Escritos pra lembrar que estamos no mês da visibilidade lésbica

Agosto é o mês da visibilidade lésbica no Brasil e todo ano eu escrevia um post sobre o tema no Instagram. Mas o Instagram desativou a minha conta por lá (entenda o ocorrido aqui), então o post desse ano será aqui. E olha que feliz: escrever no blog significa que quem decide o número de caracteres sou eu e poderei publicar um texto do tamanho que o coração mandar. Como eu já escrevi bastante sobre vivência lésbica, lesbofobia e a alegria de ser lésbica por lá, e que esse material foi deletado junto com a minha conta, resolvi trazer uma parte pra cá. Seria uma pena perder as conversas que tivemos por lá e que tocou e fez refletir muita gente. Então você vai encontrar aqui reflexões e relatos pessoais que postei nos stories, textos curtos que estavam no feed mais alguns parágrafos inéditos.

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É impressionante a quantidade de moçoilas me escrevendo pra pedir dicas de como cantar outras mulheres (elas provavelmente escrevem “chegar” e não “cantar”, mas eu acho “cantar” bem mais poético e como sou mais velha que vocês, sigo falando o meu dialeto). Informação importante: essas moças se identificam como bissexuais, mas até então só se relacionaram com homens, justamente por não saber cantar mulheres. 

Minha resposta é sempre a mesma: não tem fórmula especial pra cantar mulher. Paquera é paquera e não existe um “jeito” específico pra paquerar mulher. Nunca mulher nenhuma respondeu uma cantada de outra mulher dizendo: “Nossa, até que gostei de você, mas essa cantada aí é pra homem. Então não vai rolar.” 

Mas de tanto me perguntarem isso comecei a matutar sobre o assunto. Por que essas mulheres acham tão esotérico assim cantar mulher?

Pensa aqui comigo. Será que essas mesmas moças pediram conselho pras hétero que elas conhecem (amigas ou no Instagram) sobre como cantar homens quando começaram a sentir atração por rapazes? Provavelmente não. E isso é essencial pra entender o pânico que as baby bi sentem quando pensam em cantar mulher. 

Vivemos numa sociedade heteronormativa. A adolescente cresce com a expectativa de ser hétero e na dinâmica heteronormativa o homem canta a mulher. Logo elas não precisaram aprender a “chegar” nos homens porque está escrito no roteiro heteronormativo que eles que devem chegar nelas. Então quando elas percebem que também sentem atração por mulheres, o negócio trava. Não tinha essa parte no roteiro, então como saber o que fazer nesse caso? 

Então, moças bi me escrevendo, não me perguntem “como cantar mulheres?”. Se perguntem “como sair desse roteiro heteronormativo arcaico e limitante?” Acho saudável, independente da sua orientação sexual, aprender a identificar e expressar seu interesse e desejo de uma maneira que a pessoa na sua frente entenda. Sem ficar esperando “ser escolhida”. Sem imaginar que existe fórmula diferenciada se a cantada vai pra mulher ou pra homem. 

Aproveito pra dizer que é igualmente importante aceitar um “não” com tranquilidade. E essa é a outra parte crucial pra entender a questão. 

Ponto 1:

As mulheres bi que me escrevem morrem de medo de cantar mulher e levar um fora (“Vai que ela não gosta de mulher?”). Oxente! Você só acha cantar homem mais seguro porque estamos numa sociedade heteronormativa e tem esse pressuposto que ele gosta de mulher. Mas tanto o cara pode gostar de caras quando a mina de minas. 

Ponto 2:

Rejeição. Precisamos aprender a lidar com ela.

No roteiro heteronormativo a mulher espera o cara chegar nela. Se ela tiver a fim, aceita a cantada. Se o cara não interessar, recusa. Percebe que a rejeição tá do lado de lá? Mas se a mana bi chega numa mulher e ela recusa a cantada, a rejeição está do lado de cá (céus! Fui rejeitada e agora, o que vou fazer???). 

Sempre que uma moça bi me escreve desesperada dizendo que não sabe identificar outras lésbicas/bis e que por isso está numa angústia danada e não consegue namorar mulher, embora tenha muita vontade, eu penso: “Colega, não precisa saber identificar sapatão no rolê. Porque eu sou sapatão, todo mundo sabe, mas posso simplesmente não estar interessada em você. A chave da coisa é exatamente essa: interesse.”

Então não me pergunte: “Como saber se a mulher nos rolês da vida é sapatão/bi?” Se pergunte: “Como saber se a mulher (pessoa) está interessada em mim?” Pelo menos minimamente interessada, se você quiser reduzir suas chances de ouvir um “não”. 

OBS Nada te impede de fazer apostas arriscadas, como jogar uma cantada pra uma desconhecida no Instagram ou na mesa do lado. Tô só dando dicas pra galera que não lida bem com rejeição e quer reduzir as chances de ouvir um “não”. 

Aviso: deixo pra cada pessoa me lendo a tarefa de avaliar o quão seguro é o seu ambiente antes de sair levantando a bandeira do arco-íris. LGBTfobia é muito real e não estou incentivando ninguém a correr riscos. 

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Primeiro deixa eu dizer que o que falei foi que não morro de amores pela palavra “queer”, mas nunca disse que tinha um “problema” com ela. Se você gosta e usa, tranquilo. E mesmo se eu dissesse que tem problema, quem disse que você tem que me escutar e fazer o que eu acho certo? Muitas vezes sinto que as pessoas não cofiam no próprio julgamento e acabam repetindo o que ___ (insira o nome de uma pessoa que você admira) acha sobre assunto tal. 

Eu nunca usei essa palavra pra me definir porque simplesmente não me encontro nela. Tem o fato de ser em Inglês, certo, e isso me deixa desconfortável, mas é algo bem mais profundo. “Lésbica” é uma mulher que se relaciona exclusivamente com outras mulheres (se alguém no Twitter redefiniu a palavra hoje de manhã, paciência. Não estou no Twitter, nem pretendo passar por lá). “Mulher” está contida na palavra lésbica. “Queer” é um termo muito mais abrangente e quer dizer, basicamente, qualquer pessoa que não seja heterossexual.  Mas “queer” pode se referir tanto ao gênero (tem “genderqueer”), quanto à atração sexual e romântica.

Cada pessoa é livre pra usar o termo no qual ela se sente confortável e “lésbica” faz parte da minha identidade. Tem quem use “mulher queer”, mas como eu sou uma mulher que se relaciona exclusivamente com outras mulheres, não vejo sentido em usar um outro termo pra me definir, que por ser tão abrangente acaba sendo menos preciso. Talvez seja exatamente por isso que muita gente usa o termo “queer” pra se definir. Eu gosto de dizer a palavra “lésbica” e nela transmitir dois elementos fundamentais na minha identidade: mulher e homossexual. 

Encontrei pessoas queers na Europa que tinham definições bem variadas da palavra. Algumas me falaram que “queer” tem uma dimensão política, pressupõe um certo nível de militância. Teve quem me disse que é possível ser lésbica, gay, bi, trans e reacionária, mas que uma pessoa “queer” é necessariamente de esquerda. Achei curioso um termo informar ao mesmo tempo sua orientação sexual, seu gênero e suas afinidades políticas. Mas o tempo me mostrou que não era necessariamente verdade.

Depois encontrei pessoas que me disseram que só tinham relacionamentos heterossexuais, mas que gostavam de se dizer “queer” porque “hétero é meio cafona” (juro que uma pessoa me disse isso). Outra me disse: “Não quero me limitar me dizendo hétero, quero estar aberta às possibilidades, por isso prefiro “queer”. Mas durante toda a sua vida essa mulher se relacionou exclusivamente com homens. Conheci também um rapaz que se relacionava exclusivamente com mulheres cis, mas se dizia queer porque: “Tenho uma sensibilidade diferente”. Saí de Berlim, o templo do queer, achando que se essa palavra significava tudo e qualquer coisa, então ela não significava mais nada. 

Foi aqui na Europa também que comecei a ouvir, da parte de pessoas que se identificam como queers, que “lésbica” era um termo pejorativo porque é excludente. Escutei coisas como: “Com tantos gêneros, que excludente você só gostar de um.” Teve quem disse perto de mim que “lésbicas são tipo os caras brancos hétero do rolê LGBTQ”. 

Eu cresci sabendo que minha existência incomodava o patriarcado, mas é triste ouvir pessoas dentro da minha própria comunidade vendo minha identidade, e o termo que uso pra defini-la, como algo pejorativo. Então mais do que nunca me parece importante preservar a palavra “lésbica”. Ela representa uma comunidade, uma cultura e uma luta que existe há muito tempo. 

Acho ótimo rever conceitos e avançar nas discussões, mas essa tendência de querer começar tudo do zero o tempo todo, apagando as lutas e pessoas que vieram antes de nós, me deixa bem triste. Eu me identifico com a cultura lésbica e me sinto conectada à história das lésbicas que existiram antes de mim. Por isso seguirei me definindo como lésbica. 

Mas você não tem que caber nos conceitos que me definem. Se se sentir mais à vontade na palavra “queer”, tudo bem. 

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Eu devia ter adquirido ferramentas pra reagir à lesbofobia com mais facilidade. Mas mecanismos de opressão podem ser sofisticados. Se engana quem acha que toda agressão é direta. Seria mais fácil reagir se fosse o caso. E a particularidade da lesbofobia, em comparação à homofobia contra homens gays, é que ela vem com uma camada de sexismo. E, como mulher, fui treinada a não confrontar, não colocar o outro no desconforto, não reagir pra não causar tumulto. 

Eu estava no metrô com Anne e o senhor sentado na nossa frente puxou papo. Aí perguntou: “Vocês são amigas?” Anne: “Somos casadas.” Depois de um segundo sem reação, ele retomou a conversa, mas noutro tom. Perguntou: “Isso quer dizer que não tenho chance com você?” Anne: “Não!” Ele: “Se eu ficar de joelhos e implorar posso dar em cima de você?” Anne: “Não!”. Ele intercalava os momentos de assédio com: “Eu gosto de brincar. Não devemos levar tudo a sério demais. Eu gosto de todo mundo. Que idade vocês acham que eu tenho? Mais de 80! Bom humor é o segredo de uma vida feliz.”

Apesar de estar assediando Anne ele queria que a gente acreditasse que ele não passava de “um velhinho simpático e de bom humor”. Sendo assim Anne “não teria humor” caso “levasse a sério” o assédio e reclamasse. Percebe a malícia da manipulação?

E a lesbofobia aqui? Você acha que esse senhor perguntaria, repetidas vezes, à uma mulher casada com um homem, na presença do marido dela, se ele podia dar em cima dela? Aos olhos daquele homem eu não existia, ou não contava. 

Mesmo assim eu pensava: “É um senhor de idade. Se eu disser umas verdades ele vai se ofender. Se ele ficar com raiva e nos agredir fisicamente não vou ter coragem de bater nele.” Então só sorri e ainda desejei um bom dia quando ele desceu do metrô. 

Mas voltei pra casa com a dor no peito de ter sido agredida e ter me calado. Com raiva por não ter reagido. Prometi que na próxima vez será diferente. Mas a próxima vez vai chegar e a situação vai me pegar de surpresa de novo. E enquanto calculo os riscos de reagir e ao mesmo tempo tento sair do condicionamento feminino de ignorar (de preferência com um sorriso) as pequenas agressões do cotidiano, não me sobra forças pra reagir no momento.

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Recentemente passei por uma situação de lesbofobia e queria compartilhar a história com vocês aqui. É sempre uma oportunidade de reflexão e talvez ajude vocês, que não são lésbicas, a entenderem de onde vem a lesbofobia. E talvez, espero, ofereça caminhos pra que ela pare de ser reproduzida.

Parte do trabalho que fazemos aqui (estou me referindo ao coletivo do qual faço parte) é junto dos migrantes e refugiados em situação de rua. Duas semanas atrás fui levada a prestar assistência a um refugiado menor de idade, um menino de 15 anos, e tendo em vista o quão vulnerável ele é, não dava pra deixar ele na rua. A história é longa e não me sinto confortável pra contar aqui (e foge do assunto), mas alguns dias depois encontramos, graças à uma das camaradas do coletivo, um lar temporário pra ele. Então fui acompanhá-lo até a casa dessa pessoa, que aceitou acolhê-lo por duas semanas, enquanto procuramos uma solução definitiva.

Estou fazendo essa introdução porque o contexto é importante aqui. Na minha experiência pessoal, 90% das vezes que fui vítima de lesbofobia a coisa aconteceu em uma situação delicada, onde eu me vi na impossibilidade de me defender como eu gostaria.

Quando cheguei na casa da mulher que hospedaria o menino ela estava recebendo a visita de um amigo. Eu estava muito grata pela gesto solidário da mulher e se em tempos normais já sou simpática, naquele dia eu era só sorrisos. E isso incluiu o tratamento que dei pro amigo da mulher, que retribuiu a simpatia. Expliquei a história do menino refugiado, tudo pelo que ele passou até chegar aqui… Falei o quanto estava grata por ela acolhê-lo, pois eu morava em um apartamento de 30m2 com a minha esposa e ele não estava tendo o conforto necessário pra descansar com a gente… Nesse momento a mulher me interrompeu e falou: “Você gosta de mulher?” Respondi que sim e continuei a conversa, fingindo que aquela interrupção não tinha acontecido. Ela também seguiu discutindo tranquilamente, sem ter mudado em nada a maneira como estava me tratando. 

Mas o amigo dela, que vou chamar de B., com quem eu nem estava conversando e que até ali não tinha prestado muita atenção em mim, mudou. Ao ouvir que eu gostava de mulher ele parou imediatamente de fazer o que estava fazendo e dirigiu sua atenção pra mim. À partir dali ele passou a interromper minha conversa com a mulher e a fazer perguntas cada vez mais desagradáveis, até culminar em lesbofobia escancarada. 

Eu queria mandar ele pastar, queria ser grossa, queria levantar e ir embora. Mas é aí que entra a complexidade dessas situações. Como falei, raramente elas acontecem sem que algo te impeça de agir de imediato. Pode ser o medo de ser agredida fisicamente, porque você está sozinha com o cara. O medo de perder uma oportunidade de trabalho. Pode ser o receio de estragar a festa dos amigos. 

No meu caso, eu não queria soltar minha raiva (justificada) e correr o risco de ferir os sentimentos da mulher, já que se tratava de um amigo próximo dela. E dessa vez eu nem estava pensando em mim, estava pensando no menino refugiado, pra quem aquela casa era a única possibilidade de abrigo confortável no momento. 

Então fiz o que nós, mulheres, sabemos fazer extremamente bem (aprendemos por necessidade): dissipar a tensão. Rebater a violência com ironia, humor. Fingir que não entendeu. Fingir que não machucou. Sair da situação sutilmente, sem deixar claro pro seu agressor que você entendeu que ele estava te agredindo. Claro que isso tem um custo emocional alto e mesmo sabendo que eu não poderia ter agido de outra forma, ainda me dói pensar na situação. E o que foi que ele fez, exatamente?

A primeira vez que ele interrompeu nossa conversa foi pra dizer: “Sua esposa é tão bonita quanto você?” Fingi que não tinha escutado, mas ele repetiu mais alto. Respondi que gosto é muito subjetivo. Ele insistiu pra que eu respondesse. Disse que eu achava que sim, mas que cada pessoa tem seu gosto. Dali em diante ele subiu um nível na violência simbólica a cada frase que dizia. Até que ele perguntou, interrompendo mais uma vez a conversa que eu estava tendo com a mulher:

“Você quer um bebê?”

(Sair da situação com humor, sair pela tangente…era o que eu pensava)

“Por que? Você tá vendendo um?” – falei

Então, olhando pra mim com uma expressão obscena, ele falou:

“Eu te engravido, se você quiser.”

(A raiva. O sangue fervendo dentro de mim. A vontade de dar uma voadora na cara desse infeliz. Mas por fora manter a calma, não perder a compostura.)

“Na frase ‘eu sou lésbica’ que parte você não entendeu?” – falei.

Nesse ponto levantei e fui pegar minha bolsa pra ir embora. Mas o cara não ia me deixar sair da situação merda onde ele queria que eu estivesse. E quem sou eu, pobre mulher e anda por cima lésbica, pra decidir o que quero ou não quero ouvir? Então ele continuo o assédio.

-Você não sente nada de atração por homens? Nadinha? Nem um pouquinho? Deve sentir um pouquinho…

(eu continuava calada, me preparando pra ir embora e ele insistindo)

-Vem cá! Venha aqui! Dois minutos! Quero falar com você só dois minutinhos. Não precisa ficar com medo.

-Não estou com medo, estou com pressa.

-Deixa eu te perguntar uma coisa. Deixa eu fazer só mais uma pergunta. Lésbicas odeiam homens?

-Deixa eu te fazer uma pergunta também. Você gosta de homem?

-Não.

-E você odeia homem?

-Não.

-Você acabou de responder a sua pergunta.

Não sei se alguém que não é lésbica consegue entender o grau de violência do que esse cara me falou. Quando um homem olha pra mim com cara de quem tá vendo um pornô e me fala “eu te engravido” sabe o que chega aos meus ouvidos? Uma promessa de estupro. Pra esse homem meu corpo não me pertence. Não importa eu ter falado que era lésbica, ele acha que deve ter acesso ao meu corpo. Aliás o fato de ser lésbica só aumentou sua determinação a ter acesso ao meu corpo. Porque ele estava tranquilo, me tratando com cordialidade e sem interesse aparente até saber que eu era lésbica. Foi à partir desse momento que ele mudou o comportamento comigo. E é aqui que mora a lesbofobia.

Lésbicas, por definição, não estão sexualmente disponíveis pra homens e eles não suportam isso. E sei que uma mulher hétero ou bi não está disponível pra todo e qualquer homem que cruzar o seu caminho, obviamente. Não é isso que estou dizendo. Mas enquanto héteros e bis estão disponíveis pra alguns homens (os que elas escolherem), lésbicas estão disponíveis pra ZERO homem a todo e qualquer momento. E isso é audácia demais!

No mundo patriarcal onde vivemos o homem se sente destinado a dominar a mulher. A ter acesso ao seu corpo. E ter um sexualidade que exclui homens, decidir que nenhum homem terá acesso ao meu corpo é a afronta suprema!

Talvez eu surpreenda muitas pessoas me lendo agora ao dizer que não foi a primeira vez que um homem disse “eu te engravido” depois de saber que eu era lésbica. Nem a segunda. É doentio como eles se acham no direito de me dizer isso. Parece que pensam “Tá, ela não deseja homem. Não transa com homem. Mas EU ainda sou necessário na vida dela! Se ela quiser engravidar vai precisar de um pênis. A esposa dela tem pênis? Não tem! E quem tem um pênis? EU!!! AHA! Eu ainda terei acesso a esse corpo!”

Quando essas coisas acontecem eu fico tão afetada que me dá vontade de vomitar. Não é modo de falar, é vontade de vomitar mesmo. Meu estômago embrulha e parece que quer colocar pra fora a violência que acabou de entrar no meu corpo pelos ouvidos. Talvez você pense que é exagero, que a situação foi desagradável, mas já passou, deixa pra lá. Aí eu te digo que estamos em 2020 e homens ainda me dizem as mesmas violências que me diziam 20 anos atrás. Que eu escuto coisas assim, violências e ameaças veladas, desde que sou adolescente. Que foram tantas vezes que me disseram, às vezes sutilmente, às vezes escancaradamente, que não tenho o direito de escolher quem pode ou não pode ter acesso ao meu corpo, que o homem tem o direito sagrado de ter acesso ao corpo de toda e qualquer mulher. Na rua. Na faculdade. No trabalho. Lembro do patrão que passou semanas me assediando, quando eu tinha 19 anos, e que depois de saber que eu era lésbica me recebeu no trabalho uma manhã com as seguintes frases: “Você está muito gostosa hoje. Merece ser estuprada.” 

Saí dali acompanhada pela dona da casa, que insistiu pra me levar até a estação de trem. Ela ficou visivelmente incomodada com o que o amigo me disse, mas não fez nada pra impedir que ele continuasse com seu discurso violento. Enquanto caminhávamos ela disse: “Releve o que B. falou. Ele é uma boa pessoa. Me ajudou várias vezes. Mas tadinho, ele sofreu muito na infância. Os pais eram violentos, ele foi parar num orfanato aos 8 anos. Ele ficou com muitos problemas.” 

Mais uma vez me vi na situação de ter que “ser compreensível” com meu agressor, porque ele tem problemas. Eu também tenho problemas. E sabe o que mais? Eu fui agredida sexualmente na infância. Mas cabe a mim acolher, né? Mulher tem que ser só perdão. Só acolhimento. Nunca se irritar, nunca gritar, nunca deixar o outro desconfortável, nunca dizer que o outro está sendo violento. Eu sinto por B. ter tido uma infância difícil. Sinto muito. Mas ter sofrido na infância dá o direito de agredir mulheres e exigir nossa “compreensão” depois? Eu não saio por aí sendo violenta com outras mulheres por causa das dores e cicatrizes que carrego. 

Eu queria terminar com uma reflexão bem escrita, mas dessa vez vou deixar o trabalho pra vocês. Ainda mais porque a história tem um epílogo.

Não volta pra casa, fervendo de raiva por dentro, mas ao mesmo tempo abatida, eu saio do metro e enquanto caminho em direção ao meu prédio um cara começa a me seguir. Pensei “hoje é o meu dia!” enquanto todos os meus sentidos entravam em alerta e eu me preparava pra correr, gritar ou lutar. Foi quando o cara, ainda atrás de mim, disse: “Você é muito linda.” O cara não tinha visto o meu rosto, estava andando atrás de mim, então estava claramente olhando pra minha bunda. Apressei o passo. Ele apressou o passo também e quando chegou do meu lado disse: “Ei, eu te fiz um elogio.” (Minha deusa, até quando homens vão esperar reconhecimento por nos assediarem na rua?) Continuei calada. Aí o cara se enfezou e falou de maniera ríspida: “Não tem nada de mal te dizer o que eu disse.” 

Claro que não, parceiro. Objetificação e assédio de rua, depois de lesbofobia? Apenas um dia comum na vida da lésbica. 

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Sobre o olhar masculino e como lésbicas são mulheres que se emanciparam disso:

“Não é tanto o olhar dos homens que atrapalha – é mais profundo do que isso – é o olhar que aprendemos a ter sobre nós mesmas como mulheres, que nos é propagado o dia todo pela cultura “mainstream” e é muito complicado ser uma mulher hétero no final das contas. É preciso muito esforço. Fico feliz em poder focar meus esforços em outra coisa.”

Virginie Despentes, escritora francesa.

-Que conselho você daria às jovens?

-Seja exigente, torne-se lésbica! Ou, pelo menos, aprenda a não precisar passar pelo olhar dos homens. O olhar dos homens que, quando não nos rebaixa, muitas vezes nos congela num papel, numa aparência que não escolhemos. O olhar dos homens sobre o mundo, também. No cinema, Laura Mulvey (crítica e diretora de cinema britânica e feminista) chamou-o de “male gaze”, em um ensaio de 1975. O olhar masculino é o fato de que os filmes, os livros e a mídia refletem em prioridade o ponto de vista de um homem. O mesmo é verdade na realidade e temos que abandonar isso. Cada uma com suas próprias estratégias. Eu tento priorizar ler livros escritos por mulheres, priorizar ver filmes feitos por mulheres. As representações têm um poder terrível sobre nossas vidas. Elas condicionam nossas vidas. Não passar pelo olhar dos homens é um grande desafio. 

Alice Coffin, jornalista e vereadora francesa, em entrevista à revista National Geographic (novembro de 2019).

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Acordei nos braços de uma mulher por quem eu me apaixono um pouco mais a cada dia. Uma mulher que, há anos, ouvia um chamado pra estar com outras mulheres, mas que precisou de muito tempo pra viver o que, pra ela, era uma evidência. 

Deixei o apartamento dela e, enquanto caminhava na rua, liguei pra ex que faz aniversário hoje. Uma mulher que, assim como eu, soube logo cedo que o seu coração seria reservado a outras mulheres. Nos separamos anos atrás, mas sempre que escuto a voz dela, uma fagulha acende dentro de mim e o dia fica mais gostoso.

Cheguei na okupa pra pegar verduras e frutas de descarte (que iriam pro lixo) e conversar com uma amiga que mora lá. Ela cresceu banhada na heteronormatividade e me contou que ter ido morar ali, estar em contato com tantas lésbicas e ter se aproximado da gente fez com que ela criasse um imaginário onde amar mulheres não só se tornou uma possibilidade, mas um desejo. Vê-la acolher com alegria a perspectiva de viver algo que até pouco tempo atrás ela nem imaginava estar à sua disposição me tocou profundamente. O café que tomávamos juntas se tornou brinde.

Em casa encontrei um artigo sobre Monique Wittig na mesa. Essa feminista lésbica francesa foi a primeira a pensar a heterossexualidade não como orientação sexual, mas como um regime político que busca a dominação das mulheres pelos homens. “A heterossexualidade está para o patriarcado assim como a roda está para a bicicleta”, diziam as lésbicas radicais em Paris em 1980.

Vou dormir nos braços de outra lésbica, com a qual construo uma história de amor e apoio mútuo há mais de 12 anos e que nesse momento está preparando o jantar pra nós. 

No mês do orgulho LGBT+ eu queria falar da alegria que é ser lésbica. Não a violência que é ter que lidar com a lesbofobia, mas a alegria que é construir uma vida romântica e sexual centrada em mulheres. O alento que é não construir a imagem de si passando pelo olhar masculino, por relações com homens. Nesse sentido, ser lésbica é uma festa e só posso recomendar entusiasmadamente. 

6 comentários em “Escritos pra lembrar que estamos no mês da visibilidade lésbica

  1. Quando ouvi pela primeira vez a palavra “queer” me identifiquei. Pelo significado literal de origem, que acredito, referia-se a palavra “estranho”. Foi como me senti na maior parte da vida mesmo. Estranha.

    Já a palavra “lésbica” chegou antes, muito antes, porque lá na pré-adolescência, ainda sem entender nada direito, foi a definição mais próxima que eu consegui encontrar para mim mesma, para aquele tipo “estranho” de “menina” que eu era. Hoje, cada vez que penso nessas palavras, fico confusa. Não sei o que significa ser menino, menina, mulher ou homem, não sei o que significa masculino ou feminino, a não ser uma definição de um arquétipo cultural construído a partir de muitas opressões. Também já não compreendo exatamente o que define ser lésbica. Se ser lésbica é ter relações sexuais exclusivamente com mulheres ou se é amar exclusivamente mulheres, ou se é amar e ter relações sexuais exclusivamente com mulheres, ou se é um estado de ser ou é aquilo que te apontaram que você era na infância ou o que você quiser que seja…

    Eu tive, ao longo da minha vida, relações sexuais com ambos os sexos, mas me atei na palavra “lésbica” por nunca ter me apaixonado por um homem. As relações sexuais que tive com os homens percorreram muito mais o campo de uma amizade, que de alguma forma era extremamente diferente das relações de amor (e de estados de “demência”?) que eu desenvolvi com as mulheres. Acontece que hoje também não sei o que define “relações de amor”. Tenho entendido que para mim o amor é justamente a amizade, mesmo que se manifeste de tantas formas e que há uma miríade infinita de possibilidades nos tipos de troca que temos com nossxs amigxs. Acho que todas as minhas relações próximas, inevitavelmente, são relações de amor. Posso até intuir uma diferença genérica entre meu desejo por homens e mulheres no momento presente, mas não sei a forma correta de definir essa diferença em palavras, porque cada relação é única.

    Enfim. Peço desculpas por te trazer às confusões do meu pensamento. Acho que fazem parte de um processo de auto-conhecimento dentro de um descolar-se desses arquétipos culturais, e de um amor profundo pelas palavras, para querer entendê-las na sua complexidade, simplicidade, infinitude e força.

    Percebo que hoje, sozinha em minha intimidade, não faz sentido para mim, carregar tão coladas ao corpo, nenhuma destas palavras, ao menos não de forma que eu não possa me enxergar sem elas. Porque genuinamente gostaria de me abrir para as relações sem a necessidade de ranqueá-las.

    De outra forma: quando me perguntam quem eu sou, muitas vezes percebo a importância de escolher uma palavra que me defina, a palavra mais afiada para o contexto específico em que foi proferida a pergunta. Porque a palavra também é um instrumento, é uma foice, é uma espada. Posso dizer que na maioria das ocasiões respondi e responderei sem hesitar que sou uma mulher lésbica. Não por me identificar com suas definições e arquétipos culturais, mas por ter na minha história e no meu campo pessoal, uma dor profunda em comum, com estas mesmas pessoas ditas mulheres e lésbicas, provinda de certos tipos de opressão que passamos ao longo da vida.

    Essas palavras também retornam para mim quando me vejo refletida em vozes como a sua. Porque sei do que você está falando e contigo me irmano. Este é o vínculo que eu tenho com a palavra mulher e a palavra lésbica que me definem. Um vínculo de luta. Que possamos sempre honrar estas palavras. E enquanto precisarmos delas, resistiremos com elas, existiremos com elas, e nos transformaremos com elas.

    Obrigada

  2. amo o som da palavra l é s b i c a. esse segundo texto conversou muito comigo. que frustração estar imersa numa comunidade que, muitas vezes, se recusa a ser gentil com a gente. me pergunto pq…

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