Dentre as várias lutas que participo aqui no território onde moro (periferia norte de Paris), a luta pela preservação dos Jardins Operários é uma das mais importantes. Por isso nasceu a ideia de um projeto colaborativo com a Biblioteca Terra Livre: um diário sonoro de resistência, que vai ao ar no podcast Antinomia.
Essa é a história de um pequeno grupo de operárias aposentadas e trabalhadoras, a maioria vinda da imigração, lutando pra defender o último pedaço de terra agrária de seu território contra o racismo ambiental, a gentrificação e a especulação imobiliária na periferia de Paris.
São episódios semanais, até o final de maio, contando a história dos Jardins Operários, as iniciativas de resistência popular e dando a palavra às pessoas que cultivam a terra ali. O primeiro episódio foi ao ar, não por acaso, no dia do aniversário da Comuna de Paris. Pra entender a relação com esse evento histórico e conhecer mais sobre a luta dos Jardins Operários, convido todo mundo a acompanhar a série.
Mas como o formato podcast não é inclusivo pra todas, prometi trazer a versão escrita dos episódios pro blog. Vou publicar a versão texto dos dois primeiros episódios hoje, pois mais que isso ficaria longo demais. Semana que vem volto com mais dois e assim por diante. Boa leitura e viva a resistência popular!
Jardins da Comuna – Episódio 1 “Apresentação”
Hoje, dia 18 de março de 2021, marca o início do aniversário de 150 anos da Comuna de Paris, o levante que, apesar de ter durado apenas 72 dias, foi um marco na história das revoluções populares.
Meu nome é Sandra Guimarães e eu estou falando de Aubervilliers, na periferia norte de Paris, a 5 km da colina de Montmartre, local do nascimento da Comuna de Paris naquele 18 de março de 1871. Foi aqui que eu vim parar em 2019, depois de ter sido rejeitada por Paris, que me fez entender que eu era pobre demais pra morar na capital.
Na periferia norte de Paris fica o Distrito Seine Saint-Denis, onde se encontra Aubervilliers. A França é dividida em Distritos, que são unidades administrativas e territoriais. O distrito Seine Saint-Denis, também conhecido como 93, é o mais pobre de toda a França. Também é aqui que encontramos a renda média mais baixa de todo o país.
Aubervilliers é uma cidade historicamente operária, mas as usinas foram embora e hoje o desemprego se eleva a 23%. Com 45% da população vivendo abaixo da linha da pobreza, é a segunda cidade mais pobre da França. Se as centenas, às vezes milhares, de refugiados e migrantes que dormem nas ruas da cidade entrassem nessa conta, com certeza ela estaria em primeiro lugar.
Mas não é a pobreza que define esse território: é a resistência. E nesse dia de comemoração da resistência popular, eu trago uma história de luta que está acontecendo aqui, nesse exato momento. A luta pra salvar os Jardins Operários de Aubervilliers. Ironia da História, os jardins operários ficam do lado do Forte de Aubervilliers, construído em 1843, como parte de um complexo militar pra proteger Paris, por ninguém menos que Adolphe Thiers, o chef do governo Francês que esmagou a Comuna de Paris.
Os Jardins operários existem há quase um século. O princípio de um Jardim Operário é simples: oferecer um pedaço de terra pra que operários e operárias possam fazer hortas e aumentar sua autonomia alimentar. Em 1935, a associação dos jardins operários de Aubervilliers se formou pra organizar o trabalho das pessoas que cultivavam ali. As operárias podem cultivar a terra pelo tempo que desejarem, mas não são donas dela. Em 1963 os jardins ocupavam 62 mil metros2, que foram, aos poucos, sendo amputados em nome da expansão da cidade.
Hoje, os jardins Operários de Aubervilliers têm 26 mil metros2 e abrigam 85 lotes.
Algumas das pessoas que estão ali cultivam seu lote há mais de 30 anos. Uma delas, hoje aposentada, cultiva o mesmo lote há 45 anos. As pessoas que ocupam os lotes, que a gente chama de jardineiras e jardineiros, são de diferentes nacionalidades: portuguesa, turca, marroquina, argelina, chinesa…e francesa. São 20 nacionalidades diferentes, vindas das classes populares. Apesar de algumas jardineiras e jardineiros serem jovens e terem conseguido um lote recentemente, a média de idade nos jardins gira em torno de 70 anos.
Muitas das pessoas que plantam ali vivem com uma aposentadoria modesta, de apenas 800 euros (o salário mínimo na França em 2021 é de 1 197 euros). Mas além de garantir comida na mesa, os jardins são um lugar de encontros, onde relações de amizade e solidariedade se constroem. As jardineiras e jardineiros não cultivam só hortas, elas fortalecem os laços dentro da comunidade. As modestas hortas também são um pedacinho de natureza pra onde as jardineiras escapam sempre que querem respirar, ver um pouco de verde. Nos fins de semana as famílias das jardineiras se reúnem ali e almoçam embaixo das árvores. É preciso entender que Aubervilliers é um mar de concreto. Estamos falando de uma das cidades com a menor quantidade de espaço verde por habitante do país. Enquanto a média das cidades na França é de 31m2 de espaço verde por habitante, embora Paris, a capital, densamente povoada e urbanizada, tenha apenas 14,5 m2 de verde por habitante, Aubervilliers dispõe de míseros 1,4m2 de verde por habitante.
Mas esse pedaço de território onde a autonomia e a solidariedade são praticadas pelas classes populares está ameaçado.
As Olimpíadas de Paris, que acontecerão em 2024 foram a desculpa perfeita pra destruir uma parte dos jardins, mais precisamente 19 lotes. E foi assim que a Organização que coordena as Olimpíadas decidiu flexibilizar as leis de urbanismo e decretou que os jardins, que até então eram considerados “área protegida”, são um terreno de construção. Foi aqui que entrou o projeto de uma piscina olímpica e um centro aquático.
Mas repare na maldade. Do lado dos jardins tem um estacionamento da prefeitura, grande o suficiente pra construir a piscina olímpica, sem destruir nem um metro quadrado dos jardins. Mas pra não perder essa oportunidade de passar o cimento por cima dos hortas, um spa e um centro de fitness foram acrescentados ao projeto. E é exatamente essa parte que vai ser construída em cima dos 19 lotes dos jardins operários.
As olimpíadas de Paris, que foram anunciadas como “o evento esportivo mais ecológico de todos os tempos”, não vão destruir somente uma parte dos jardins operários de Aubervilliers. Duas outras cidades do Distrito serão afetadas. Uma parte considerável do parque L’aire des Vents, na cidade de Dugny, desaparecerá pra que seja construído um “vilarejo de imprensa”, pra hospedar jornalistas que venham cobrir as Olimpíadas. E um braço novo da Rodovia, que vai conectar o “vilarejo dos atletas” à Paris, vai passar do lado… de uma escola primária, na cidade de Saint-Denis, expondo as 700 crianças que estudam ali à poluição sonora e do ar.
Lembrando que não é só a autonomia alimentar das jardineiras e jardineiros que está em jogo. É a proteção da biodiversidade, já que o jardim abriga 22 espécies protegidas e dezenas de árvores frutíferas. É a proteção da terra, pra que a cidade não seja inundada sempre que chove.
A destruição dos jardins também vai deixar a cidade mais quente. O distrito 93 é o mais afetado pelo fenômeno conhecido como “ilha de calor” e espaços verdes, como os Jardins Operários, são a única maneira de lutar contra isso. Ano passado, durante os dias mais quentes do verão, as jardineiras mediram a temperatura dentro dos jardins e no centro de Aubervilliers, que é densamente urbanizado. A diferença de temperatura passava dos 10 graus. Quando o número de pessoas que morrem de calor no distrito, principalmente idosas, aumenta a cada verão, a prioridade deveria ser preservar espaços verdes, e vegetalizar a cidade, não destruir as poucas árvores que restam.
Talvez você esteja se perguntado: Quem ganha com a destruição de hortas de trabalhadoras aposentadas na periferia? Acontece que o lugar onde os jardins se encontram é estratégico, do ponto de vista imobiliário. Por que manter hortas, ainda por cima cultivadas por pessoas modestas, que não geram lucro pro setor imobiliário nem da construção civil, quando se pode aproveitar o espaço pra construir torres de concreto? Ainda mais quando se pensa que em breve será construída uma nova estação de metrô sobre outra parte dos jardins, valorizando ainda mais a área. Onde a população de Aubervilliers vê um território a ser preservado, outros vêem oportunidades financeiras.
A ameaça que paira sobre os jardins é fruto de uma mistura de racismo ambiental, especulação imobiliária, gentrificação e destruição ambiental. O mais hipócrita nessa historia é que o plano de destruição dos jardins, o combo spa/estação de metrô/condomínio verde, está sendo vendido como projeto “ecológico”. Mas as jardineiras e os jardineiros não vão deixar isso acontecer sem luta. Desde o ano passado, a resistência está se organizando.
Eu faço parte do Coletivo de Defesa dos Jardins operários de Aubervilliers e gostaria de convidar vocês a acompanhar essa luta. Os lotes que serão destruídos já foram marcados pela construtora e as escavadeiras chegarão em abril. À partir de hoje e até o final de maio, enviarei notícias regularmente das iniciativas de resistência, que estão se multiplicando, além de trazer até vocês as palavras de algumas das jardineiras e contar mais um pouco sobre o que os jardins operários representam. É um terreno onde a solidariedade popular se desenvolve pra alimentar famílias e alimentar nosso imaginário de lutas.
Convido vocês, ouvintes do Antinomia, a acompanhar esse diário sonoro de resistência durante as próximas semanas e, dedos cruzados, no final de maio, quando terminar as comemorações dos 150 anos da Comuna de Paris, nossa luta pela preservação dos jardins operários terá sido vitoriosa.
Até lá, Vive la Commune!
Jardins da Comuna – Episódio 2 “Resistência Ecológica”
Essa semana o Coletivo de Defesa dos Jardins Operários de Aubervilliers se reuniu com outros coletivos locais de resistência ecológica, além de participantes dos grupos Youth for Climate e Extention Rebelian, que vieram oferecer solidariedade política. Toda essa galera se articula atualmente dentro de um coletivo que se formou pra organizar a resistência popular diante das Olimpíadas de Paris de 2024.
Como os jardins operários de Aubervilliers não são o único lugar ameaçado de destruição pelas Olímpídas, tem mais dois projetos ecocidas aqui no distrito 93, um que vai destruir uma parte de um parque, outro que vai Construir um braço de rodovia que passará do lado de uma escola primária, era preciso unir forças com as outras pessoas que serão diretamente atingidas pelas Olimpíadas de Paris.
Porque as olimpíadas são de Paris, mas é a periferia que paga a conta: com suas árvores, seus jardins, suas hortas, a qualidade do seu ar, a saúde de suas crianças… Alguém pensou em consultar a população do distrito, saber se era isso que ela queria? Imagina! A opinião dessa gente modesta, proletária, racializada, não conta. Nunca contou.
Mas se engana quem pensa que a periferia não está organizando a resistência ecológica. Aliás umas semanas atrás, nos Jardins Operários de Aubervilliers, aconteceu o Encontro de Ecologia Popular, onde pessoas da periferia, muitas vindas da imigração, se reuniram pra pensar estratégias de resistência ecológica aqui, no distrito mais pobre da França, que tem uma das piores qualidades de ar e uma das menores áreas verdes por habitante.
Mas voltemos à reunião, quando nos encontramos nos jardins operários pra esquematizar o plano de resistência das próximas semanas. A data limite pra evacuar os lotes que serão destruídos é 29 de abril, mas a destruição já começou. Enquanto discutíamos sobre como resistir diante das escavadeiras, “Grand Paris Aménagement” (GPA), a construtora do Estado encarregada das obras na região parisiense, cortava as árvores do lado dos jardins.
Colado ao jardim fica um estacionamento público, aquele onde daria tranquilamente pra construir a piscina olímpica sem destruir nem um metro quadrado dos jardins operários. Pra ter uma desculpa pra passar o cimento por cima das hortas o projeto de piscina olímpica ganhou um spa, centro de fitness e até um solário mineral. A prefeitura alega que sem o centro aquático, a piscina não será rentável.
Depois das Olimpíadas ela se transformará em piscina municipal, ou seja, aberta ao público e com um valor de entrada baixo. E é aqui que acrescentamos mais uma camada de crueldade nessa história. O valor de entrada do centro aquático (o combo piscina, mais spa/solário mineral) será de 15 a 20 euros, um valor absurdamente alto pra população local. As pessoas de Aubervilliers perdem duas vezes: além de serem privadas de suas hortas populares, não terão condições de desfrutar do centro aquático que será construído em cima delas.
Como as obras desse projeto, que vai contribuir com a gentrificação da cidade, começarão no estacionamento, ele foi fechado dias atrás e está atualmente cercado por grades. Durante a reunião, podíamos ouvir o barulho da moto-serra cortando as árvores. Dezenas de árvores, logo aqui, em Aubervilliers, uma cidade onde as árvores são muito mais raras do que no resto do país.
Mas também tinha o canto dos pássaros. Os jardins operários abrigam várias espécies de pássaros que nesse início de primavera cantam a plenos pulmões. Uma bela sinfonia pra nos lembrar que enquanto as árvores tombavam ali do lado, a vida e luta continuam.
Depois da reunião troquei dois dedos de prosa com uma jardineira que cultiva um dos 19 lotes que serão destruídos pelo centro aquático. Ela me mostrou a macieira dela. “Se você visse a carga de maçãs que ela deu ano passado…”- ela disse- “Algumas maçãs tem bichinhos, porque eu não uso veneno nas minhas árvores, mas são maçãs deliciosas! ” Ela também quis me mostrar o pé de ameixa, do lado da macieira, que está coberto de flores. “Que tristeza derrubar árvores”, ela concluiu com um suspiro.
A construtora vai oferecer a tal da “compensação ecológica”. O que significa: plantar uma árvore, em outro local, pra cada árvore destruída ali. Mas quantos anos até que essas árvores ofereçam maçãs e ameixas pra aquela essa senhora? Pela idade avançada dela, provavelmente ela não estará mais aqui quando isso acontecer.
Enquanto eu ia embora vi a senhora colocar uma cadeira de praia embaixo do seu pé de ameixa em flor. Ela tirou um livro e uma garrafa térmica da bolsa e ficou ali, relaxando no sol gostoso dessa época do ano. Aproveitando do seu pedacinho de verde enquanto as escavadeiras não chegam.