Tem dias em que sinto meu nível de energia no chão. Hoje é um desses dias.
Eles não aparecem do nada, esses dias sem energia. Ou, usando as palavras de Anne pra descrever o meu estado, esses dias em que “minha força vital parece ter sigo completamente drenada”. Eles são o resultado de vários dias (ou semanas, ou meses) de intenso esforço físico e, principalmente, emocional. As últimas semanas foram puxadas e eu gostaria dizer que vou tirar um tempo pra descansar e pra recarregar as baterias, mas a verdade é que coisas que precisam da minha atenção continuam acontecendo ao meu redor e pessoas que eu amo precisam de mim nesse momento.
Dividimos a casa com a proprietária, que mora no andar de cima (nós moramos no térreo e compartilhamos o jardim com ela). Ela é mexicana e viajou pro México, pro aniversário de 90 anos da mãe, algumas horas atrás. Anne saiu depois do café e foi montar uma exposição em um teatro aqui da periferia. As duas estariam fora de casa no horário de almoço, em trânsito ou sem a possibilidade de encontrar comida vegetal. Então acordei e cozinhei duas marmitas pra elas.
Eu queria dizer que cuidar das mulheres da minha vida me dá energia e que por isso fiz o almoço delas, sem que elas tenham me pedido. Mas não sei se é inteiramente verdade. Me dá prazer cuidar de pessoas que eu amo, principalmente mulheres. E ao mesmo tempo tenho consciência de que, por ser mulher, essa prática, quase um reflexo automático, de cuidar de outras pessoas é algo condicionado pelo sistema patriarcal. Algo imposto por causa do meu gênero, do lugar que ocupo na sociedade. Mas talvez eu encontre um prazer genuíno aqui. Sei disso porque quando faço esse trabalho de cuidado pra um homem (o que acontece raramente, glória à Deusa!) a reação do meu corpo e os sentimentos que me invadem são completamente diferentes.
Cozinhar pra mulheres não vai trazer de volta a minha energia no momento. Mas posso dizer com certeza que nutrir o corpo delas me dá prazer e alegria.
O prato que preparei hoje é a minha última invenção pra transformar restos em algo delicioso. Fiz uma ou duas vezes, com o que achei na geladeira, e o resultado foi tão espetacular que resolvi vir aqui compartilhar. Apesar de ter sido criado pra aproveitar as sobras de outras refeições, esse prato pode (e deve) ser preparado mesmo quando não tem nenhum resto na sua geladeira (foi o que aconteceu hoje).
Gostaria de oferecer um prato desse arroz pra cada mulher me lendo que também está esgotada, mas continua cuidado das pessoas ao redor dela, apesar do cansaço. Vou pensar em vocês quando for comer a minha parte de arroz, daqui a pouco. E parece que alguém soprou no meu ouvido: “Coma arroz, tenha fé nas mulheres.”
“Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei
Eu ainda posso aprender
Se estou sozinha agora
Estarei com elas mais tarde
Se estou fraca agora
Posso me tornar forte
Lentamente, lentamente
Se aprender, posso ensinar as outras
Se as outras aprenderem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão
Mulheres vindas de mulheres
Indo para mulheres
Tentando fazer tudo que pudermos
Com as palavras
Em seguida, tentar trabalhar com ferramentas
Ou com nossos corpos
Tentando ficar o tempo que for preciso
Lendo livros quando não há professores
Ou quando eles estão muito distantes
Ensinando a nós mesmas
Imaginando outras lutando
Devo acreditar que nós estaremos juntas
E construir confiança o suficiente
Para que quando eu precise lutar sozinha
Eu saiba que há irmãs que
Ajudariam se soubessem
Irmãs que viriam
Para me apoiar mais tarde
Canções que nos lembram de nós mesmas
E nos fazem querer continuar com o que importa para nós
Vamos sair de novo
Encontrando as mulheres que saem pela primeira vez
Sabendo que esse amor faz uma boa diferença em nós
Afirmando uma vida contínua com mulheres
Devemos ser amantes médicas soldadas
Artistas mecânicas agricultoras
Todas em nossas vidas
Ondas de mulheres
Tremendo de amor e raiva
Coma arroz tenha fé nas mulheres
O que eu não sei agora
Ainda posso aprender
Lentamente, lentamente
Seu eu aprender posso ensinar as outras
Se as outras aprendem antes
Eu devo acreditar
Que elas voltarão e me ensinarão”
(Partes do poema “Coma arroz, tenha fé nas mulheres”, de Fran Winant. Tradução por Marcella. O poema inteiro pode ser lido aqui.)
Arroz com legumes e molho de amendoim
Como expliquei no texto, essa é uma receita pra usar os restos da geladeira. A fórmula é bem simples: uma parte de arroz cozido pra uma parte de legumes cozidos, mais o molho de amendoim, que é o que faz toda a diferença aqui. Dá pra deixar a receita ainda mais rica acrescentando tofu ou tempeh. Ou, como fiz aqui, grãomelete em tirinhas. Mas isso é opcional. Se for cozinhar legumes especialmente pra essa receita, minha sugestão é: repolho (salteado), cenoura (em palitos fininhos, crua ou ligeiramente salteada) e couve (salteada). Acho que é a mistura mais perfeita com esse molho. Sou nordestina e acho que o coentro aqui é essencial, mas se quiser deixar de fora, quem manda na sua receita é você.
Arroz cozido (qualquer um. Usei arroz integral)
Legumes cozidos (Usei: ervilha -congelada, que cozinhei na água e sal- repolho verde, couve e cogumelo Paris)
Grãomelete em tirinhas (opcional. Você pode substituir por tofu ou tempeh. Ou nada)
Coentro
Molho de amendoim
Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)
Limão
Molho shoyu (molho de soja)
Melado de cana (ou um tico de açúcar – melhor se for mascavo)
Cebola picada (opcional. Usei chalota, que é mais suave)
Alho picado
Pimenta calabresa (opcional. Usei pimenta d’Espelette, que é bem forte)
Água
Se estiver usando restos, misture tudo e aqueça em fogo brando (pra não queimar). Enquanto isso prepare o molho. Se estiver cozinhando os elementos especialmente pra fazer esse prato, cozinhe o arroz, os legumes e o grãomelete (ou tofu/tempeh), se tiver usando.
Misture todos os ingredientes do molho e junte água aos pouquinhos, uma colher de sopa por vez, até que ele se torne líquido mas ainda bem cremoso. Pra quem precisa de proporção, usei 2 colheres de sopa cheias de pasta de amendoim, um limão galego pequeno, umas 2-3 colheres de sopa de shoyu, 1 colher de sopa de melado, 1 chalota pequena, um dente de alho grande e um pouquinho de pimenta. Depois acrescentei água aos poucos. Se estiver usando restos que já estão salgados, cuidado pra não exagerar no shoyu do molho, mas como cozinhei tudo especialmente pra fazer essa receita, não salguei o arroz e coloquei pouquíssimo sal nos legumes, por isso fiz o molho um pouco mais salgado.
Quando o arroz/legumes/grãomelete (ou tofu/tempeh) estiverem bem quentes, desligue o fogo e despeje o molho por cima. Misture bem, junte o coentro e misture novamente. Prove e corrija o sal, se necessário. Esse prato tem que ficar suculento: nem seco demais, nem nadando em molho. Se fez pouco molho e seu arroz ficou meio seco, faça mais um pouco pra corrigir. Se colocou molho demais e a coisa virou sopa, danou-se! Mas vai ficar gostoso mesmo assim.
Sirva imediatamente, com mais coentro e pimenta calabresa polvilhada por cima.
Querida, Sandra.
Ler seu texto em uma quarta-feira à noite, ao final de um dia (uma semana, um mês etc) bem exaustivo e após jantar, foi especialmente, de emocionar meus olhos.
Sua lucidez ao descrever suas percepções do cotidiano, ao compartilhar receitas com tanto afeto e força, e ao trazer o debate político de maneira tão potente, sempre chega pra mim como poesia.
Um beijo e obrigada por continuar.
(Acho que é a primeira vez que escrevo algo aqui, mesmo já te acompanhando por bastante tempo).
Que mensagem mais linda! Também emocionou os meus olhos. Outro beijo pra você.
Ah, Sandra, fazia um tempo que eu não passava por aqui. Mas é sempre tão bom ler você. =)
Falamos (eu e uma amiga) de você hoje em uma reunião com um grupo de mulheres francesas onde o assunto era sobre ecologia e feminismo décolonial.
Que honra <3
Mais um relato lindo e uma receita maravilhosa. Grata, camarada
Eu que agradeço a visita, camarada 🙂
Oi, Sandra, sempre que posso dou uma passadinha aqui, amo lê seus textos acompanhados por ótimas receitas, e isso de certa forma me nutre também. Um grande Abraço, Nina.
Meu objetivo na vida: nutrir com comida e palavras <3
Oi Sandra, faz tempo que não venho aqui. Cheguei nesse texto que foi um abraço pra mim e, imagino, para todas as mulheres. Obrigada por compartilhar tanto. Eu não sou vegana, mas o prazer de comer uma comida vegana, com produtos agroecológicos (tento sempre que sejam), é indescritível. Você esta sempre presente nesses momentos e sou eternamente grata. Vou já preparar essa receita! Um abraço grande!
Bem-vinda de volta, Marcia <3