Depois de reabilitar a fava, vim aqui defender o jiló. A missão com a fava deu muito certo e hoje todo mundo na minha família adora essa leguminosa. Minha irmã caçula, que é sócia do Libre, um café vegano aqui em Natal, até colocou fava no cardápio (ela adaptou a minha receita e a deixou mais incrementada) e é um enorme sucesso.
Algo me diz, porém, que fazer com que o jiló se torne popular vai ser mais difícil. Por causa do sabor amargo, esse vegetal tem uma legião de haters e poucas fãs. Curiosamente, parece que nós, no Nordeste, gostamos mais de vegetais amargos do que o resto do Brasil. Então, como boa nordestina, estou determinada a fazer mais gente gostar dele.
Sabemos que tem uma razão genética pro sabor amargo ser o menos apreciado de todos: muitos dos alimentos venenosos tem sabor amargo. Esse é um sabor que ninguém nasce gostando, contrariamente ao sabor doce. Mas como a construção das preferências alimentares é, em boa parte, social, dependendo do contexto em que você cresceu, você pode aprender a expandir suas preferências gustativas nessa direção. Na minha família tem várias pessoas que gostam de jiló. Meu pai, minha mãe, uma irmã e um irmão amam. Então eu via minhas parentes se deliciarem com ele e ficava curiosa pra provar. Quando eu era criança não gostava, mas conforme os anos passaram, minha simpatia por ele foi aumentando e hoje eu adoro. Eu tenho consciência hoje da importância de ter crescido numa família nordestina, do Sertão, onde as pessoas apreciavam os vegetais que crescem no nosso território e, talvez o mais importante, onde não entrava ultraprocessados (porque era caro demais pra gente) na formação do meu paladar.
E falando em ultraprocessados, a padronização dos sabores pela indústria alimentícia, que carrega no açúcar, sal e gordura dos produtos que hoje ocupam boa parte das prateleiras dos supermercados, está causando estragos tremendos na formação do paladar das crianças e adolescentes. Acostumadas com sabores falsos e exagerados, fica quase impossível provar uma fruta fresca e apreciar o seu sabor. A verdade é que a natureza parece pálida e sem graça diante das fórmulas ultra excitantes, pras papilas e pro cérebro, das combinações de saborizantes artificiais, açúcar e gordura encontradas dentro dos pacotinhos dos ultra processados. Mas não é só isso que está fazendo com que o sabor amargo seja cada vez menos apreciado. Frutas (como a toranja) e vegetais (como o brócolis) estão sendo selecionados pra terem um sabor cada vez menos amargo. A tendência da homogeneização do sabor dos alimentos também opera, embora numa escala bem menor, nos vegetais cultivados mundo afora.
Como em todas as minhas receitas “polarizantes”(a fava, o creme de jaca), se você já gosta de jiló, se prepare pra se deliciar! Se você detesta jiló ou realmente não suporta o sabor amargo (parece que tem pessoas que sentem o sabor amargo com mais intensidade do que as outras), tem muitas outras receitas aqui no blog pra você. Mas se você gostaria de aprender a gostar de jiló e aumentar sua tolerância ao sabor amargo em geral (tem vantagens, já que alimentos amargos são particularmente ricos em certos nutrientes), está aqui a receita que pode te ajudar!
Ela nasceu assim. Eu trouxe jilós da feira, verdinhos, porque são os melhores (parece que quanto mais maduro, mais amargo, o que vai na contramão dos frutos em geral), e acabei esquecendo deles na geladeira. Quando lembrei, eles tinham amadurecido um pouco e precisavam ser preparados naquele dia. Eu ia refogar com tomate, que é como sempre preparo jiló, mas enquanto lavava os vegetais me dei conta que eles pareciam mini-berinjelas (e jiló é da mesma família que a berinjela, mesmo). Então uma inspiração me atravessou: e se eu preparasse jiló como faço com berinjela na receita do mutabbal (pasta de berinjela defumada palestina/libanesa)?
Gente, me faltam adjetivos pra dizer o quanto gostei dessa pasta! Adoro amargo e adoro defumado, então não tinha como dar errado pra mim. Dei uma colherada pra minha irmã adoradora de jiló provar e perguntei se estava bom. Ela respondeu, muito séria: “Não está bom, não. Está a moléstia!” Pra nós isso é um imenso elogio. Meu irmão adorador de jiló também provou e se entusiasmou. Até um sobrinho, que eu nem sabia que gostava de jiló, comeu ontem e gostou demais.
Acredito que eu não vou conseguir criar um fã clube do jiló, como o que aconteceu com a fava. Mas como a acidez do limão suaviza um pouco o amargo e o defumado acrescenta uma nota a mais de sabor aqui, talvez o pobre do jiló ganhe uma ou outra nova apreciadora. Isso pra mim, que trabalho pra valorizar nossa cultura alimentar vegetal, já seria uma vitória. Só que penso nas pessoas que gostam de jiló, imagino essa gente comendo a minha pasta e fico feliz ao saber que estou contemplando elas com uma receita que trata o jiló com todo o carinho e atenção que ele merece. E essa é a maior satisfação dessa cozinheira aqui: levar alegria pra barriga das pessoas.
Pasta de jiló defumado
Escolha jilós ainda verdes, que são mais macios e menos amargos (quando maduros, eles ficam amarelados). Pra fazer os “chips” de tapioca da foto acima: faça uma tapioca simples, como ensinei nessa receita, e deixe mais tempo na frigideira, no fogo baixo, pra secar um pouco. Depois deixe esfriar completamente sobre um pano de prato limpo. Ela vai desidratar e ficar durinha, quase crocante. Depois é só quebrar em pedaços e servir como você faria com torradinhas. Esses “chips”se conservam por alguns dias em um pote bem fechado, em temperatura ambiente.
Jilós (idealmente ainda verdes)
Azeite
Limão
Alho
Sal e pimenta preta
Lave os jilós e coloque pra assar diretamente sobre a chama do fogão. Se tiver uma grelha, como de churrasco (colocada sobre a chama), melhor. Eu não tenho e vou equilibrando os jilós na boca do fogão, mesmo, virando de vez em quando pra assar de todos os lados.
Quando os jilós estiverem com a casca bem chamuscada (não tenha medo de queimar a casca) e a polpa bem macia (espete uma faca pra testar: ela deve atravessar a polpa sem nenhuma resistência), retire do fogo e coloque em um recipiente com tampa. Deixe abafado, ali dentro, enquanto prepara os outros jilós.
Quando todos estiverem assados, corte cada jiló ao meio, no sentido do comprimento, e retire a polpa com uma colher pequena.
Tempere a polpa do jiló assada/defumada com limão, azeite (seja generosa), sal e pimenta preta a gosto. Bata/amasse com um garfo pra que a pasta fique com a textura homogênea. Prove e corrija o sal/limão/azeite, se necessário. Deguste com pão ou, como eu gosto de fazer, com tapioca (fresca ou crocante – veja instruções no início da receita). Se conserva alguns dias na geladeira.
Hummmmmmm! Parece bom pra caramba! E se a gente só manter os outros ingredientes da receita com a berinjela? Será que o jiló se dá bem com tahine….? Eu detestava jiló quando era criança, porque via meu avô comer o coitado inteiro, cozido até parecer um morto por afogamento, com pouco sal e muito azeite. Ficava parecendo uma lesma atropelada, porque até o verde desbotava blergh! aparentemente outros descendentes de português também tem o hábito inexplicável de matar legumes afogados, primeiro em água, depois em azeite. Meu vô fazia isso com berinjela, cebola, até a pobre batata. Nem de azeite eu gostava, porque meu vô botava tanto, tanto, que o prato nadava em oleosidade. A única coisa que me salvava era pegar vinagre, porque intuitivamente eu achava que dava uma cortada na gordura. Só depois de adulta que comi jiló na chapa e percebi a maravilha que perdi todos esses anos. Vou fazer a receita o quanto antes.
Ri muito com a descrição do jiló do seu avô, Maya:D Eu tenho certeza que vai dar muito certo com tahina. Só não fiz ainda porque eu queria ver se podia fazer uma pasta com uma gordura mais fácil de encontrar, pra ficar mais acessível. Se fizer, me conta como ficou;)
Não sabia que o jiló era parente da berinjela, mas desconfiava! Aprendi a gostar com uma família mineira, frito e com sal grosso, do jeito que o cérebro gosta, hahaha! Faço quase sempre grelhado e vou tentar sua versão defumada. Um beijo, Sandra!