banquetes, onde comer o corpo de um animal não era suficiente: tinha que ter corpos de diferentes animais, marinhos, mamíferos, aves. Falar da obsessão por bebês animais: não basta comer muitos animais diferentes em uma única refeição, eles tem que ser jovens (menos de 120 dias) ou bebês, mesmo. Falar do quão obsceno são essas orgias gastronômicas enquanto a França colonizava uma parte do mundo? Da dominação animal como a eterna companheira da dominação de humanos? Há muito a ser dito à partir da observação desses cardápios, mas vou deixar vocês tirarem suas próprias conclusões.
C’est la France. “Ame-a ou deixe-a”.
Acabei de assistir o documentário Les Damnés de la Commune, de Raphaël Meyssan. Quando fizermos a revolução instituiremos o veganismo ou morreremos tentando?
Bela postagem!
Vi esse documentário semana passada. Gostei demais. Quanto à sua pergunta, eu sou anarquista, logo a revolução pela qual luta não é autoritária. Então o que vejo no meu horizonte é uma mudança econômica e social que vai fazer com que comer animais se torne obsoleto pra todas. Vejo um plano de transição pro veganismo que passa pelo fim do capitalismo, distribuição de terras, agroecologia, socialização dos meios de produção e conversão de pequenas criadoras de animais/trabalhadoras de abatedouros/açougueiros em trabalhadoras e trabalhadores de outros setores.
Legal, demais.