Em 2020 fui convidada pelo podcast Sapataria pra participar de um episódio sobre veganismo. Foi durante o mês da visibilidade lésbica e tive a honra de dividir o episódio com mais duas lésbicas veganas que admiro: Carla Candace e Luciene Santos. O post de hoje é a transcrição da minha fala, que tratou sobre feminismo e veganismo. São pautas centrais na minha militância e fazia tempos que eu pensava em abordar esses temas, expondo suas conexões, aqui. Mas recomendo muito que você não pare nessa leitura e escute o episódio inteiro (Especial Mês da Visibilidade: Veganismo), pois Carla e Luciene falaram coisas extremamente importantes, que não abordei aqui.
Desde o início do movimento feminista as mulheres já faziam essa relação entre a luta por emancipação feminina e o consumo de animais não humanos. As feministas europeias do final do século 19 já questionavam o consumo de carne porque, segundo elas, o preparo de animais exigia muito mais tempo de trabalho, enquanto cozinhar vegetais era mais rápido, fazendo com que a mulher passasse menos tempo na cozinha e tivesse mais tempo livre pra participar da vida política (lembrando que na época muitas delas abatiam com as próprias mãos e limpavam antes de cozinha-los). E os paralelos entre a dominação das mulheres e a dominação dos animais não humanos logo foram identificados. E é por aqui que eu gostaria de começar.
Pra entender o que veganismo e feminismo tem em comum acredito que é importante entender primeiro o que a opressão das mulheres tem a ver com a opressão de animais não-humanos, o que o sexismo tem em comum com o especismo. “Especismo”, pra quem não conhece o termo, é a discriminação e opressão baseada na espécie, assim como “racismo” é a discriminação baseada na raça, sexismo no sexo, etc.
E o especismo e o sexismo têm uma base comum: a dominação do homem sobre o que é visto como vulnerável/mais fraco. No primeiro caso, sobre o animal não-humano e, no segundo caso, sobre a mulher. Como mulheres também podem ser especistas e se beneficiam do especismo, a coisa fica menos visível, mas vou tentar explicar aqui começando com uma história pessoal.
Quando eu tinha 12 anos um tio meu comprou uma casa com piscina. Foi a primeira vez (e até hoje única) que alguém da minha família teve uma piscina e o resultado foi que a família inteira invadia a casa do tio nos fins de semana. Durante as férias de verão vieram até familiares de outras cidades e o pobre do meu tio não teve sossego durante meses (até vender a casa). Mas o fato é que naquele verão, o verão dos meus 12 anos, eu passei muito tempo na piscina e um dos meus primos, um dos familiares que tinha vindo de longe pra aproveitar a piscina, sempre fazia um comentário específico quando me via de biquíni. Esse primo é uns 20 anos mais velho, então se eu tinha 12 anos ele tinha 32. Sempre que eu passava na frente dele de biquíni ele repetia, bem alto pra todo mundo ouvir, que eu estava “só o filé”. Meu corpo estava começando a mudar, meus peitos tinham começado a crescer, minha bunda também, e eu me lembro de ter ficado chocada com os comentários dele (tanto que hoje, 26 anos depois, eu ainda lembro perfeitamente do acontecido). O fato dele ter repetido, várias vezes, que eu estava “só o filé” ao mesmo tempo que preparava o churrasco, enquanto manipulava um filé de vaca, só aumentava o meu desconforto.
Que mulher nunca se sentiu tratada “como um pedaço de carne” por um homem? Não é por acaso que a palavra escolhida pelo meu primo pra dizer que meu corpo estava mudando e que por isso eu estava pronta pra ser consumida, figurativamente, por um homem é a mesma usada pra falar de um pedaço de outra fêmea, a vaca, essa consumida no sentido literal. Não é por acaso que homens dizem “comi tal mulher” pra falar que fez sexo com ela.
Então tem esse primeiro ponto em comum: a objetificação. O corpo da mulher é objetificado, assim como o corpo do animal não humano é objetificado.
Objetificação é o processo pelo qual a subjetividade e interesses de alguém são suprimidos e esse alguém, a vida desse alguém ou o corpo desse alguém, passa a existir apenas pro benefício de outro alguém. Mulheres são espancadas, estupradas e assassinadas por serem vistas como objetos pra satisfazer o prazer dos homens. Não como sujeitos conscientes com aspirações e desejos próprios.
E o animal não humano também é objetificado seguindo essa lógica. Não são considerados como sujeitos que existem por razões próprias, mas como objetos que estão ali pra servir os interesses dos humanos, “dar” leite, ovos. O homem come a mulher pra satisfazer seu prazer sexual e come a vaca, literalmente, pra satisfazer seu prazer gustativo.
Se o sexismo diz que o homem é superior à mulher, o especismo diz que o humano é superior ao não humano e essa suposta superioridade justifica discriminação, opressão e violência em ambos os casos.
Quando você objetifica corpos eles se tornam coisas que servem pra um propósito específico.
O patriarcado diz que o homem é superior à mulher, então elas existem pros homens. O especismo diz que o humano é superior ao não humano, então animais não humanos existem pros humanos. Objetificar seres é a primeira etapa pra naturalizar e justificar a violência contra seus corpos.
Vou citar aqui uma feminista negra e vegana estadunidense, chamada Afh Ko:
“O que é ainda mais assustador é que a vulnerabilidade percebida dos animais é usada como justificativa implícita para os abusos. Em outras palavras, porque os animais não podem lutar e resistir, nos dar ou negar consentimento, ou se organizar em oposição, nós, como seres humanos, sentimos que podemos fazer o que quisermos com eles, geralmente, sob o pretexto de “cuidar” dos seus interesses.”
Então já dá pra ver o quanto a lógica por trás da opressão das mulheres e dos animais não humanos é a mesma. (Eu vou repetir sempre “animais não humanos” porque é extremamente comum pensar que humanos não são animais, o que já é o primeiro passo pra que a ideologia de dominação do não humano se instale. Parece que somos algo diferente dos animais, que tem os animais, a natureza, e os humanos. Somos animais e somos natureza, e acho importante repetir isso sempre).
O segundo ponto em comum entre a opressão sofrida por mulheres e por animais não humanos é a violência sexuada. No complexo industrial especista, a violência imposta aos animais não humanos é diferente de acordo com o sexo deles. Fêmeas são ainda mais exploradas e torturadas do que machos, como vemos na produção de ovos e leite: a capacidade de reprodução dita o controle dos corpos dos animais. Vacas e porcas são continuamente estupradas, no processo de inseminação artificial, e quando seus corpos já não aguentam mais se reproduzir, depois de uma vida de tortura, elas são mortas e seus corpos terminam de ser consumidos.
Talvez isso choque algumas feministas, mas consumir corpos de fêmeas de outras espécies, que foram violentadas e estupradas, deveria ser um problema pra nós, que lutamos contra a cultura do estupro.
E tem mais um ponto em comum entre o sexismo e o especismo, talvez o mais difícil de observar sozinha, mas ao mesmo tempo o mais explícito de todos.
Violência contra animais não humanos acaba gerando violência direta contra humanos, principalmente os mais vulneráveis: mulheres e crianças. Tem uma correlação entre essas duas violências. Tanto que o abuso de animais é um dos indicadores que o FBI usa pra avaliar um futuro comportamento violento. De acordo com a American Humane Association em 88% das casas onde tinha abuso de crianças, também tinha abuso de animais não humanos.
Em 2009 foi publicado um estudo, feito por 3 pesquisadoras nos EUA, sobre a correlação entre o trabalho nos abatedouros e o aumento de crimes. O nome do artigo, em Inglês, pra quem quiser procurar depois, é “Slaughtehouses and increased crime rates”. Foram vários anos de pesquisa em mais de 400 municípios e mesmo levando em conta as variáveis geralmente associadas ao aumento de criminalidade (como desemprego, pobreza, comunidades desorganizadas), quando um abatedouro se instala em uma cidade a taxa de crimes aumenta, mesmo de crimes graves, como assassinato. E, o que não é uma surpresa, a violência doméstica, estupros e agressões sexuais contra mulheres aumentam de maneira vertiginosa sempre que os homens da comunidade vão trabalhar em um abatedouro. Se você está pensando que talvez isso tenha a ver com a alienação produzida pelo trabalho industrial, saiba que o estudo investigou isso e nenhuma outra indústria produz o mesmo efeito de aumento de violência visto no trabalho em abatedouros.
A conclusão do estudo é exatamente o que tentei explicar aqui. Citando o estudo: “A maioria desses crimes é cometida contra aqueles e aquelas com menos poder e nós interpretamos isso como a evidência de que o trabalho feito em abatedouros pode se transformar em violência contra grupos com menos poder, como mulheres e crianças.”
O sistema de dominação que produz o sexismo funciona de acordo com a mesma lógica que o especismo. Animais são objetificados, deixam de ser sujeitos que existem por razões próprias e passam a ser objetos que existem pro nosso prazer. E as fêmeas não humanas são torturadas e estupradas porque queremos os frutos do seu sistema reprodutor (o leite e os ovos) e quando elas não nos servem mais, são abatidas e seus corpos são consumidos. E se isso não é suficiente pra gente, que é feminista, questionar o especismo, a correlação entre violência contra animais não humanos e violência contra humanos, principalmente mulheres e crianças, deveria ser o argumento final pra gente decidir levar nossa solidariedade política aos animais não humanos, parando de dar apoio material e financeiro pro sistema de dominação e exploração conhecido como especismo. Em outras palavras, nos tornando veganas, se isso estiver dentro das nossas possibilidades materiais.
Palavras como “cachorra”, “cadela”, “piranha”, “galinha” e “vaca” são são frequentemente usadas pra xingar mulheres. Mulheres são comparadas com animais, são animalizadas. Pro patriarcado, que exerce sua dominação sobre os mais vulneráveis, isso justifica a nossa opressão. Enquanto o especismo existir, o sexismo vai existir. Em outras palavras, enquanto a violência e a discriminação baseada na espécie for normalizada, a discriminação e violência contra mulheres vai continuar existindo. Por isso acredito que a luta feminista deve ser antiespecista e inversamente.