Canjica é um daqueles pratos que causam confusão. O que eu, e minhas conterrâneas potiguares, chamamos de canjica é conhecido como “curau” em outras regiões. Já o que a galera dessas outras regiões chama de “canjica” eu chamo de “mungunzá”. Vivendo em um país do tamanho de um continente, essas variações lexicais são mais que normais. Eu chamo canjica, você chama curau, ela chama de mingau de milho e tá tudo bem.
Mas tem outra confusão relacionada com a canjica que me causa muita irritação. Eu cresci comendo esse prato preparado pelas mulheres da minha família. Geralmente feita com leite de coco, algumas vezes com uma mistura de leite de coco e “leite de gado”. Pra entender o por que dessa mistura, é preciso entender que o coco era mais barato do que o leite de vaca por aqui (o coco a gente conseguia muitas vezes gratuitamente, enquanto o leite de vaca tinha que ser comprado). O leite de vaca tinha mais prestígio (como todo alimento de origem animal), deixando a canjica “rica”, mas era misturado com coco (metade/metade) pra baratear a receita. Mesmo assim, ainda era comum encontrar canjicas feitas exclusivamente com leite de coco.
O tempo foi passando e hoje em dia é praticamente impossível encontrar canjicas feitas com leite de coco. E como o colonialismo alimentar foi ficando cada vez mais forte, não basta ter leite de vaca, entrou manteiga na canjica (ou margarina, que sempre tem soro de leite) e, heresia sem tamanho pra essa nordestina alimentada com canjica de coco desde a infância, andam colocando leite condensado na bichinha. Encontrei até uma receita na internet que levava leite de vaca, manteiga, leite condensado e creme de leite! E a receita de “curau” no site daquela marca que começa com “nes” e termina com “eu vou mudar todas as receitas de doces do seu país, atolar leite moça em absolutamente tudo e colonizar a cultura alimentar de vocês!” leva leite condensado e leite Ninho !!!! Quem ainda não ouviu o episódio do podcast Prato Cheio (um dos meus preferidos) sobre “A moça da lata”, contando como o leite moça se tornou presença obrigatória em todos os doces brasileiros (spoiler: fomos manipuladas) corre lá que é uma escuta obrigatória pra entender como nossos desejos são fabricados. E se você ainda não leu o artigo que publiquei aqui sobre leite condensado e o que isso tem a ver com veganismo, recomendo demais.
Cara leitora, eu vim aqui te ensinar a fazer a canjica raiz, a verdadeira, a com sabor de Nordeste e com cheirinho de fogueira de São João. A que se recusa a entrar na onda da moça da lata (não, NÃO é verdade que tudo fica melhor com leite condensado. Fica só mais doce e enjoativo e sem personalidade, mesmo). A receita da canjica que honra os produtos do nosso território, o milho e o coco, e que não abaixa a cabeça diante do colonialismo lácteo!
Depois desse discurso grandiloquente, chegou a hora de confessar que essa foi a minha primeira canjica. Trinta e nove anos na cara e só agora vim aprender a fazer canjica. Por duas razões. Perto da casa da minha família tem um senhor que, nos meses em que o milho fresco é abundante, vende canjica feita só com coco. Mas, principalmente, porque aqui sou vizinha de uma prima que faz uma canjica divina. E mesmo se hoje ela faz sua canjica misturando leite de gado e de coco, sempre que estou em Natal ela faz canjica só com coco pra compartilhar comigo. Mas aprender a fazer canjica estava na minha lista há anos. Quando gosto muito de uma comida, saber prepará-la me parece importante.
Claro que como toda cozinheira, minha prima faz tudo no olho. Fui parando e medindo os ingredientes a cada etapa pra poder publicar a receita aqui, mas depois de fazer uma vez, você será capaz de reproduzir essa iguaria sem se preocupar em medir nada. Vá prestando atenção na textura da mistura em cada etapa, prove pra saber se precisa de mais açúcar… Se você for atentiva a esses detalhes, a arte de fazer canjica sem receita será sua.
Apesar de levar um pouco de tempo pra ficar pronta, o processo é muito simples e o resultado é superior a tudo que você possa encontrar nas padarias. Canjica caseira, feita assim, sem pressa e com leite de coco caseiro, é de uma delicadeza que emociona. Vale muito a pena aprender essa receita, tanto pra se deliciar com uma canjica fresquinha sempre que tiver milho na feira, quanto pra manter viva a nossa cultura alimentar.
Canjica (ou curau)
O ideal é fazer essa receita com milho mais pra maduro. Tenha isso em mente na hora de escolher as espigas (se estiverem bem verdes, melhor comer esse milho refogado). Tem quem faça canjica com milho enlatado. Nunca fiz, mas tendo em vista que o sabor de milho enlatado é bem diferente do sabor do milho fresco, imagino que o resultado da canjica seja muito inferior (sim, julguei). Repare que uso pouco açúcar aqui. Pra mim, canjica é comida levemente doce, não sobremesa. Por isso acho uma aberração tacar leite condensado nela. Se você está acostumada com uma canjica mais doce, adapte a quantidade de açúcar pro seu paladar.
7 xícaras de milho fresco (consegui esse volume com 7 espigas pequenas)
6 xícaras de leite de coco fresco (um pouco menos que 1,5 litro – receita aqui)
1/2 xícara de açúcar (ou a gosto)
Pitada generosa de sal (com 4 dedos)
Canela em pó a gosto
Versão resumida da receita pra quem se vira bem na cozinha: 1- bata o milho com o leite de coco no liquidificador 2- coe a mistura em uma peneira (descarte o bagaço) 3- leve ao fogo junto com o açúcar e o sal 4- cozinhe mexendo sempre até engrossar e dar o ponto (teste colocando um pouco de canjica em uma colher: se poucos segundos depois ela endurecer e não soltar da colher, está pronta) 5- sirva polvilhada com canela.
Versão detalhada pra quem precisa do passo-a-passo detalhado e gosta de informações sobre o por que das coisas.
1-Com uma faca afiada, corte o milho das espigas, o mais rente possível do sabugo. Se você nunca fez isso, aqui vai uma explicação rápida: apoie a base do milho na tábua de cortar (na posição vertical) e deslize a faca de cima pra baixo. Gire a espiga e repita a operação até ter cortado todos os grãos. Se sobrou grãos na ponta superior da espiga, vire-a de cabeça pra baixo (a parte com os grãos restantes próximo da tábua) pra cortar o que sobrou. Segundo a minha prima, precisa ter cuidado não pode cortar rente demais ao sabugo, caso contrário sua canjica ficará com gosto de sabão (ela avisou e estou transmitindo). Você acaba de completar a parte mais complexa da receita. A partir de agora vai ser moleza.
2-Bata metade do milho no liquidificador com metade do leite de coco. Coe a mistura num peneira (não precisa ser muito fina). Descarte o bagaço e repita a operação com a outra metade do milho e leite de coco.
3-Leve a mistura pra uma panela grande (mais larga que funda) e com o fundo grosso. Idealmente, o volume do líquido deve encher somente metade da panela por duas razões. Primeiro porque quanto mais espalhada ficar a mistura, mais superfície de evaporação, logo mais rápido cozinha. E segundo porque assim tem bastante espaço pra mexer a canjica sem derramar. Junte o açúcar e o sal e cozinhe em fogo médio-baixo, mexendo sem parar com uma colher de pau.
4- Nesse momento se abrirá pra você uma oportunidade de pensar na vida por um longo momento, assim como a possibilidade de malhar um braço. Explico: a canjica precisa ser mexida sem parar (senão o fundo queima) e essa aqui (nessa quantidade e na panela que eu tinha) levou quase uma hora pra ficar pronta. Mas vale a pena. Fique por ali, meditando. Talvez peça pra alguém te trazer um cafezinho. Talvez convide uma amiga ou irmã pra conversar com você durante o processo. Ligue pra sua terapeuta! Ou simplesmente curta o processo e se delicie com o cheiro maravilhoso que vai invadir a cozinha.
5- A canjica está pronta quando estiver bem encorpada, mais escura, soltando do fundo da panela e passar no teste da colher: coloque um pouco de canjica em uma colher e se em poucos segundos ela endurecer e não soltar, mesmo se você virar a colher de cabeça pra baixo, está pronta. Transfira imediatamente pro recipiente onde for servir (ou em várias cumbucas individuais), polvilhe com canela e deixe esfriar. É importante fazer isso rapidamente, pois a canjica endurece rápido depois de cozida.
Deguste sua canjica morna ou em temperatura ambiente. Quando morna ela é mais cremosa (como um pudim firme). Guarde o que sobrar na geladeira (ela vai ficar ainda mais firme, como a canjica da foto) e consuma rapidamente. Eu acho canjica mais gostosa no dia que é feita, mas ela se conserva alguns dias na geladeira (aviso: no dia seguinte o sabor de coco fica mais pronunciado). Rende de 4 a 6 porções (como lanche, dependendo do apetite).
Apesar de você ter alertado no início, li o texto todo esperando uma receita de mugunzá ou canjica sudestina (rs) ou canjica de milho branco. Não consigo chamar o curau de canjica. Coisas do cérebro! Obrigada pela receita e pela história!
A receita do mungunzá (ou mugunzá) já apareceu por aqui uns meses atrás e também é um prato que eu adoro. Deixei o link no texto 😉
Querida, minha mãe era do interior de São Paulo e fazia o “curau” sem leite. Não usava nem o de coco nem o de vaca. Passei a infância comendo essa maravilha, sentindo o gosto do milho. Quando experimentei uma feita com leite de vaca, achei horrorosa, parecia que o leite queria roubar a cena do protagonista, o milho. Já acostumei com o sabor, mas ainda prefiro com água. Claro, não pode exagerar na proporção, mas é muito delicioso (o curau) ou deliciosa (a canjica)!!!
Eita que essa versão na água eu não conhecia! Vou tentar aqui. Obrigada pela informação.
Também em sp, mas feita por uma mineira, comi mais curau feito com água. Amo só com sal. ♡♡
Vou contar como fui introduzido a um tipo de colonialismo, no caso é o colonialismo musical; porque nessa época através de uma roqueira fui introduzido ao complexo de vira-lata de brasileiro.
Em dezembro de 2004, fui no show da Ivete Sangalo e foi um presente de aniversário de 13 anos. Alguns meses depois, falei que fui nesse show para uma menina do meu prédio que eu conversava; ela falou para mim em tom de voz de decepção/de raiva, que eu não tenho que ouvir isso, que eu tenho que ouvir rock, pop, música eletrônica. Ela quis mostrar que a música brasileira que não é rock é lixo/ruim; que o rock brasileiro é melhor que o resto a música brasileira; e que o rock, o pop e a música eletrônica britânico-estadunidenses são os melhores ritmos musicais. Depois disso, passei a me sentir humilhado/inferior por não gostar de rock e por gostar mais de alguns ritmos musicais brasileiros do que de música britânico-estadunidense.
Fui “amigo” dessa menina entre a 7ᵃ série e o 1º ano do ensino médio (entre 2005 e 2007, quando tinha entre 13 e 15 anos), só para ter grupo para trabalho em grupo na escola. Porque infelizmente na escola, se você não é amigo de alguém, você dificilmente vai conseguir grupo para trabalho em grupo; e eu era uma pessoa odiada na escola por não gostar de música britânico-estadunidense, por ser assexual/por não querer namorar e por querer conversar de assuntos mais inteligentes. Percebi que os adolescentes são mais intrometidos (como perguntar se uma pessoa namora, sem a intenção de querer namorar a pessoa; só para poder se intrometer na vida dela) que os adultos; que eles são mais intolerantes que os adultos com certas coisas e são pessoas que só querem ter amigos que tenham os mesmos gostos.
A partir do 2º ano do ensino médio, deixei de ser “amigo” dessa menina porque não estávamos mais na mesma sala; mas mesmo assim, o sentimento de inferioridade por gostar de alguns ritmos brasileiros que não fossem rock continuou por alguns anos. Por alguns anos, se eu via alguém vestido de preto, com tênis All Star (sinais de que alguém pode ser roqueiro); eu não queria ter amizade, porque já achava que essa pessoa seria etnocentrista.
Nada contra quem gosta rock, não são todos os roqueiros que são etnocentristas e/ou viralatistas. Mas; infelizmente alguns roqueiros, além de serem etnocentristas; tem o complexo de vira-lata de brasileiro e fazem difusão disso.
Pelo menos, estou com mais autoestima em gostar de música brasileira que não é rock do que nessa época.
Eu não gosto mais de Axé tanto quanto antigamente (que eu gostava bastante); mas os meus 3 ritmos musicais favoritos são samba, MPB e bossa nova.
Sempre achei que esse prato fosse naturalmente vegano. Sou sergipano, mas cresci na Bahia e todo São João eu passava em um estado e tanto minha vó por parte de pai( que era do interior de Sergipe) quanto Minha vó por parte de mãe( que mora na Bahia) faziam canjica desse jeito e sempre foi um dos meus pratos preferidos da festa. Após entrar para o veganismo fiquei sabendo que tem pessoas que fazem usando leite de vaca ou pior ainda leite condensado, achei um absurdo! Só queria agradecer pelo texto e por você mostrar a verdadeira essência desse prato que para mim tem uma memória afetiva muito forte. Assim como você, apenas tinha degustado esse prato feito por outras pessoas.Sempre olhei minhas avós fazendo mas sempre me parecia muito difícil, porém agora tentarei fazer por conta própria. Obrigado por compartilhar a receita.
Sandra, o milho da espiga é melhor (diria até imprescindível) pra essa receita não só porque fica com o gosto melhor, mas o milho de lata não solta o amido necessário pra dar a “liga”! Pelo menos é o que aprendi com as cozinheiras da família. Acredito que com a lata demore bem mais pra cozinhar e talvez nem chegue na mesma textura. PS estou adorando as receitas da sua nova temporada em casa!!
Receita interessante! Aqui no sul (RS), canjica é um prato que se faz com milho seco (milho de canjica) cozido com água e adoçado. Abração!!
Só hoje notei sua ausência no Instagram e, desconfiada, logo corri aqui para saber das novidades. Bom saber que as histórias, recitas e militância seguem! Voltarei sempre ao blog, que foi onde te conheci e passei a seguir. 😉
Saudade de você em outras redes, querida Sandra. Faz muita falta!
Sei que parece que estou mais distante agora, Day, mas a verdade é que ainda estou aqui, com as portas desse blog abertas pra vocês e muito mais feliz com o tipo de trabalho que estou produzindo e com o espaço e tempo pra melhorar a qualidade dele. Sinto falta da galera que me acompanhava? Sinto. Mas ficou tão melhor, mais leve e gratificante produzir conteúdo na internet desde que o IG me expulsou de lá:) Sinto zero falta das cobranças, das montanhas de perguntas de quem achava que eu era o Google, das tretas virtuais, da competição e do tempo que eu passava todos os dias pendurada no telefone.
Que delícia, Sandra!
Eu só complemeto que guardo o bagaço pra fazer bolinhos. Amo tanto milho que quando aparece o milho fresquinho acho impossível descartar uma parte. Hehe
No seu último texto, q comentou sobre a pergunta da última comida antes da morte, fiquei com o milho verde cozido, bem verdinho e molinho só com uma pitada de sal, ou sem nada mesmo. ♡