Agora que já posso contar as semanas que faltam pra terminar o trabalho na mercearia nos dedos de uma mão, sinto que posso começar a falar sobre essa experiência aqui.
No início de abril iniciei um contrato de quatro meses como vendedora em uma mercearia fina e totalmente vegetal. Eu já era cliente ali há anos e sempre simpatizei com a dona da mercearia. Então quando minha situação financeira chegou num ponto crítico e eu comecei a procurar bicos pra complementar a renda (desde que criei a campanha de financiamento no Apoia-se, em 2020, essa tem sido a minha única fonte de renda), o anúncio dessa mercearia vegetal procurando vendedora me pareceu exatamente o que eu precisava no momento. Ter um salário fixo, mesmo por um período de apenas quatro meses, está me ajudando a desafogar um pouco e ter tranquilidade financeira, embora passageira. Mas, e isso não vai surpreender a galera que bate ponto todos os dias, isso vem com muitos custos.
Apesar da carga de trabalho semanal na França ser de 35 horas, trabalho onze horas por dia, com uma pausa de uma hora no meio (aceito todas as horas extras, porque preciso do dinheiro). Gasto quase duas horas diárias com deslocamento. Trabalho nos fins de semana. Nos meus dias de folga estou tão cansada que mal consigo recuperar a força que me foi sugada durante a semana e não consigo fazer mais nada. Parei de participar das atividades do meu coletivo e os posts semanais aqui viraram quinzenais. Fora que a vida pessoal foi freada bruscamente. Ver as amigas, dar apoio às pessoas na minha comunidade e até ligar pra minha família ficou muito mais difícil, pois minha energia, mesmo nos dias em que não trabalho, parece que não consegue se restaurar. Agora as coisas mais simples, como responder o áudio que a amiga enviou há duas semanas, muitas vezes representam algo que vai além das minhas forças.
Tenho muito o que contar sobre as descobertas que fiz trabalhando na mercearia. O que pude observar do “mercado vegano” e das pessoas veganas em Paris, mas, principalmente, sobre as condições de trabalho e exploração da mão de obra imigrante aqui na Europa (Uber Eats, tô olhando pra você!). Pra minha grande surpresa, esse trabalho se tornou uma pesquisa de campo. Quem diria que fazer um bico de vendedora, impulsionada pela insegurança financeira na qual me encontro, forneceria material que daria pra se transformar em uma tese em sociologia e outra em psicologia!
Também ganhei novos amigos refugiados (os entregadores de aplicativos) e novas redes de solidariedade estão se tecendo entre nós, mas isso tudo fica pra outro dia. Só quando terminar meu contrato e eu tiver descansado por algumas semanas conseguirei voltar aqui e escrever sobre isso.
Como eu disse, não estou me referindo a nada que saia do ordinário, infelizmente. Quem trabalha longas horas, fazendo um trabalho físico e pega transporte público todos os dias conhece muito bem essa toada. A toada da trabalhadora explorada e esgotada.
Mas talvez você, me lendo agora, não tenha vivido experiências de trabalho similares. Talvez você nem faça parte da classe trabalhadora. Então deixa eu abrir uma pequena janela no meu cotidiano pra te dar uma ideia do que estou falando. Vou contar como foi o meu último dia trabalhado, que embora tenha sido particularmente difícil, não foi muito diferente de todos os outros.
O último dia da minha semana de trabalho (que inclui o fim de semana) é sempre o mais difícil porque traz acumulado o cansaço dos dias anteriores. Nesse ponto eu já levanto da cama cansada e me dou conta que as oito horas de sono já não são suficiente pra descansar o corpo: a sola dos pés doem quando eles encontram o chão do quarto.
Todo dia eu faço tudo sempre igual, como canta Chico Buarque. Levanto, tomo banho, faço o café, como e caminho até o metrô. A repetição às vezes me desorienta e parece que estou num daqueles filmes em que a pessoa vive sempre o mesmo dia, presa num looping temporal.
Felizmente não teve muitas entregas de mercadoria naquele dia. Na véspera tínhamos recebido oito entregas grandes e passei horas e horas carregando caixas. Passo boa parte do dia levantando peso, desembalando e embalando coisas, subindo e descendo escada (o depósito fica no subsolo, sem elevador de carga), colocando mercadorias nas prateleiras… Só sento quando vou ao banheiro ou quando paro pra comer. A mercearia também vende por aplicativo (Uber Eats), então muita gente que antes se deslocava pra fazer suas compras, agora pede pelo aplicativo. Isso aumentou muito o nosso trabalho de vendedora, pois além de cuidar das clientes que estão presentes na loja, também temos que preparar as comandas das clientes que pedem pelo aplicativo, correndo contra o tempo quando a loja está cheia e muitas comandas chegam de uma vez (temos apenas 20 minutos pra preparar uma comanda). Hoje uma parte considerável das nossas vendas se faz via Uber Eats e é por isso que acabei me aproximando dos entregadores (todos refugiados).
Depois de 10 horas em pé, de muito sobe e desce de escada, várias comandas preparadas e algumas interações delicadas com clientes obtusas (felizmente nesse dia não tive que lidar com comportamentos sexistas de clientes homens), fui pegar o metrô de volta pra casa, feliz por estar, enfim, de folga. Mas a alegria da trabalhadora não vem assim tão facilmente.
Preciso pegar dois metrôs pra chegar em casa, com uma baldeação em uma estação bem grande, e a linha que chega até a minha periferia é (surpresa!) uma das piores da grande Paris. Os trens são tão velhos e barulhentos que já desisti de escutar podcasts ou música no caminho do trabalho, pois ou coloco o volume dos fones no máximo e corro o risco de estourar os tímpanos ou não consigo escutar nadinha. Tem sempre problemas técnicos que fazem com que eles atrasem ou parem entre duas estações. Acho uma graça quando o condutor do metrô anuncia no alto falante: “Senhoras e senhores, ocorreu um problema técnico e o trem vai estacionar alguns minutos. Peço que esperem”, como se a gente tivesse a possibilidade de abrir a porta do metrô, entranhado nos subsolos da malha metroviária, e continuar a viagem andando! Algumas linhas de metrô em Paris tem ar-condicionado, mas claro que a minha linha não tem. E, pra completar, é uma linha que está sempre, sempre lotada, pois transporta a galera migrante periférica que trabalha em Paris (presente!). E é muita gente.
Na hora de fazer a baldeação percebi que a plataforma estava ainda mais cheia do que o de costume e que o próximo trem estava atrasado. Falta de sorte minha, passei a ter dores de cabeças agudas há alguns dias e a mistura de cansaço e fome fizeram com que a minha cabeça, que estava doendo num nível suportável até então, passasse a latejar. Mas eu teria que coloca-la, latejando ou não, dentro do próximo metrô. Não sei como consegui entrar no vagão, mas juro que nunca peguei um transporte tão cheio. E parece que mesmo depois que o negócio lota total, mais gente ainda consegue se enfiar dentro. Transporte público ri na cara da lei da física que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço.
Então imagina aí. Lá estava eu, exausta da longa semana de trabalho, no final de mais um dia de batente, em pé durante todo o trajeto de volta pra casa, tão apertada que você pensa “se eu respirar fundo, eu arroto!” e que torna risível o instinto de se segurar nas barras de ferro (como vai cair se não tem espaço no chão, minha filha?) quando… uma briga entre dois homens explode do meu lado. Você não sabe quem começou, mas uma coisa é certa: vai sobrar porrada pro seu lado porque não dá pra fugir. Gritaria, empurra-empurra, Jesus-Maria-José! vou-voltar-pra-casa-com-um-olho-roxo-era-só-o-que-me-faltava! Até que um jovem bota moral nos cabras que estavam brigado (por espaço, obviamente!) e a nossa parte do vagão dá um suspiro de alívio. Tá todo mundo bem? Tá todo mundo bem. Obrigada, jovem que botou moral. Mas não é que menos de trinta segundos depois outra briga explode, na outra ponta do vagão?
Nesse ponto minha dor de cabeça tinha piorado muito, a fome roncava alto e me deu vontade de chorar porque parecia que eu não ia chegar nunca mais em casa. Mas nada que não pudesse ficar pior. Pane de eletricidade no metrô, circulação interrompida por alguns minutos, calor dos infernos (mas não baixa a máscara que a Covid tá voltando com tudo!) e, sendo a trabalhadora uma mulher, você achava que ela ia conseguir chegar em casa sem ser vítima ou presenciar uma situação de violência sexista? Quem achou que sim, é homem.
Apesar do vagão estar menos lotado, pois já estávamos chegando no final da linha, um homem começou a invadir o espaço da mulher do meu lado, jogando o seu corpo sobre o dela. Ela reage e pede pra ele se afastar, diz que agora tem espaço ao redor dele, o vagão inteiro finge não ouvir, o homem se recusa a sair de cima da mulher, eu vou pro lado da mulher e tento protege-la, outro homem se aproxima… pra defender o cara assediando ela! Não satisfeito ele começa a insultar a mulher que estava sofrendo a agressão (minha nossa senhora do perpétuo socorro, tira nós desse vagão!). Finalmente chegamos no terminal, o trem ainda cheio, e eu acompanhei a moça até a saída pra garantir que ela estava bem.
Fiz os 10 minutos de caminhada que separam o terminal do metrô da minha casa quase me arrastando e cheguei em casa “só o durex”, como dizia um colega gaúcho. Fisicamente exausta, emocionalmente chacoalhada, faminta e com a cabeça a ponto de explodir. Mas foi só um dia comum na vida da trabalhadora mulher, migrante e que mora na periferia.
Oi Sandra, ao ler o seu texto me senti nele. Embora as minhas condições de trabalho sejam diferentes (sou professora na rede pública estadual de Santa Catarina), são tantos atravessamentos todos os dias que me sinto completamente sugada de segunda a sexta, e, pior ainda, com uma cabeça que não consegue parar de pensar em trabalho (graças às deusas vivo tendo ideia para experimentar com as turmas adolescentes). Meu companheiro reclama a minha falta de presença em casa e eu entendo. Entendo o desleixo com os gatos, com as plantas, mas eu mal dou conta de mim mesma e do que “preciso” fazer… e é curioso ler seu relato assim na Europa, pois também estou com a possibilidade de sair do Brasil no próximo ano. O que me deixa mais preocupada com essas questões de trabalho… bom, vou voltar ao meu cafézinho e continuar a trabalhar. Um abraço forte!
Também sou imigrante e ainda sou mãe. A primeira vez que entendi que havia periferia na europa eu ainda morava em Lisboa, participava de um cineclube negro e vi na minha frente que a Cova da Moura não tem absolutamente nada de diferente dos que as favelas do complexo do alemão no Rio (onde eu era vizinha durante minha infância). A verdade é que a gente compra essa história de norte X sul, mas foram eles quem decidiram o mapa. A gente não é sul, a gente é periferia, igual a Cova da Mourão, igual o bairro onde minha filha estuda em Berlim, etc. Empurrados para a margem lá no Brasil e aqui, onde produzimos mas não consumimos, onde se discutem demandas sem apresentarem ofertas, onde mães racializadas, cansadas e mal remuneradas não conseguem ter folga nem no domingo. Ah se a gente se enxergasse assim grande e em maioria. Quem sabe um dia, né compa?
Sobre a questão do metrô ser ruim na periferia; se não soubesse que esse texto se passa em Paris, iria pensar que se passa em qualquer cidade grande de país subdesenvolvido (como o Brasil).
Reconheço os privilégios de eu ser homem, porque nunca fui vítima de situação de violência sexista.
acompanho seu blog e sempre admirei suas ações para com sua comunidade, sua militância, sua vida política local. mas essa admiração sempre veio com uma pontada de culpa – culpa por não estar me envolvendo com minha comunidade, culpa por não estar nutrindo o diálogo e o debate político no meu entorno, culpa por não levantar questões sindicalistas no meu trabalho. no final das minhas 40+ horas semanais, quando me resta energia, eu só quero deitar ao sol, ver meus amigos, fazer um esporte. e assim vou negligenciando um lado da minha existência pra qual gostaria de encontrar mais tempo e energia. mas isso não é um bug do sistema, é por design – quanto mais exaustas estivermos, mais gastas fisicamente e esgotadas mentalmente, menos provável é que nos organizemos, que nos soliderizaremos umas com as outras, que lutemos por mudança.
Sinta-se abraçada por outra trabalhadora cansada e que entende perfeitamente isso que você descreveu <3
Apesar do meu trabalho não ser físico (embora repetitivo) e pegar um ônibus que nunca está lotado (não moro na periferia), também me sinto muito, muito cansada, e culpada por não poder me dedicar à família, à casa, aos amigos, à comunidade e até mesmo ao lazer. Curioso que sempre medicalizei esse cansaço: “devo estar anêmica”, “são os hormônios”, “será que é a minha dieta vegetariana estrita?”. Nunca encontrei uma resposta para o meu cansaço nos consultórios médicos e então encontro esse texto e tudo faz sentido.
Olha.. esse cansaço… Nunca é capitalismo.