Você, amiga vegetariana, que diz concordar com os princípios do veganismo e que tem condições materiais de escolher o que come, mas ainda “come algo com queijo quando não encontra opções veganas”. Seja na rua, no restaurante, nas festas de família, nas viagens, na casa das amigas… Muitas vezes até mesmo na própria casa. Chega mais que eu gostaria de ter uma conversa com você.
O mundo é especista e se você esperar ele acomodar suas demandas em toda e qualquer circunstância antes de se tornar vegana, sua transição não vai acontecer nessa vida. A mudança ocorre na outra direção: nós mudamos primeiro pra em seguida mudar o mundo. Como esperar que o mundo se molde ao seu veganismo se nem você fez isso?
Sabe o que realmente te impede de dar esse último passo em direção ao veganismo? O queijo. Não é a falta de opção “vegana” que te impede de ser vegana, é a sua atitude diante da abundância de opção “não vegana”. Enquanto você continuar seguindo essa regra (“Se não achar nada vegano, como queijo”) você vai continuar não assumindo a responsabilidade da sua própria alimentação e boicotando sua transição pro veganismo.
Já se perguntou como nós, veganas, fazemos fora de casa? Nós levamos nossa comida. Preparamos marmitas. Sempre temos lanches na bolsa (castanhas, frutas). Perguntamos no restaurante se dá pra tirar o queijo daquele prato vegetariano. Nos adaptamos às situações ao invés de esperar o contrário. Isso de “vegana somente se tiver opção fora de casa” vai ser um obstáculo permanente no seu caminho rumo ao veganismo, pois sempre será mais fácil simplesmente comer queijo. E que oportunidade você está perdendo! Não só de ser vegana e alinhar sua ética com sua prática, mas de ter mais autonomia alimentar, de aprender a cozinhar, de poder escolher a qualidade do alimento que você come.
O que vou dizer agora vai te chatear. No verdade, você não quer realmente ser vegana. Veganismo é um projeto ético-político que você provavelmente compreende intelectualmente, mas que não tocou seu coração.
Pense comigo. Você teve um dia cheio, cansativo e está faminta. No único restaurante no seu caminho servem…cachorro. Você comeria? Provavelmente não. Nós, veganas, vemos queijo no cardápio e não conseguimos não associa-lo à exploração e ao sofrimento. Simplesmente não é comida, logo, não é opção. Por isso saímos de casa preparadas pra não ficar com fome na rua. E se não tiver nada pra nós no jantar do aniversário de casamento da tia, ou no restaurante onde aconteceu a reunião das amigas da faculdade, a gente… não come nada. Sabemos que isso é só uma refeição, que não corremos risco nenhum de morrer de fome se não comermos por algumas horas (aquelas entre nós que passam mal se não comerem a cada três horas nunca saem de casa sem um lanche na bolsa) e que logo voltaremos pra casa e poderemos nos alimentar normalmente. Simples, né? Mas se isso te parecer um sacrifício tão grande ao ponto de te impedir de ser vegana, você provavelmente vê o veganismo como um estilo de vida, algo que pode ser adotado ou desconsiderado, dependendo da oferta no buffet e da sua vontade de comer o que está na sua frente.
Levar lanches na bolsa, levar pratos pros jantares de família, se informar pra saber quais restaurantes tem opções vegetais… No início leva um certo tempo pra se adaptar, não vou mentir. Mas logo isso se torna tão natural pra gente que deixa de ser um esforço. E ficamos tão acostumadas com isso que nem lembramos mais como era quando as opções de comida eram infinitas e constantes, em todos os lugares. Hoje não sei como faria com tanta opção e acho uma bênção não estar constantemente tentada a comer qualquer coisa, a qualquer hora, em qualquer lugar. Se refletirmos um pouco vemos que essa super abundância e o fato de sempre ter alguém pra cozinhar pra você (lanchonete/restaurante) é uma novidade na história da humanidade. E acredito que um dos maiores presentes que o veganismo nos dá, além da coerência entre ética e prática, é aumentar nossa autonomia alimentar. Somos obrigadas a nos responsabilizarmos pela nossa alimentação e isso é algo do qual você continuará se privando se seguir o mantra: “Tento ser vegana, mas quando não tem opção, como queijo”.
Mas olha, tudo bem você ainda não estar pronta pra alinhar sua consciência com suas ações. Tudo bem se o antiespecismo ainda não é um imperativo moral pra você. Não tem como forçar essa conscientização, ela chega quando tem que chegar. E sim, amiga vegetariana, é muito melhor comer só queijo na rua ou em ocasiões sociais do que enfiar a cara no queijo, ovo e carne todos os dias. Não pense que não reconheço o longo caminho que você já fez pra chegar até aí.
Se estou te escrevendo essa cartinha não é pra esfregar minha superioridade moral como vegana na sua cara. Até porque não acredito que ser vegana torne alguém moralmente superior. Também não estou escrevendo essas linhas numa tentativa de te convencer, finalmente, a abraçar o veganismo. Estou te escrevendo porque gostaria de te fazer um pedido sincero.
Por favor, pare de repetir “Estou tentando ser vegana, mas é muito difícil, por isso ainda como queijo/ovo em X circunstâncias”. Sabe por que? Porque você está perpetuando o mito de que é muito difícil, quase impossível, ser vegana. Se fosse fácil você já seria vegana, certo? Errado. Eu e todas as pessoas veganas podemos te garantir isso. Se você segue ovo-lacto-vegetariana é porque o veganismo não é (ainda) um imperativo moral pra você. Talvez ele se torne um dia (espero). Mas até lá, por favor, não engrosse o caldo especista que diz que ser vegana é complicado, trabalhoso e impraticável no dia-a-dia, pois além de falso, isso prejudica o movimento, afastando pessoas da luta antiespecista.
(Uma versão mais curta desse texto foi publicada no final de 2019 no meu, hoje defunto, perfil no Instagram.)
Eu sou vegetariana e concordo com o que você diz. Eu fico acompanhando, querendo que me toque dessa forma, mas não eliminei totalmente os produtos de origem animal da minha vida e não responsabilizo ninguém além de mim por isso. Não é o veganismo que é difícil, até porque a maior parte das minhas refeições é vegetal. Não digo que veganismo é difícil, eu sei que eu é que sou fraca. Nossa, a dificuldade que foi decidir voltar a ser vegetariana… Meu maior problema nem é queijo, é ovo. Eu não compro mais, mas como os das galinhas do meu pai. Enfim, obrigada pelo texto, vou seguir refletindo, diminuindo o consumo, espero querer ser vegana um dia. Você me inspira!
Marcela, eu não acho que você é fraca. Acho que é o especismo que é extremamente forte. O especismo é hegemônico na nossa sociedade e ir contra ele não é uma tarefa fácil, pois ele adormece nossa sensibilidade em permanência (precisa fazer com que isso acontece pra existir). Acho que a chave é se “re-sensibilizar”. Boa sorte:)
É, pode ser. Sigo tentando me educar! Obrigada pelo texto.
Que texto sensacional! Vou arquivar aqui para enviar para as pessoas do meu entorno que perpetuam esse discurso. E trilhei também um longo caminho como ovo-lacto e, hoje em dia, tenho absoluta convicção de que o tornar-se vegana é muito, muito mais fácil do que eu imaginava. Mas cada um tem seu processo, como você bem disse.
Era isso que eu gostaria que as pessoas entendessem: que, pra maior parte das pessoas, imaginar o veganismo é muito mais difícil do que praticá-lo.
Eu amei essa versão estendida deste texto que me fez acordar pro veganismo. Fui vegetariana por 6 anos antes de me tornar vegana, e devo dizer que esse texto realmente cumpriu seu propósito: parei de ficar dizendo essa ladainha de que comia queijo por falta de opção.
Desde que virei vegana devo dizer que não fez tanta diferença no quesito “falta de opção”, porque eu já estava acostumada a ir nos lugares e não ter nada nem vegetariano. Percebi que não fez tanta diferença na minha vida abrir mão dos laticínios e ovos (os outros âmbitos do veganismo eu já abraçava), exceto a certeza de estar sendo mais coerente com a minha ética.
Infelizmente eu fiz a bobeira de não salvar todos os textos que eu publiquei no IG, mas tenho alguns fragmentos aqui e vou trabalhá-los pra ir trazendo aqui pro blog. Tanto conteúdo importante que se perdeu 🙁
Nao se perdeu nao sandra, por graças ao que quer que seja vc aind ata vivinha da silva pra continuar nos inspirando
Sandra e sua assertividade.
Direto ao ponto sem rodeios.
Tu é demais. ✊
Sandra, grata.
queria sentar para conversar com você.
tantos assuntos.
às vezes ouço seus podcasts dirigindo na estrada. fico fazendo perguntas sozinha com vontade de refletir sobre várias coisas. é muito bom perceber como todos estes temas que você traz (do veganismo, da não-monogamia, da luta contra as opressões etc), e que também são caros pra mim, por mais complexos que pareçam, na verdade se entrelaçam na numa base simples, composta pelo amor, a ética, a consciência e a prática destas coisas.
saber que alguém, em algum lugar do mundo, está se dedicando com tanto afinco para se repensar e entregar o seu melhor nestes aspectos, é uma inspiração, que faz emergir uma força semelhante dentro de nós.
Pois vamos sentar (virtualmente) pra conversar, então! Achei seu trabalho muito lindo.
sim e sim!
vou ficar muito feliz
eu fui vegana durante oito meses. fui fazer uma experiência de um mês para ver como me sentia (estava diminuindo aos poucos alimentos de origem animal) e acabei ficando oito pq achei muito simples e bom. e até hoje não sei dizer pq voltei ao vegetarianismo. quis comer doce no natal com a família e quando vi tinha voltado a consumir derivados…. isso faz uns anos e até hoje tô nessa. sinto uma certa falta de coragem, acho. foi bom ler seu texto! talvez ele me ajude a chegar mais próxima de entender