A estrada que vai pro povoado onde o meu pai mora, no Sertão potiguar, passa por algumas das cidades com os melhores nomes que conheço. Tem “Cachoeira do Sapo” e, logo depois, “Caiçara do Rio do Vento”, que é o nome de cidade mais poético que já ouvi (embora um rio do vento é um rio que secou e isso, no Sertão, é drama, não poesia). Quando eu era criança misturava os nomes dessas duas cidades e durante anos pensei que tinha uma “Cachoeira do Rio do Vento”. Lembro de imaginar como devia ser lindo uma cachoeira onde, ao invés de água, caía vento. Aqui no RN tem também outro nome de cidade ótimo: “Santo Antônio do Salto da Onça”. Diz meu pai que o salto que essa onça deu foi tão incrível que passou a ser o nome da cidade, embora oficialmente o lugar se chame apenas “Santo Antônio”.
Umas semanas atrás fui visitar meu pai e minha família paterna que, como eu disse, mora no Sertão potiguar. Minha família materna também, mas em outra cidade, não longe dali. Aliás minha família paterna e materna são parentes, como é frequentemente o caso no Sertão. Meu pai é primo legítimo da minha mãe. Minha avó materna era irmã do meu avô paterno. Pois é.
O caminho pra chegar nessas duas cidadezinhas passa ao lado do Pico do Cabugi, um antigo vulcão que não teve forças pra explodir e segue com sua forma original. Dizem. Avistar esse gigante de pedra significa, pra mim, que estou me aproximando da minha família.
O lugar onde meu pai mora parece ter parado no tempo. O calor e a poeira deixam tudo com uma aparência desbotada, o que reforça a sensação de que ali as pessoas vivem em outra época. Mas não se engane: (quase) todo mundo tem smartphone e está conectado pelas redes sociais.
E isso coexiste com alguns costumes antigos. Ainda é comum as pessoas terem uma roça, um pequeno pedaço de terra onde plantam feijão (Macaça) e milho, muitas vezes acompanhado de jerimum. Essa é uma antiga técnica de plantio consorciado de plantas companheiras, nesse caso as famosas “três irmãs”. Duvido que alguém ali saiba que o que fazem se chama “plantio consorciado”, mas aprenderam com os antigos e seguem fazendo assim porque dá certo. O resto do alimento vem de outras regiões e o preço está cada vez mais inacessível.
Se no ano passado o relatório da FAO “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo” anunciou que o Brasil tinha voltado pro mapa da fome (lembrando que o relatório foi feito antes da pandemia), o cenário atual é ainda mais desolador. Me doeu saber que enquanto quase metade dos estabelecimentos da agricultura familiar no país estão no Nordeste, mais de 40% das pessoas passando fome no Brasil estão nessa região.
Levei ingredientes frescos pra fazer o almoço, pois verduras e frutas só aparecem uma vez por semana, na única mercearia que tem por lá. Fiz guisado cubano, que comemos com arroz, abacaxi e o feijão macaça do meu tio. Aproveitei pra pedir à minha tia Luísa, que tinha cozinhado o feijão, pra fazer macaco pra nós. “Macaco” é um bolinho de feijão macaça e farinha de mandioca, preparado no prato e amassado com a mão. Minha mãe fazia macaco pra mim quando eu era criança e é um prato tão gostoso quanto lúdico de preparar. Pra quem gosta de comer com as mãos, ele é diversão pura.
Quando pedi pra minha tia fazer macaco naquele almoço ela achou graça da minha marmota. Parece que ninguém mais come macaco, nem mesmo no Sertão. É comida antiga e de gente empobrecida. De gente sertaneja que já se foi. Mas ela preparou os macacos e enquanto amassava o feijão a emoção bateu forte e ela disse: “Agora fiquei lembrando de mamãe. Parece que ela está aqui do lado comigo.”
Eu estava acompanhada de uma sobrinha e um sobrinho, que nunca tinham comido macaco. Olha que coisa, o sobrinho e a sobrinha também são veganas e fiquei feliz em transmitir algo que veio da minha avó Ester, que ambas não conheceram, passou pela minha tia Luísa e pela minha mãe, por mim e chegou até elas. Ali, naquela mesa, estava a presença da minha avó, o feijão do tio, a tia que o preparou, o Sertão, muitas gerações lutando contra a fome, eu, tentando resgatar as receitas da família e transmitir nossa cultura alimentar pra sobrinha e pro sobrinho que nasceram no Litoral, longe disso tudo, e cresceram comendo e sendo outras coisas.
Naquele dia também comemos rapadura com farinha. E lama (polpa) de coco verde com rapadura (não sei se é uma “receita” de família ou se é comum misturar coco verde com rapadura por ali). E voltamos pra casa depois do café da tarde. Já viram o sol se pondo na caatinga? É lindo de doer.
Vou contar aqui como fazer o famoso macaco, apesar de ter plena consciência de que sem toda essa carga afetiva e conexão com o Sertão, você, querida leitora, possa achá-lo bem sem graça. Mas fica aqui o registro caso você queira ter um gostinho do Sertão na mesa.
Macaco
Também conhecido como “Capitão” em outros estados do Nordeste. Minha avó, mãe e tia fazem macaco com o feijão cozinhado apenas na água e sal. É uma receita de tempos difíceis e a simplicidade é o resultado da falta de ingredientes à disposição. Mas nada te impede de incrementá-la (sugestões no final da receita). A Embrapa diz que feijão Macaça e fradinho são iguais, mas eu acho que o feijão macaça do Sertão é um tanto diferente. Mesmo assim, dá pra usar fradinho se você não tiver um tio que planta feijão macaça no Sertão. Eu mesma já fiz com fradinho e ficou ótimo.
Feijão macaça cozido, com sal (sem o caldo)
Farinha de mandioca (fina)
Coloque os caroços de feijão cozido em um prato fundo e despeje um punhado de farinha por cima. Eu gosto de peneirar minha farinha, mesmo quando é fina, pois não gosto dos caroços (doem meus dentes). Vá misturando e amassando com as mãos ao mesmo tempo, até formar uma massa facilmente modelável.
As quantidades são, obviamente, medidas no olho, mas pra você ter uma noção das proporções, aqui vai uma ajuda. Comece com 2/3 de feijão e 1/3 de farinha. Misture e veja se ficou mole demais. Se ficou, junte mais um pouco de farina e misture novamente. O objetivo aqui não é fazer farofa. Só queremos firmeza suficiente pra que o bolinho não se desintegre.
A forma do macaco é alongada e tem a marca dos quatro dedos impressa nele (veja a foto pra entender). Mas você faz o que quiser aí que o sabor será o mesmo.
Sirva no almoço, junto de um prato suculento (com um pouco de molho). Ou, como gosto de fazer, acompanhado de um molho saboroso e apimentado (não é tradicional, mas sinto que minha avó aprovaria).
Sugestões pra incrementar seus macacos. Um pouco de coentro já aumenta muito o sabor, mas se você juntar coentro, cebola e tomate (picadinhos), mais um tico de limão espremido, fica ainda melhor. Também vale a pena juntar um pouco de azeite no macaco, caso não esteja servindo com um molho que tenha gordura (gordura realça o sabor). Se um dia eu tiver a sorte de ter uma garrafa de azeite de babaçu na mão, é ele que vou usar. Nesse caso sirva como entrada ou como petisco. Se eu tivesse um boteco, com certeza serviria macaco com molho de tira gosto, provavelmente com o molho de pimenta do meu pai, que é delicioso (já leu esse post? A história é hilária!).
Oi, muito bons seus textos. Sempre os leio.
No Acre, (que teve uma migração grande de nordestinos) fazemos isto mas acrescetamos o arroz. E é conhecido como ‘capitão’.
Apesar de não morar, sou do mesmo interior (de Angicos), e vou sempre para visitar meus avós e outras pessoas da família. Nunca comi macaco, mas sempre ouço meu avô e minha mãe falarem bastante sobre. É muito bonito ver a cultura alimentar do nosso Sertão aqui, e me deu vontade de testar a receita pra comer também…
Menina, Angicos fica pertinho da casa do meu pai!
Sandra, adoro seus textos. Um abç ;*
Obrigada <3
É impressionante como as pessoas deixam de comer alguns pratos.
A minha avó materna morreu em junho do ano passado, mas não foi por causa de coronavírus.
A alguns poucos anos, ela insistiu que queria comer canole/canudinho (um doce em forma de cone que era muito comido décadas atrás) e ninguém achou para comprar para ela. Em fevereiro do ano passado, achei o canudinho em uma cafeteria de São Paulo; mas nem pude falar para ela, porque ela não conseguia comer mais nada e só se alimentava por sonda.
Adorei. Obrigada
Que história linda. Fiquei emocionada, como sempre, Sandra. Obrigada.
<3
Que delícia, adorei. É meio um primo do Tutu, né? 🙂
Sim! Uma variação do Tutu;)
Emocionada com teu texto, Sandra. Sou natural de Maceió, mas morei um tempo no agreste pernambucano enquanto criança e meu pai é de lá, deve ser por isso que também tive contato com o “macaco” mas aqui em casa o nome dele é só bolinho de feijão e farinha mesmo. Brigada por compartilhar tanto com a gente <3
“Bolinho de feijão e farinha” tem a vantagem de ser auto explicativo, enquanto o “macaco” exige explicações 😉 Aliás sempre me perguntei sobre a origem desse nome…
Eu chamo de capitão. E sempre lembro da minha avó fazendo. Dá uma saudade danada.
As amigas de Pernambuco me falaram que lá é capitão. Eu tenho um teoria sobre os nomes “macaco” e “capitão”, mas te conto quando a gente se encontrar 😉
Minha esposa que é da Bahia sempre conta das memórias dela e os primos comento de capitão na infância. Sou paulista e não conhecia, mas quando provei gostei muito haha
Estou fazendo meu TCC em gastronomia sobre o Capitão de feijão. Meu trabalho será em homenagem a minha vó que subiu aos céus a quase 02 anos. Revivi minha vida com ela lendo essa historia.
O tema mais lindo de TCC que já vi <3