A minha linguagem do amor primária é “palavras de afirmação” (eu convido todo mundo na minha vida a fazer o teste e te incentivo a fazê-lo também). Mas a segunda é “atos de serviço” e é aqui que entra a minha maneira preferida de mostrar amor por alguém: cozinhando. Eu cozinho quando quero levar reconforto pra alguém sofrendo de males do corpo ou da alma, pra aliviar a dor de um pé na bunda, pra alegrar alguém no final de um dia longo e exaustivo, pra conquistar o coração da mulher que decidiu habitar os meus pensamentos… E ontem passei a tarde cozinhando pra uma camarada de coletivo que torceu o tornozelo e está acamada há dias.
Nosso coletivo é um apoio imenso pra nós. Se nos chamamos “Brigadas de Solidariedade Popular”, seria uma contradição ser solidária com a comunidade aqui, mas não praticar a solidariedade entre nós. Então enquanto escrevo essas linhas, Anne está na casa da camarada machucada fazendo faxina (além de ter levado toda a comida que cozinhei ontem). Mais cedo outro camarada do coletivo foi na feira pegar frutas e verduras frescas e depois foi deixar na casa dela. E hoje à noite outro camarada vai passar pra levar a cachorra que vive com ela pra passear. E isso se repete todos os dias. Criamos até um grupo Telegram pra organizar o apoio entre nós (quem vai passar pra passear com a cachorra, quem vai passar pra descer o lixo, etc).
E já que eu ia passar horas na cozinha, aproveitei pra fazer porções grandes de tudo e agora temos comida pra semana inteira aqui em casa também. Aí lembrei que há anos prometi explicar aqui no blog como cozinhar pra semana. Minha experiência como chef a domicílio me transformou numa ninja da preparação alimentar. Hoje consigo fazer comida pra toda a semana (almoço e jantar) em 3 ou 4 horas, dependendo da complexidade dos pratos. Isso incluindo a limpeza da cozinha depois!
Se você não cozinha regularmente, quatro horas cozinhando direto pode parecer muito, mas deixa eu explicar essa conta. Se você divide isso pelo número de refeições preparadas e depois subtrai todo o tempo lavando louça que você vai economizar durante a semana (quando a comida já está pronta, você suja muito menos louça pra esquentá-la. Menos ainda se você usar o microondas), a coisa fica mais interessante. Aí eu te peço pra pensar na sensação maravilhosa de chegar em casa cansada, depois de 11 hora de trabalho, mais dois metrôs (minha rotina atual), abrir a geladeira e se deparar com comida gostosa, caseira e prontinha pra ser degustada. Tudo que a separa do seu estômago são os minutinhos que vai levar pra esquentá-la. E se pensarmos na economia de gás e na redução de desperdício que cozinhar tudo de uma vez proporciona, você se dá conta que faz muito sentido cozinhar assim, principalmente durante a semana. Tem sempre a opção de pedir comida pronta, verdade. Mas além de menos saudável (nada supera comida caseira), isso custa um rim.
Agora que você já se convenceu que essa maneira de cozinhar só tem vantagens, deixa eu explicar como faço.
Tem duas maneiras de proceder. A primeira é fazer uma lista de pratos que você gosta de comer e depois criar uma lista de compras com os ingredientes necessários pra preparar os ditos pratos. É assim que faço quando trabalho como chef a domicílio e posso fazer outro post no futuro detalhando isso. Mas quando cozinho em casa geralmente parto do que já tenho e crio o cardápio em função do que está disponível na geladeira e no armário. Claro que se você fizer isso no final do mês, com uma despensa vazia, suas opções serão bem limitadas (mas nada é impossível e volto aqui outro dia pra falar disso). Idealmente você vai fazer isso depois de ter feito compras ou, no mínimo, quando ainda tiver uma pequena variedade de vegetais frescos na geladeira e ingredientes secos na despensa. Então vou contar como fiz ontem, passo a passo, e você pega o que for útil e adapta o resto pra funcionar na sua cozinha.
1- Eu abro a despensa, a geladeira e o congelador e vejo o que tem disponível e o que precisa ser preparado em prioridade (porque já está passando do ponto). Pra realmente “ver”, coloco tudo em cima da mesa/bancada (no meu caso, fogão apagado e pia, porque minha cozinha é muito mal equipada).
2- Separo por categorias: cereais, leguminosas, vegetais frescos, condimentos e restos. “Restos” pode tanto ser o resto da refeição de ontem quanto um grão de bico cozido que dormia na geladeira, esperando pra ser usado.
3- Pra ter refeições nutritivas, variadas e, muito importante, que encham a pança, incluo leguminosas em todos os pratos. Imagine que se você estivesse construindo uma casa, as leguminosas seriam os tijolos, enquanto cereais seriam o cimento e as verduras, o reboco. Então escolho duas ou três leguminosas pra ser a base do cardápio da semana. Pra simplificar, pode ser só uma. Um feijão, por exemplo. Basta mudar os acompanhamentos. Lembre de deixar as leguminosas de molho no dia anterior. (Eu não lembrei e fiz assim mesmo, na pressão. É menos digesto? Com certeza! Mas a outra opção era ficar sem leguminosas e isso, na verdade, não é uma opção.)
(Se você perdeu essa aula, leguminosas são feijão, lentilha, tofu, tempeh, ervilha, grão de bico e fava. Cereais são: arroz, macarrão, cevada, milho… Pra conhecer a fórmula da saciedade, leia esse post.)
4-Vou combinando as verduras e os cereais disponíveis com as leguminosas e ideias de receitas vão aparecendo na minha mente. Escrevo a lista de pratos (com os ingredientes principais) num papel, pra ir me guiando enquanto cozinho. Mas isso é só um ponto de partida. Ontem mudei de ideia algumas vezes durante a maratona na cozinha e acabei preparando coisas que não estavam na lista inicial e deixando outras de fora. Também não usei tudo que achei na despensa.
5- À partir daqui já começo a cozinhar, mas deixo algumas dicas pra quem tem menos experiência com panelas. Selecionou as receitas? Separe os ingredientes por receita, pra facilitar seu trabalho (assim vai mais rápido) e não esquecer aquela cenoura que precisava ser usada hoje e que ficou escondida atrás do escorredor de pratos.
6- Aproveite ao máximo seu fogão combinando coisas que não precisam da sua atenção pra cozinhar e coisas que precisam de uma colher de pau mexendo sempre. Enquanto o grão de bico cozinhava eu refoguei várias coisas e coloquei as batatas doces pra assar. Quando tirei as batatas doces já coloquei o macarrão pra gratinar, pra aproveitar que o forno já estava quente.
7- MUITO IMPORTANTE: vá lavando a louça conforme a pia for enchendo. Pra evitar a montanha de louça suja no final e, se você tiver poucas panelas, como eu, porque não vai dar pra continuar sem fazer isso. Sem falar que, por ter uma cozinha pequena, logo fico sem espaço pra fazer nada se não for lavando a louça por etapas. Aliás, adquira o hábito de ir limpando tudo conforme for sujando (mesa, bancada).
Quando trabalho na casa de clientes faço a “mise en place” de tudo antes e as coisas fluem e tudo vai mais rápido. Explicações sobre “mise en place” outro dia, o post de hoje é só pra começar a conversa sobre essa maneira de cozinhar.
Na minha despensa tinha alguns feijões, grão de bico, lentilha, arroz, cevada, milho em lata, macarrão, uma caixinha de creme de leite de soja (que comprei pra experimentar meses atrás), pasta de castanha (de descarte. A ocupação que serve de base pro nosso coletivo recebeu caixas e mais caixas de pasta de castanha vencida de apenas uma semana!)… Na geladeira tinha alguns legumes tristes (de descarte), vários restinhos (arroz com cenoura, cogumelo com creme de castanha…), além de tempeh (de descarte, vencido há alguns dias), tofu defumado (idem) e um queijo feta (de soja) que chegou no lugar onde eu trabalho com a embalagem rasgada e eu trouxe pra casa. Como agora tem uma horta no nosso quintal, também tinha ervas frescas (hortelã, salsinha, coentro e manjericão) e couve.
Eu acabei preparando:
-Chili com tempeh (feijão vermelho com a mistura típica mexicana de temperos)
-Lentilha com tofu defumado e batata doce assada
-Salada de cevada com tomate, pepino, feta (de soja) e hortelã
-Sopa de aveia (com creme de leite de soja)
-Macarrão gratinado, com molho de castanha e couve (mais o resto do cogumelo com creme)
-Grão de bico com tomate e tahina (mais um resto de berinjela grelhada)
-Mexidão de arroz com todos os restos de legumes (e até uma metade de grãomelete) que achei na geladeira, no congelador (resto de ervilha) e na despensa (proteína de soja temperada que tive que testar pro trabalho)
-Bonus: bolinhas de passas, coco e limão (fiz essa receita, mas na forma de bolinha e sem gergelim)
-Bonus 2 (que não apareceu nas fotos): hummus suficiente pros cafés da manhã/lanches da semana.
Preparei quatro porções de quase tudo, com exceção do macarrão gratinado (fiz seis porções) . Uma porção de cada prato (duas do gratinado) foi pra camarada que não pode cozinhar no momento e o resto vai alimentar Anne e eu durante os próximos dias. Se estivesse cozinhando só pra minha casa, teria feito menos pratos, três ou, no máximo, quatro, e repetiria durante a semana. Mas eu queria fazer um mimo pra camarada doente, então fiz uma variedade maior. Cozinhei alguns dos ingredientes que entrariam nas receitas em quantidades maiores e guardei no congelador (grão de bico e cevada). Semana que vem eles entrarão como “restos” e, por já estarem preparados, vão diminuir meu tempo de trabalho.
Respostas pras futuras perguntas
“E se eu quiser comer outra coisa durante a semana?”
Seguinte. Se você tiver grana pra pedir comida pronta, talvez o “não estou com vontade de comer isso hoje” apareça. Mas se você, que chegou cansada do trabalho/faculdade/militância, tiver que preparar outra coisa no lugar, garanto que a refeição prontinha te esperando na geladeira vai te parecer a coisa mais apetitosa do mundo. Mas vale a pena falar o óbvio: escolha receitas que você gosta. Não adianta nada fazer três pratos com lentilha se você não gosta de lentilha.
“Como saber se terei vontade de comer, daqui a cinco dias, o que preparei hoje?”
Leia a resposta acima. Mas se quiser ter mais liberdade pra preparar refeições de acordo com seus desejos diários recomendo cozinhar, não pratos, mas ingredientes. Prepare um feijão (sem tempero), um cereal, alguns legumes assados, um molho gostoso e vá misturando isso com verduras frescas durante a semana, de acordo com suas vontades.
“Tive uma semana caótica, as coisas não saíram como planejado e acabei comendo fora várias vezes. Cheguei no final da semana e ainda tem vários pratos não consumidos na geladeira.”
Congele tudo e coma semana que vem, ou quando precisar.
“Sou nova na cozinha e não sei improvisar receitas simplesmente olhando pra um quilo de feijão, um tomate e um resto de arroz.”
Reconheço que essa técnica é avançada e se você está começando a cozinhar agora, provavelmente não vai conseguir improvisar vários pratos diferentes somente olhando pro que tem na despensa. Pra quem é debutante, o método “fazer lista de pratos, depois fazer a lista de compras” funciona melhor. Como falei, volto aqui outro dia pra explicar essa técnica em detalhes.
Últimas dicas
-Uma despensa minimamente estocada é o ponto de partida pra cozinhar dessa maneira. Uma gordura pra cozinhar (óleo ou azeite), sal e pimenta preta, pelo menos uma erva desidratada (orégano é a mais versátil) e cebola e alho são a base pra mim.
-Pense em pratos únicos. Eu adoro o almoço brasileiro, mas ter feijão+arroz+verdura cozida+salada+uma mistura todo dia significa muito tempo na cozinha. Na Europa, de onde estou escrevendo essas linhas, é mais comum ter pratos únicos, que combinam vários ingredientes e que reduzem o tempo de trabalho, além da quantidade de louça suja. Aqui no blog tem várias receitas de pratos únicos pra te inspirar.
Enquanto terminava de escrever esse post, recebi uma mensagem da camarada que está com o tornozelo torcido. Ela me agradeceu muito pela comida e disse que há dias só se alimentava de hummus e pão, por não conseguir ficar em pé tempo suficiente pra preparar uma refeição. “E tudo parece delicioso!” A melhor parte de cozinhar, na minha opinião, é levar alegria, amor e acalento pra barriga das pessoas que importam pra mim. E me incluo nessa lista de pessoas que importam pra mim.
Oi, Sandra
Além de sempre aprender muito com o que você compartilha, essa solidariedade se mostra muito especial e importante quando a gente pensa em uma parte da nossa população que pode sempre precisar de cuidado – pessoas com deficiência, doença crônica, idosos… Cada vez mais faz mais sentido o senso de comunidade e compartilhamento de cuidado. Queria escrever muito mais, mas hoje não é dia que as palavras estão fáceis.
Obrigada por tanto
Amei, todas suas dicas são valiosas! Estava com saudade de ler você, Sandra! 🙂
perfeita <3
Como domingo foi o dia do meio-ambiente.
Por mais que não seja vegano porque priorizo mais o meio-ambiente que os animais (coisa que já comentei em textos do ano passado e do ano retrasado). Reconheço que os veganos divulgam coisas sobre o impacto ambiental da pecuária (grande quantidade de água, grande quantidade de vegetais usados na pecuária, grande desmatamento, grande área para pastos; enquanto apenas a agricultura tem um impacto ambiental menor) que os ambientalistas até os anos 2000 não divulgavam.
Quando soube dos impactos ambientais causados pela pecuária (em março de 2008) na escola (por um professor vegano); eu parei de comer frango e carne vermelha.
Até 2024, estou pensando em me tornar ovolactovegetariano; porque infelizmente ainda como peixe e frutos do mar (através do documentário vegano Seaspiracy; são divulgados os impactos ambientais da pesca e da extração de camarão; a extração de camarões, destrói os mangues e os mangues são os lugares aonde os peixes se reproduzem; e a pesca predatória pode extinguir peixes dos mares, os peixes alimentam as algas e as algas são importantes para absorver gás carbônico diminuindo o aquecimento global).
Adorei esse post Sandra e estava esperando por ele 🙂
Se puder postar mais dicas de como se organiza quando faz de chef ao domicílio e sobre mise en place seria ótimo.
Eu tenho sempre a sensação de passar horas na cozinha para preparar alguma coisa e tenho uma familia de 4 para alimentar. Obrigada por esse post maravilhoso. Beijinhos
Amo esse método de ir criando os pratos a partir da geladeira e dispensas nessa eu criei meu prato único favorito: arroz, Lentilha, cenoura batata doce e paparica defumada. Sustenta e acalenta a alma! Força! Seu trabalho é inspirador!
Seus textos são lindos