Creme fermentado de amendoim

A tarefa de descolonizar a alimentação se torna mais importante pra mim a cada dia que passa. Ao ponto de ser hoje um dos pilares principais da minha militância antiespecista e a minha maior inspiração na cozinha. Por isso que a receita de hoje é um verdadeiro tesouro! 

Lembra quando eu falei sobre nós sermos o povo do amendoim? Agora imagine se essa leguminosa (sim, é da família do feijão) pudesse se transformar em algo cremoso e nutritivo, barato e delicioso, pra usar em todos os lugares que você usaria um, digamos, requeijão? Se ao invés de usar um produto ultraprocessado (quase sempre), vindo da exploração e sofrimento animal (sempre) e que é uma das principais marcas da colonização dos nossos hábitos alimentares (as vacas foram levadas pro Brasil pelos invasores europeus durante a colonização) a gente acompanhasse nossas tapiocas matinais com um creme delicioso feito com o amado amendoim?

Fruta-pão cozida, quiabada, tapioca com creme fermentando de amendoim e café com leite de coco

Pelas mensagens que recebo e pelas conversas que tive ao longo dos anos, a pergunta “o que passar no pão?” é uma das mais complicadas de responder pra quem acabou de se tornar vegana, ou que gostaria de não mais consumir produtos feitos com leite de mamífera. A nossa dependência do trio manteiga/requeijão/queijo é grande e acabou colonizado as mentes, tanto que muita gente não consegue nem imaginar algo vegetal pra passar no pão. É assim que muitas pessoas que acabaram de se tornar veganas caem na armadilha do requeijão vegetal industrializado, perdendo uma oportunidade de aumentar sua autonomia na cozinha e se mantendo dependente da indústria alimentícia.

Eu sei o que você está pensando: “Mas quem tem tempo de fazer sua própria pasta pra passar no pão? Ainda mais essa aí, que leva um tempão pra ficar pronta?” Sim, tenho consciência que vivemos no capitalismo e nesse sistema a maior parte da população tem que ir de um emprego que a explora pra outro emprego que a explora só pra conseguir sobreviver. Mas produtos “veganos” industrializados custam um rim, sendo uma opção apenas pra um grupo bem reduzido de pessoas. Apesar dessa pasta de amendoim precisar de um processo um pouco longo, ela não exige quase nada de tempo ativo na cozinha e custa bem menos do que uma alternativa ultraprocessada e uma pequena parcela do que você pagaria por uma pastinha “fit-do-bem-que-cura”, como diria, ironicamente, dona Juliana Gomes. Que acontece de ser a pessoa que me ensinou essa receita.

Ano passado minha irmã caçula me recebeu da França com uma porção de pãozinho de macaxeira acompanhados de um creme de amendoim divino. Elogiei a delícia e ela me falou que era uma receita da minha amiga e companheira de blog Juliana Gomes. Desde então eu planejava fazer esse creme pra compartilhar aqui. Ju aprendeu a receita com um amigo do Pará, que não é vegano mas entende muito de comida. Ela acredita que o mundo inteiro precisa provar isso e eu não poderia concordar mais.

Dá mais trabalho do que comprar um requeijão (vegetal ou não) pronto? Sim mas dá muito mais satisfação também. E é muito mais barato, promove a autonomia na cozinha, te liberando um pouco mais da dependência da indústria, além de participar da descolonização da nossa alimentação. Sai o leite de vaca e entra o amendoim. E o sabor? Nem se compara! 

Hoje pedi a bênção à minha mãe, como faço todas as manhãs e todas as noites (sou desse tempo), e ela, que tem Alzheimer e por isso nem sempre acerta as respostas, falou: “Deus te dê sabor, minha filha.” Adorei essa nova bênção é isso que desejo pra você. 

Creme fermentado de amendoim

Ju chama de “patê aveludado de amendoim” mas sendo “patê” uma coisa muito mais densa e compacta, eu achei que o nome não calhou bem. Espero que ela não se importe com o novo nome que eu dei. Também fiz pequenas alterações no modo de preparo, pra fermentar por mais tempo. !!! Receita atualizada no dia 16/07/20024 – Acabei fazendo mais alterações no modo de preparo e agora ficou ainda mais simples!

400g de amendoim cru (sem casca mas com pele)

Água

Suco de 1 – 2 limões (dependendo do tipo de limão utilizado)

Sal

Material necessário:

-Liquidificador

-Tecido fino pra coar o leite (voal)

-Pano de prato

-Escorredor de macarrão

-Tigela ligeiramente menor que o escorredor de macarrão

Resumo da receita: você vai colocar o amendoim de molho, passar no liquidificador pra fazer um leite, coar o leite e levar pra ferver, depois talhar com suco de limão. Depois vai deixar o leite talhado escorrer (pra separar o soro do creme), ao mesmo tempo que fermenta (naturalmente, em temperatura ambiente).

Dia 1 (noite): Deixe o amendoim de molho por pelo menos uma noite (pode deixar por 24h). Eu tirei a casca do amendoim, que sai facilmente depois da demolha, mas é uma etapa totalmente opcional.

Dia 2 (manhã ou tarde seguinte): Escorra a água, coloque o amendoim demolhado no liquidificador e junte 1 litro de água. Bata no liquidificador até ficar bem macio (de 30 segundos a um minuto, dependendo da potência do seu liquidificador). Se seu liquidificador for pequeno, você vai precisar fazer isso em duas vezes.

Usando um voal, coe o leite de amendoim espremendo bem. O resíduo pode ser guardado na geladeira e usando em várias receitas (lembre que o amendoim está cru e como ele é mais saboroso cozido, use em receitas que irão ao fogo/forno).

Leve esse leite de amendoim cru ao fogo e deixe ferver por dois minutos. Conte à partir do momento que começar a aparecer bolhas. Desligue o fogo e junte o suco de dois limões (usei limão Galego, que é bem menor que limão Tahiti ou Siciliano) e um pouco de sal (uma pitada generosa, com os cinco dedos). Misture com uma colher de pau, cubra a panela e deixe talhar (em temperatura ambiente) por algumas horas (pelo menos 4). Como coloquei o leite pra talhar no início da tarde, deixei talhando até a noite e coloquei pra escorrer pouca antes de ir dormir.

Depois de talhar por algumas horas, encaixe um escorredor de macarrão sobre uma tigela (o escorredor não deve encostar no fundo da tigela, pois queremos escorrer o líquido do creme aqui dentro), cubra o escorredor com o pano de prato e por cima do pano de prato coloque o voal (se não tiver o voal pode usar só o pano de prato). Com cuidado, despeje o leite de amendoim talhado dentro do escorredor de macarrão forrado, faça uma trouxinha com o voal e dobre as pontas do pano de prato sobre a trouxinha. Agora deixe o creme escorrer, em um canto tranquilo da sua cozinha, por pelo menos 12 horas. Eu queria que ficasse bem espesso e bem fermentado (estamos falando de fermentação selvagem aqui: o creme vai fermentar sozinho, sem precisar acrescentar nada), então deixei escorrendo/fermentando durante 24 horas (era verão em Natal).

Dia 3: Dependendo da temperatura da sua cidade, vai precisar de mais ou menos tempo pra fermentar. Pra saber se fermentou o suficiente retire uma colherada de creme e observe. Se tiver aerado, com furinhos de ar, é porque fermentou (os “furinho” são a prova da atividade bacteriana). Nesse caso prove e corrija o sal, se necessário. Agora é só transferir pra um recipiente com tampa e conservar na geladeira.

20 comentários em “Creme fermentado de amendoim

  1. Amei a bênção da senhora sua mãe. Acho que o mundo seria um pouco mais feliz se toda a gente fosse abençoada com sabor.

    Mudando de assunto, Sandra, não estou mais recebendo as notificações por email desde o final do ano passado. Até me inscrevi de novo naquele campo no final da página, mas os emails simplesmente pararam de chegar.

    1. Oi, Dayana. O site realmente está com um problema pra enviar as notificações. Estou tentando resolver e espero que você possa receber os posts quentinhos por email em breve.

  2. Parece deliciosa! Não vou conseguir fazer neste momento da minha vida, pelo tempo, mas vou guardar por escrito para tentar um dia. Em geral faço uma pastinha fermentada mais simples de fazer, mas nada cremosa rs.

    Ah, tenho uma dica para descascar amendoim de um jeito rápido que aprendi com o pessoal da alimentação viva. Vc coloca os grãos demolhados ou germinados dentro de um coador grande de voal, põe esse coador fechado na bancada com os grãos dentro e vai passando por cima um rolo de macarrão ou uma garrafa de vidro ou qq coisa grande que role. Passa algumas vezes apertando e rolando. Os grãos vão dar uma quebrada e as cascas soltam. Depois vc põe os grãos numa bacia, enche de água e as cascas vão ficar boiando, aí é só escorrê-las pra fora. Serve pra outras leguminosas tbm, como grão de bico.

    Atualmente eu uso com casca mesmo, mas achava relativamente prático 🙂

  3. Sandra, muitíssimo agradecida pela receita! Fazendo aqui e desfrutando de observar as mudanças de texturas ao longo do processo! Uma dúvida: é necessário acrescentar sal? Ou posso deixar sem sal?

  4. Eu tinha visto no blog da Ju a muito tempo atrás e acabei adiando, quando li aqui no teu blog relembrei, resolvi encarar e fazer. É simplesmente maravilhoso! Estou com amendoim aqui demolhando pra fazer pela quarta vez. Semana passada fiz uma pizza e usei ele, gratinou e ficou incrível! Foi uma das principais descobertas dos últimos tempos na minha trajetória enquanto vegano!

  5. Sandra, tudo bem? Depois do leite talhado, não podemos usar o próprio vial para separar o soro? Ou ideal é pano de prato mesmo?

  6. Sandra,
    Fiz esse fim de semana.
    Tinha um pacote de amendoim perdido há tempos no armário, pra vencer.
    Resolvi tentar a receita, sem botar rmuita fé porque não gosto muito do sabor residual do amendoim no leite ou em pastinhas.
    Assim que experimentei, fiquei maravilhada.
    Que delícia, que textura, que tu-do.
    Vou fazer sempre.
    Seu blog é maravilhoso.
    Parabéns!

    1. O leite feito com amendoim cozido é um produto bem diferente da pasta de amendoim, apesar dos dois virem do mesmo alimento. O sabor e textura não são iguais, logo um não pode substituir o outro nessa receita.

  7. Eu faço uma receita parecida, só que misturo o leite de amendoim com o leite de coco (ambos caseiros) e umas colherzinhas de rejuvelac, depois deixo fermentar pra virar tipo um yakult. Mas o que eu gostei na sua receita foi essa dica pra coar, eu fico exausto só de lembrar da parte de ficar torcendo aquela massa toda no voil.

  8. Sandra, sou sua fã! Adoro ler sobre seus ativismos todos e testar suas receitas maravilhosas. Me inspira demais.
    Obrigada por compartilhar com a gente!

    Aqui em casa a gente faz essa receita e chamamos de requeijim 🙂

  9. Sandra, amei a mudança no preparo. Testei aqui, super prático! Uma dúvida: qual prazo ideal de consumo, armazenando em geladeira? Gracias!

    1. Como toda comida fermentada, é um alimento vivo e é difícil dar uma data de validade precisa pra esse creme, pois vai depender muito das condições de preparo e da atividade das bactérias. E como comemos tudo aqui em menos de uma semana, não posso dizer até quando ele aguenta. Você vai ter que usar o seu nariz e papilas pra testar se ainda está bom. Confie neles 😉

  10. Oi Sandra
    Muito obrigada por mais essa receita! Gostei bastante do resultado. Por aqui, usei um coador de café de pano bem grande, que tenho só para esse tipo de preparo, encaixado numa jarra de suco grande. Funcionou bem nas duas etapas, tanto para coar o leite quanto para drenar o creme. Minha dúvida é: você fala para drenar o creme escorrendo o líquido dentro de uma tigela, mas não comentou se faz algo com o líquido. Eu guardei na geladeira, tem alguma sugestão para ele?

    1. Oi! Fico feliz por você ter gostado desse creme, que é um dos meus preferidos aqui no blog 🙂 Eu descarto o soro que escorre durante a preparação, então não tenho sugestões do que fazer com ele. Mas agora fiquei intrigada: será que tem potencial culinário? Um dia eu testo e volto aqui pra contar.

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