No último post compartilhei a receita do caldo bem verde que fiz com a couve da minha horta de quintal. Mas o que não contei foi que a batata daquele caldo também veio da horta, assim como a salada, de tomate com folhas de dente-de-leão (que cresce por todos os lados do jardim), que completou o jantar. Foi a primeira vez na minha vida que fiz uma refeição preparada inteiramente com o que eu mesma plantei. Quase inteiramente, na verdade, já que nem o alho, nem a pimenta preta, nem as azeitonas do azeite foram plantadas por mim. Autonomia alimentar total é difícil. Mas até pouco tempo atrás eu nem sequer imaginava que uma dia eu teria uma horta de quintal, muito menos que eu faria refeições compostas quase que totalmente pelo que eu mesma plantei.
Alguns anos atrás resolvi desenvolver uma prática de agradecimento (pode chamar de oração) sempre que me sento pra comer. Fui inspirada pela minha querida amiga Kiune, que mora num assentamento da reforma agrária no sul da Bahia. Eu estava passando um tempo por lá e um dia ela recebeu o prato de comida que eu tinha acabado de preparar e agradeceu a quem plantou e a quem preparou a comida, depois desejou que não faltasse comida na mesa de ninguém. Achei aquilo tão lindo e importante que resolvi adotar a prática, criando a minha própria prece. Antes da primeira garfada/colherada seguro o prato entre as mãos e digo mentalmente: “Obrigada a quem plantou, colheu e preparou essa comida. Que não falte comida na mesa de ninguém nesse mundo. E que esse alimento me dê forças pra servir a minha comunidade, lutar pelo que é justo e transformar o mundo.” Quando fiz a prece naquela noite me dei conta que pela primeira vez na vida a pessoa que plantou, colheu e preparou os alimentos no meu prato tinha sido eu mesma.
Minha ambição não é plantar absolutamente tudo que como. Como já disse, isso é bem difícil e não acho que seja algo a ser buscado. É bem mais interessante que cada pessoa na comunidade plante coisas diferentes, pra aumentar a diversidade na nossa alimentação. E pretendo continuar comendo azeite das oliveiras do sul da França ou plantadas pelo povo palestino. Mas desde que me mudei pra periferia de Paris, no final de 2019, e comecei a militar nesse território, passei a acreditar que plantar uma parte, mesmo pequena, do que comemos é essencial. Pra nossa resiliência, pra melhorar a qualidade da nossa alimentação, pra diminuir nossa dependência do dinheiro pra comer, pra participar da luta pela preservação de sementes e contra a mudança climática, pra aumentar a biodiversidade e refrescar nossos bairros e cidades. E por tantos outros motivos! Como estreitar os laços com as pessoas da nossa comunidade. Desde que começamos a plantar no quintal passamos a conversar com a vizinha e o vizinho do lado, que também plantam. Trocamos mudas, conselhos e, toda noite, enquanto aguamos nossos vegetais, trocamos dois dedos de prosa por cima da cerca de madeira que separa nossos quintais. As vizinhas são do Bangladesh e, assim como eu, plantam a comida que cresce no seu território natal pra matar a saudade de casa e se reconectar com uma parte de sua identidade através dos vegetais que cultivam.
Passei quatro meses trabalhando em uma mercearia fina no centro de Paris, em um bairro onde só mora gente que tem grana. Essa mercearia vendia também por aplicativo (Uber Eats) e entrei em choque quando descobri esse mundo. Talvez isso surpreenda vocês, mas nunca pedi comida por aplicativo e até começar a trabalhar lá, pensava que só restaurante usava esse serviço. A mercearia onde eu trabalhei vendia chocolate, queijos, salgadinhos, biscoitos, leites, sorvetes (tudo 100% vegetal)… Não tinha verduras nem frutas, só coisas industrializadas. E muita gente pedia (por aplicativo) coisas que em Paris basta descer do seu prédio e caminhar até a esquina pra encontrar. As pessoas pediam sorvetes, chocolates e biscoitos feitos com ingredientes cultivados nos quatro cantos do mundo, preparados em algum lugar longe dos nossos olhos, por pessoas que não conhecemos, embalados e entregues por outras pessoas invisíveis. A fetichização da mercadoria (e o alimento-mercadoria) no seu ponto máximo. Poucos minutos separam a vontade de comer chips de batata e o pacote que aparece como mágica na porta do apartamento daquelas pessoas, com apenas uma etapa no meio: o clique no aplicativo dentro do celular. A magia de esconder dos olhos da consumidora parisiense a exploração dos corpos racializados explorados no processo.
Não acho que só somos capazes de apreciar o que vem com dificuldade, mas como não pensar que aqueles chips de batata serão devorados em segundos, sem nem um pensamento pro mundo de pessoas e lugares envolvidos na sua produção e logo depois serão esquecidos?
As batatas que plantamos aqui, e que estavam no meu prato naquela noite, vieram da horta de uma amiga e camarada que tem um lote nos Jardins Operários a poucos minutos de caminhada da nossa casa. Minhas batatas me conectavam a ela e à luta pra salvar os Jardins, o último pedaço de terra cultivada na cidade, que alimenta a classe trabalhadora e imigrante daqui há mais de cem anos. Tinham o sabor da alegria de ter conseguido fazer nossa horta vingar. Nossa primeira horta. Comemos devagar, Anne e eu, apreciando cada colherada. De vez em quando nos olhávamos, com um sorriso gigante no rosto, e repetíamos o quanto aquilo era gostoso. Talvez nossas batatas não tivessem nada de excepcional, mas elas ficarão gravadas na minha memória e quando penso naquele jantar, ainda me alegro.
Foi uma refeição das mais simples, mas naquela noite alimentei a alma. E podem ter certeza que a refeição me encheu de forças pra mudar o mundo e seguir plantando a revolução.
plantar o próprio alimento ou medicina, ou parte dele, é simplesmente gratificante demais! Ensina mto, a conhecer um pouco do ciclo de cada planta, a ter paciência com o tempo delas, e essa troca com as outras pessoas é mto maravilhosa!! Aquece demais o coração. Amey essa sua ‘prece’, vou buscar incorporar na minha rotina tb 🙂
esse post aqueceu meu coração e me (re)lembrou de que ainda há esperança e de que ainda há luta. Obrigada Sandra, sempre certeira. <3
quando eu era criança gostava de me entreter com um exercício parecido com sua prece. eu me sentava com um prato de torta de legumes feito pela minha mãe e tentava imaginar todas as pessoas que trabalharam indiretamente naquela torta. quem plantou a cenoura, quem colheu a batata, quem ensinou quem plantou a ervilhas a plantar ervilhas, quem dirigiu um caminhão cheio de milho até a fábrica onde alguém enlatou esse milho, etcera e tal. eu poderia comer a torta inteira e não daria tempo de pensar em todo mundo envolvido nessa cadeia de atos.
que interessante pensar que você, com sua horta, pode fazer o exercício ao contrário: até onde suas sementes de tomate chegarão nos anos por vir, quantas pessoas te visitarão em sua casa e comerão de suas batatas, quantas mudas de couve feitas por você vingarão triunfantes em outras hortas, matarão outras saudades…
É importante existirem hortas urbanas porque os moradores da cidade consomem alimentos vindos dessas hortas.