Veganismo Popular e Amazônida com Michelle Muriel

Um dia, muitas luas atrás, uma moça chamada Michelle me enviou uma mensagem pelo Instagram (na época eu ainda frequentava a plataforma) e trocamos algumas ideias. No final da conversa ela disse que era de Belém do Pará e me chamou pra conhecer a cidade. Eu disse que aceitava o convite com muito gosto, que era um sonho antigo visitar Belém, mas que não sabia quando isso iria acontecer. Anos depois eu desembarquei no aeroporto de Belém e lá estava ela me esperando, junto com outras camaradas, com um sorriso enorme e uma banana na bolsa. (Eu tinha enviado uma mensagem pra Michelle, antes de embarcar pra Belém, pedindo encarecidamente que ela levasse uma coisinha pra eu comer porque a jornada até lá seria longa e eu já estava morrendo de fome. Curiosamente quando eu entrevistei Michelle, dias depois, a questão de ver frutas como lanche acabou entrando na conversa e desencadeando uma reflexão profunda do meu lado.)

Michelle Muriel é gestora ambiental, ecofeminista e militante pelo veganismo popular na Amazônia. Ela faz parte do coletivo antiespecista VEM (Veganismo Em Movimento), que é associado à UVA. Como parte da Jornada do Veganismo Popular Contra o Fim do Mundo, que aconteceu durante todo o mês de novembro de 2022, em várias cidades do Brasil, as/os camaradas do VEM me receberam em Belém pra participar de um evento junto com Ana Felicien, uma companheira da Venezuela, e Gisiane Ferreira, uma companheira do MST. Foi um dos eventos mais potentes dos quais participei e ainda escuto os ecos daquela conversa dentro de mim. E o que dizer do pessoal do VEM? Ô povo maravilhoso! Que honra construir a luta antiespecista no Brasil do lado desse povo! 

Não era possível entrevistar todo mundo do coletivo, mas consegui tempo pra gravar uma conversa com duas companheiras do grupo e a primeira que vai aparecer aqui é Michelle. Ela me disse que nosso encontro foi uma pororoca e eu não poderia achar uma maneira mais linda e certeira de descrever o que senti. Foram quase duas horas de gravação, que eu transcrevi em nada menos que 11 páginas! Mesmo depois de duas semanas de edição, essa é a entrevista mais longa que já publiquei aqui no blog, mas te garanto que vale muito a pena ler até o final.

Tivemos essa conversa na ilha do Combu, dentro da floresta Amazônica e tenho certeza que as palavras dela vão provocar uma pororoca no peito de vocês também.

Como você se tornou vegana?

Em 2010 eu estava cursando gestão ambiental e visitei um abatedouro como parte de um trabalho pra faculdade. Eu já tinha duas cachorrinhas e quando cheguei lá e vi os animais no curral, imediatamente pensei nelas. Até hoje eu lembro do olhar dos animais na minha direção, da sensação de não poder fazer nada pra ajudá-los. Depois desse dia sempre que eu via carne no prato eu lembrava dos animais no abatedouro e não conseguia comer. Foi quando um amigo me falou sobre vegetarianismo. Eu não conhecia nenhuma pessoa vegetariana e pensei que aquilo não era pra mim. Eu repetia que ainda estava assustada com o que eu tinha visto no abatedouro, mas que em algum momento eu voltaria a sentir cheiro de carne sem associar aquilo com animais sendo queimados. Isso durou um ano e durante esse tempo não consegui comer carne diretamente, mas quando tinha carne no meio de alguma comida, charque por exemplo, eu colocava pro lado e comia o resto. Frango eu já não gostava de comer, então eu só comia peixe. Até que em 2011 eu me tornei vegetariana. 

Logo depois comecei a trabalhar na Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Foi então que comecei a visitar abatedouros como parte do meu trabalho, fazendo fiscalização, recenseamento. Eu morei uma época em São Félix do Xingu, no sudeste paraense, que é onde tem o maior número de bovinos do estado. Quando você chega nessa região o agro está presente em tudo. Tu não vê mais mata, essa mata que a gente está vendo aqui, tudo foi devastado. À noite a fumaça das queimadas parece uma neblina. Tudo foi transformado em pasto. E o que eu via nos abatedouros? Uma cena de horror: sangue espalhado por todos os lados e tristeza. É horrível porque ninguém é feliz fazendo esse trabalho. Os trabalhadores nos abatedouros são uma mão de obra descartável. São corpos que, se acontecer alguma coisa com eles, não serão lembrados.

Sem falar no impacto ambiental. Aquele sangue, aquela gordura toda que sai dos animais mortos vai se acumulando numa vala. E é um negócio verde, um lodo. Aquilo deveria ser tratado antes de ser jogado num rio, só que na maioria dos casos isso não acontece. Nos lugares próximos aos abatedouros onde a água dos rios foi testada, foi constatado que ela é imprópria pra consumo, pra banho. Então as conexões foram sendo feitas na minha cabeça.

Aí teve o caso do abatedouro no Marajó… Fomos fazer uma inspeção e fiquei impacta quando vi que os animais estavam doentes, que tinha tumores nas carnes. Falamos que aquela carne tinha que ser jogada fora, mas o veterinário responsável disse: “Não! A gente tira a parte doente e vende o resto”. Mandamos descer toda a carne que estava dentro de um caminhão, indo pro frigorífico. O abatedouro foi fechado, lacramos tudo. Mas políticos influentes foram mobilizados e poucos dias depois o lugar estava funcionando novamente.

Comecei a perceber o impacto social da pecuária também. Eu via pessoas na miséria, morando nas margens do rio, mas sem a possiblidade de pescar porque o rio está poluído. E ao mesmo tempo eu via um grupo privilegiado, os pecuaristas, os donos dos abatedouros, se aproveitando daquela situação, exibindo riqueza como eu nunca tinha visto em Belém. Em lugares como Xinguara, São Felix do Xingu e Marabá eu via pessoas extremamente brancas, louras, enormes, totalmente diferentes das pessoas daqui, com botas de couro e bolsas de luxo que eu só tinha visto, até então, na televisão. E quem mora nas comunidades dessa região passa a servir aquele grupo, ser garçon, cozinheira nas churrascarias, diarista… 

Como eu estava mais próxima da classe trabalhadora, fui fazendo amizades com as pessoas que prestavam serviço ali. E elas me chamaram pra visitar a roça delas. Essas pessoas criavam animais pequenos, mas elas se alimentavam principalmente do que plantavam. Descobri que no fim de semana o pessoal da comunidade vendia verduras no mercado e comecei a fazer minhas compras lá. Era muito fácil, e farto, se alimentar com comida vegetal ali.

À noite eu via as manifestações dos indígenas falando sobre o avanço do agro, explicando que eles estavam sendo expulsos das terras, que estavam em luta… Então a situação ficou evidente pra mim. Existe um grupo muito poderoso, os pecuaristas, que está se beneficiando da situação e, ao mesmo tempo, oprimindo, vulnerabilizando, excluindo e marginalizando a população nativa. Na época eu não tinha teorias, mas é impossível estar ali e não fazer essas conexões.

Fale um pouco sobre o veganismo popular no seu território

Quando voltei pra Belém, voltei com vontade de me organizar. Foi quando eu entrei em contato com o pessoal do coletivo VEM (Veganismo Em Movimento). O coletivo já existia, mas estava parado. As eleições de 2018 estavam se aproximando e organizamos algumas ações pra mobilizar as pessoas e mostrar quem era Bolsonaro e ajudar Haddad a se eleger. A gente entendia que as lutas estavam conectadas e na época falávamos de veganismo interseccional. Ainda não conhecíamos o termo “veganismo popular”, mas o pensamento era o mesmo. Começamos a ler o blog Veganagente. Foi então que eu vi o seu vídeo com Sabrina Fernandes e comecei a ler o seu blog também. A gente pegou uns textos do seu blog, juntou com textos do Veganagente e nos reunimos pra ler e discutir. Foi assim que retomamos as atividades do VEM, com um veganismo politizado aqui em Belém. 

As tarefas são muitas e somos poucas pessoas no coletivo, mas estamos muito felizes com o sucesso dos eventos que organizamos. O VEM passou a ser uma referência aqui e somos convidados pra participar de discussões e construir junto de outras lutas. Em 2020 organizamos um encontro com as candidaturas pra vereadores e teve muito interesse da parte dos candidatos em aprender mais sobre o que defendemos. Conversamos muito sobre merenda escolar, alimentos agroecológicos e as várias políticas públicas que Bolsonaro derrubou, na verdade que vêm sendo derrubadas desde Temer, e que impactam diretamente os ribeirinhos que produzem alimentos aqui. Se não tiver políticas públicas de escoamento como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), articuladas com o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), os agricultores não vão conseguir escoar a produção e a comida não vai chegar nas escolas. Quem ganha são os monopólios alimentares, que vão conseguir levar seus produtos pra merenda. Sem as políticas públicas, quem produz tem o que comer, mas não consegue vender uma parte e não tem como garantir o resto do que precisa.

Talvez em reação a isso percebi que o número de cooperativas e associações rurais está aumentando. Elas se reuniram pra buscar uma forma autônoma de levar toda essa produção pras feiras municipais e pra beira das rodovias. Aqui em Belém tem um movimento de feira totalmente autônomo. Conseguem organizar transporte pra chegar até aqui, ficam no meio da rua, sem nenhum tipo de estrutura e vendem seus alimentos. Outro dia perguntei pra um feirante se tudo aquilo na barraca vinha da propriedade dele. O senhor respondeu: “É, minha filha, tudo isso aqui é da minha propriedade. Tem muita coisa lá, a gente fica com uma parte e o que sobra a gente traz pra vender. Tem tanta coisa que até estraga. Aí eu fico pensando nas pessoas da cidade, que moram na rua, que não tem o que comer… Lá é tão farto!” 

Eu vejo que as coisas andam juntas. No campo, as pessoas estão trabalhando e lutando muito pra estar naquele território. Elas criam laços com a terra e relações com as outras pessoas. São exemplos de sociedades muito solidárias. E ali está a sua identidade. Quem vem pra cidade, porque perdeu a possiblidade de viver da terra, perde essa rede de apoio. Na cidade elas são marginalizadas, empurradas pra beira dos rios ou pras periferias, lugares que não são vistos, ou acabam na rua e começam a passar fome. É necessário uma sensibilidade pra gente perceber isso. Na cidade as pessoas estão cada vez mais individualistas e você acaba ficando mais endurecido, perdendo a sensibilidade pra olhar pro outro. 

O que é o veganismo pra você?

O veganismo tem uma dimensão política, é uma luta coletiva por libertação animal e humana. Mas como amazônida, ele também tem uma dimensão muito particular pra mim. Estando aqui na Amazônia e encontrando as pessoas nas comunidades, eu vejo que ele é um espaço que agrega e acolhe as pessoas que estão em luta. 

Porque você chega nas comunidades e tem luta. Elas estão lutando pra serem reconhecidas, pra não serem invisibilizadas, pras que políticas públicas cheguem até elas. Estão defendendo suas causas, seu território, sua identidade. Muita gente acha que ao falar de veganismo a gente se distancia das pessoas que consomem animais pra subsistência. A verdade é que estamos muito mais próximas delas, pois elas têm uma relação muito forte com a natureza. E eu encontro no veganismo um lugar onde eu posso me apoiar pra tratar desse aspecto, que é bem sensível: a conexão com a natureza.

Quando a gente nasce e cresce aqui aprende desde pequenininha que tem que pedir a permissão da natureza pra entrar no rio, pra entrar na floresta. “Com licença, mãe natureza!” Quando vamos plantar, a gente conversa com a natureza e pede a permissão. Na hora de colher, também. Tem a época em que o caranguejo sai pra namorar e ninguém, nem o pegador de carangueijo, pega carangueijo nessa época. Ele espera o tempo do carangueijo crescer. Aqui a gente respeita a lua, as estações, o inverno amazônico, o verão amazônico. Meus bisavós e avós cresceram na beira do rio, na beira do mangue. Entrou ali, não se pega nada sem permissão. Nem um animal, nem uma folha, nem uma casca. A gente aprende a ter esse respeito. Então quando eu conheci o veganismo eu me identifiquei, porque é esse respeito que eu quero. 

O veganismo pra mim tem essa dimensão política coletiva que casa muito bem com o veganismo amazônida. Nós, amazônidas, estamos com essa sensibilidade aflorada em defesa da Amazônia e nossas raízes estão clamando isso. Não tem como você mergulhar numa praia em Mosqueiro, numa praia no Marajó e não querer lutar por isso. Porque se a gente não lutar por isso, o preço que vamos pagar é alto demais: vamos perder nossa identidade.

Então aonde eu vou lutar? Vou lutar aonde tem respeito por todos os seres, que é junto do veganismo popular. E não sou só eu que falo isso: tem meus companheiros do VEM, os companheiros do MST, a UVA… É uma luta pelo nosso território, pela nossa identidade, pela nossa história. Pelos meus avós, bisavós, os que estavam aqui antes, resistindo pra não sucumbir e os que morreram lutando. A terra onde eles lutaram permanece e é a terra onde lutamos hoje. Pra mim o veganismo é isso.

Por que você é vegana?

Primeiro porque eu não consigo ver o corpo de um animal como alimento. Pra mim o alimento é vegetal. Eu me disponho a ser uma amiga e companheira de luta desses animais, de todos os animais. Segundo porque, sem precisar falar nada, quando escolho um prato totalmente vegetal as pessoas a minha volta percebem e fazem perguntas. Assim o meu existir já demonstra a minha prioridade de vida, que é lutar em defesa da Amazônia e dos animais. 

No veganismo eu consigo conectar o que acredito ser necessário individualmente e coletivamente pra construir a sociedade que a gente almeja. É uma luta que não está lá na frente. Ela vive aqui, no presente, e já existia lá atrás. A gente chega em qualquer comunidade na Amazônia e vê a luta pela defesa dos animais, pela defesa da natureza.

Veja o exemplo da pesca industrial. Colocam barcos industriais na cabeceira do rio e o peixe não entra nas comunidades, os ribeirinhos não podem fazer pesca artesanal. A pesca artesanal luta contra a pesca industrial e como é que a gente não vai lutar do lado dessas pessoas? Se a gente não faz uma luta contra os grandes monopólios da indústria não teremos condições de viver o veganismo, de alcançar libertação animal. As pessoas vão comer o quê? Um ultra processado? Vão sucumbir? Vão vir pras periferias ou viver uma vida deplorável no meio da rua? Primeiramente devemos lutar com os pescadores artesanais contra a grande indústria. Quando eles tiverem seu lugar garantido e condições de escolher o que fazer, só então terão a possibilidade de considerar os animais como seus companheiros de luta. E é à partir daí que a gente vai poder levar a discussão do antiespecismo até eles. 

Lembrei de uma história.  A pesca industrial estava afetando várias comunidades em Marapanim e apesar das pessoas que moravam ali denunciarem a situação, os órgãos ambientais e a Câmara repetiam que “não tem ninguém nessas comunidades”. Como sempre, a Amazônia é vista como um grande vazio demográfico. Então uma liderança comunitária ribeirinha organizou várias pessoas num caminhão, cada uma levando um cartaz com o nome da sua comunidade e foram na câmara pra dizer “a gente existe”. No final de uma luta de 12 anos conseguiram uma reserva extrativista marinha que protege essas comunidades de agricultures familiares, de pescadores artesanais e de marisqueiras (que é uma atividade feita por mulheres). A reserva se chama “Reserva Mestre Lucindo”. Mestre Lucindo foi um músico de carimbó e perguntei por que deram o nome dele pra reserva. Me explicaram que ele também era pescador artesanal e compunha suas músicas nas noites de luar, enquanto pescava. Ele morre, mas renasce como reserva extrativista. Ele renasce pra proteger os membros da comunidade. Aqui a existência das pessoas permanece, as lembranças, as memórias, os ensinamentos… Isso é muito forte pra nós.

Estamos na Amazônia, onde o projeto colonial avança sem pausa há séculos. Você acredita que o veganismo se articula com a luta decolonial?

O veganismo popular fala da defesa do território, da identidade, do que está aqui, dos antepassados que defenderam a terra e produziram uma cultura alimentar tão forte e diversa. Ele vem com o principio de fortalecer a cultura alimentar do seu local e pra mim isso é decolonial. Veja que isso não é algo novo dentro dos espaços de luta. Que as pessoas aqui descrevam sua luta como “decolonial” ou não, é escolha delas, mas essa luta sempre existiu. O veganismo vem se somar a isso tudo e eu percebo que ele vem organizar as pessoas e nomear as coisas. Você chega aqui na comunidade do Combu e consegue identificar o que é colonial. Então a gente se soma de uma forma organizada e já denominada, explicando com todas as palavras o que você observa aqui nas comunidades que já estão na luta. Se eles produzem, a gente vai consumir. Organizamos encontros com as candidaturas tanto em 2020 quanto agora, em 2022, pra falar sobre soberania alimentar e formas de fortalecer a cultura alimentar. Aqui no Ver o Peso tem essa força ainda. Mas a gente tem que ficar atento e vigilante, porque o colonialismo vem devagarzinho, pelas laterais.

(Contei pra Michelle o que vi na minha visita ao mercado Ver o Peso no dia anterior: farinha de tapioca e coco seco sendo vendidos banhados em leite condensado. A Nestlé conseguiu se enfiar até em produtos tão tradicionais, no mercado que é um dos maiores símbolos da cultura alimentar paraense.) 

Sim, a gente tem que ficar vigilante. 

É complicado ser vegana na Amazônia? 

Aqui é muito fácil se alimentar bem, de maneira farta e dentro da nossa cultura alimentar, sendo vegana. Meu pai carrega muito essa cultura alimentar raiz. Quando é época de pupunha, ele cozinha pupunha na casa dele, coloca um pouco num potinho e deixa na portaria do meu prédio. Aí eu já subo com minha pupunha cozida, faço um cafezinho e é meu lanche ou café da manhã. Quando a minha família fala: “Vamos fazer um café da tarde?”, eu levo um milho cozido, uma macaxeira cozida, uma pupunha cozida. E ninguém vai se espantar e dizer: “Ah, isso aqui que a Michelle trouxe é vegano!” Não, as pessoas vão dizer: “Eu adoro milho cozido, adoro macaxeira!” As pessoas comem o que eu levo e o pão, aquele pão de supermercado que alguém colocou na mesa, vai ficando de lado. Se tiver um bolinho de macaxeira, que a minha mãe faz, ou um bolinho de tapioca, as pessoas adoram porque esses pratos são carregados de memória afetiva. Talvez isso esteja se perdendo entre as pessoas mais jovens, mas a minha geração ainda tem essa lembrança de infância da vó fazendo mingau de carimã, mingau de milho, mingau de banana. Antigamente não tinha leite de vaca, era sempre com leite de coco, porque é o mais prático aqui. Também tem o leite de castanha (do Pará). 

Já escutei muitas pessoas afirmarem, no Brasil e na Europa, que veganismo não faz sentido porque “indígenas caçam”. Pior, que o veganismo é “anti-indígena” e “busca separar o humano da natureza”. O que você diria pra essas pessoas?

Antes de falar, é bom ouvir. Ninguém pode falar por ninguém, incluindo nós, no movimento vegano. A gente tem que ouvir as pessoas da Amazônia. Pra se somar a essa luta, precisamos estar no local, ouvir as pessoas e ter a sensibilidade de entender que elas são as protagonistas. Se um grupo indígena está falando, vamos ouvir. Eu tenho certeza que eles não estão falando que é pra matar não sei quantas cabeças de gado. Não tão falando isso, não. A gente tem que chegar, sentar e ouvir. Depois se perguntar: “Onde posso ajudar?” Estamos olhando pro mesmo destino, pro mesmo horizonte? Estamos, então vamos lá juntos. As pessoas falam: “Ah, o veganismo é isso, o veganismo é aquilo…” Quantas dessas pessoas vão estar lá pra lutar ao lado dos indígenas?

Essas pessoas têm uma ideia estereotipada dos grupos indígenas. E usam isso pra desconsiderar o veganismo e continuar vivendo sua vidinha no ar condicionado, comendo carne, numa bolha de conforto, sem conseguir enxergar quem está do seu lado? Ouçam o que eles estão falando ao invés de falar o que vocês acham deles.

Gostaria que as pessoas tivessem a oportunidade de sentar e tomar um cafezinho com uma comunidade indígena ou ribeirinha. Se você sentar e tomar um café com essas pessoas elas vão te oferecer uma macaxeira cozida. Provavelmente vão te oferecer um suco de cupuaçu, ou de bacuri, uma banana da terra frita… E quando você falar da defesa da natureza, da defesa dos animais, elas serão as primeiras a concordar. Elas utilizam os animais pra subsistência, mas a visão delas é muito próxima da nossa luta pela defesa da natureza, dos animais e da Amazônia. 

Ouvi dizer por aí que o veganismo pode até ter alguma relevância nas cidades, mas que não tem sentido chegar pras comunidades indígenas e falar pra elas comerem estrogonofe de soja. Desde então fiquei com essa dúvida. (contém ironia) Vocês realmente querem que  indígenas parem de pescar e comam estrogonofe de soja no lugar?

Mais uma vez, isso é a visão do veganismo de alguém que não conhece a luta. Se você quer ter uma opinião sobre algo que você não conhece, sem estar no local onde essa luta acontece, converse com alguém que está lá. É importante se informar antes de falar!

Nós, do movimento vegano, não estamos chegando em nenhuma comunidade indígena ou ribeirinha falando: “Vamos fazer um escondidinho de soja?” Não! Quando eu vou pra essas comunidades muita gente me pergunta o que eu vou comer. Eu levo minha comidinha, minha marmita? Levo, até porque gosto de compartilhar. Mas eu vou tranquila porque sei que essas pessoas não vão me julgar. Eu vou sentar na mesa com elas e vai ter um peixe, uma galinha caipira, mas também vai ter macaxeira, açaí, farinha, tapioca. Sempre tem feijão de corda, feijão verde. Se tiver pupunha, eu coloco no meu prato. Se só tiver açaí e farinha, eu já almocei!  Ninguém vai ficar te questionando por você não comer a galinha ou o peixe, muito pelo contrário! Eles vão experimentar o que eu tiver levado, eu vou comer os vegetais que eles tiverem preparado e vamos socializar ao redor da comida compartilhada.

Mas o que a gente pode discutir aqui é um pensamento muito colonial e neoliberal que vai chegando nos lugares e transformando a maneira como vemos a comida. Então as pessoas passam a não enxergar os frutos, as frutas, os alimentos vegetais em geral, como alimento. Isso faz parte da missão do veganismo: lutar pro vegetal ter um papel central na mesa.

Eu cheguei em um lugar uma vez, a trabalho, e tinha muito coco. Todo mundo estava bebendo água de coco. Estava naquele intervalo entre o café e o almoço, então eu comecei a comer a carninha do coco. Quando eu vi, todo mundo estava fazendo igual. Porque é gostoso! Mas até então ninguém tinha pensado em comer a carninha do coco. Eu gosto de comer o cupuaçu, quebrar e comer a polpa. O bacuri também. Como a fruta diretamente. Nesses lugares tem muita polpa, porque as comunidades comercializam, então você pode pegar a polpa e fazer um suco… Também tem sempre biju, que é diferente da tapioca. O biju é feito com a farinha d’água misturada com água e um pouquinho de açúcar. É um lanche da tarde pra mim. 

(Explico que pra mim uma das maiores contribuições do veganismo é passar a enxergar o vegetal, uma simples fruta, como um lanche satisfatório. A gente vê comida onde as pessoas especistas vêem ausência de comida. Sempre que me dizem: “Você não come carne, nem laticínios, nem ovos? Então não come nada!” eu percebo a que ponto as pessoas especistas vêem o vegetal como uma não-comida. Michelle falou de como a Amazônia é considerada, por quem quer explorá-la, como “um vazio demográfico” e agora estou me dando conta que comida vegetal também é vista como uma espécie de vazio alimentar.)

Exatamente. Também é comum ter castanha (do Pará) em todos os lugares. Você chega e as mulheres estão cortando a castanha, preparando pra vender. Aquilo ali com um cafezinho, pra mim já é um lanche! Outro dia eu estava com meus colegas de trabalho e tinha muito capim santo no lugar onde estávamos. Fizemos uma panela de chá, que meus colegas tomaram com biscoito de castanha. O biscoito levava leite, então eu tomei o meu chá com as castanhas, mesmo. Como você disse, muita gente não vê isso como lanche, como refeição.

Como falar da luta antiespecista dentro da esquerda?

Esse está sendo o nosso maior desafio. É onde a gente vê mais resistência. Quando a gente chega numa comunidade e leva sua comida vegetal, ou faz seu prato, é tranquilo. Mas quando a esquerda percebe que você é vegana, é muito comum fazerem uma crítica não embasada. Dizem que vamos ficar com deficiência de nutrientes, que comer animais é cultural…

A gente tenta trazer a esquerda pro veganismo explicando que existe um ponto comum nas nossas lutas: a exploração dos corpos, dos corpos de todos os animais, humanos e não-humanos. Mostramos que a exploração dos animais tem por finalidade a acumulação e o lucro e que com isso vem todas as questões socio-ambientais, como a exploração dos trabalhadores, a destruição da floresta, a poluição dos rios… A gente tenta conectar isso pra que as pessoas percebam que lutamos contra um inimigo em comum. Pra elas enxergarem a relevância em defender os animais, porque estamos todos conectados num grande sistema. 

Muita gente não consegue perceber o quão conectados estamos… Basta pensar que todo mundo precisa do ar. Se tirar o ar, a gente morre. Precisamos dos rios, das florestas, dos animas… Se a gente não se perceber como parte importante desse processo, assim como os outros animais, a gente quebra os pilares importantes pra reprodução da vida.

Acho que na esquerda tem muito a questão de rigidez, de não mudar o que fazem, o que falam. Mas aqui, por causa do que a pecuária está fazendo com a Amazônia, as pessoas na esquerda conseguem conectar isso, perceber a importância, mas sem necessariamente se tornarem veganas.

Existe uma resistência com a questão antiespecista. Minha leitura é que como as pessoas teriam que fazer um esforço, se quiserem se tornar veganas, e como não tem ninguém cobrando essa postura delas dentro da esquerda, é muito mais fácil deixar pra lá. Dizem: “Isso não é urgente, então vamos deixar pra depois”. 

A gente convida o pessoal na esquerda a lutar pelo antiespecismo de maneira paralela. Porque nós, veganas, militamos de maneira paralela. A gente luta contra a opressão, então construimos condições pra fazer as lutas acontecerem de maneira simultânea. Dá pra você viver sem consumir nada de origem animal e, juntamente com a defesa da luta antiespecista, você pode se aliar à luta LGBT, à luta antiracista… Dá pra fazer todas as tarefas da militância na esquerda sendo antiespecista e a gente mostra isso através do exemplo. 

Algumas pessoas de esquerda, quando entendem o que é o veganismo, conseguem conectar as pautas imediatamente. Outras precisam fazer um esforço maior pra superar a questão do paladar. Mas sabe uma coisa que eu vejo, principalmente aqui em Belém? O lado social. A gente tem a síndrome do vira-lata. A gente não quer parecer nortista, não quer parecer caboquinho. “Nossa, isso é coisa de caboquinho, não faz isso!” 

O que é ser caboquinho?

É a mistura do indígena com o negro, a miscigenação de etnias aqui. É o caboclo, aquele que mora no interior, que está perto da natureza, que tem uma outra forma de se alimentar e de se relacionar com a natureza. Aí a gente pensa: “Não quero parecer um caboquinho! Quero dizer que vou pro Sudeste, que viajo pelo menos uma vez por ano pra Europa com a minha família, que tenho uma empregada doméstica, que tenho um carro novo, mesmo que eu esteja cheia de dívidas…” A gente mora aqui, mas não quer parecer com as pessoas daqui. Antigamente as pessoas tinham vergonha de estar com a boca suja de açaí, porque quem tomava açaí eram os caboquinhos. A comida, a base alimentar do ribeirinho, do caboquinho, é o açaí, então eles sempre estão com a boca e os lábios roxos. Tucupi também é comida de caboquinho, mas quando chefs de fora começaram a falar do tucupi, todo mundo passou a dar valor. Agora você chega na Estação das Docas e tem tudo isso lá, só que em versões muito mais caras.

E pra não ser identificado como caboquinho, é preciso comer o que? 

Comer mais animais. Comer vegetais locais traz essa dificuldade social, mesmo pra quem é de esquerda. É um comportamento que vai te denunciar, que vai mostrar que você é caboquinho. Como vou chegar pro meu grupo de amigos de esquerda, que são cool, que são a galera que consome a cultura do Sudeste, que conhece certas teorias, e recusar a carne do churrasco? Vão te olhar e dizer: “Ah, tu não quer comer carne? Então não vou mais te chamar pros churrascos.” Nessas horas eu sempre falo: “Me chama que eu levo o meu churrasco de vegetais!” Mas quando as pessoas falam “Não dá mais pra sair contigo”, o que eles querem dizer, na verdade, é que você não faz mais parte daquele grupo. Todo mundo quer se sentir pertencente e pra fazer parte do grupo não pode comer pupunha, que é comida de caboquinho. Tem que comer o churrasco. A gente quer ser o de fora, o mais branco. Isso vem de uma dor muito grande que ainda não curamos: a dor da colonização.

Gostaria de agradecer a Michelle pelo tempo concedido pra gente fazer essa entrevista, pelo carinho, pelos passeios, por ter compartilhado tanta informação preciosa comigo, por tudo que ela me ensinou em poucos dias, por me inspirar na luta antiespecista e pela banana levada pro aeroporto (e que ela esqueceu de me dar). Obrigada por tudo, amiga samaumeira. Sigamos criando raízes e nos tornando floresta.

3 comentários em “Veganismo Popular e Amazônida com Michelle Muriel

  1. Os dias com você foram muito especiais pra mim! Eu me sinto extremamente honrada por ter conhecido você e ter a minha história no veganismo contada no papacapim.org!! Muito Obrigada, Sandra! Um cheiro da sua amiga Samaumeira <3

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