O avião se aproximou de Porto Alegre e eu fiquei impressionada em avistar tanta água. Era a minha primeira vez na cidade e, admito com vergonha, não sabia que ela era banhada pelo rio Guaíba. Aliás, descobrir o nome daquele rio foi uma surpresa. No bairro onde cresci, no outro Rio Grande, as ruas tem nome de rio e a rua Rio Guaíba é vizinha da nossa. Então ficava ali o rio que eu atravessava todos os dias, na sua versão rua, pra ir pra escola?
Eu estava indo pra Porto Alegre pra realizar atividades militantes, quando a UVA organizou a Jornada do Veganismo Popular contra o Fim do Mundo, em novembro de 2022. Fui muito bem recebida por camaradas do coletivo vegano local associado à UVA, que foram me buscar no aeroporto, me ofereceram pouso e comida, me levaram pra conhecer a cidade e trocaram ideias e conhecimentos comigo. Depois de me impressionar com aquele corpo d’água imenso e com a hospitalidade das pessoas que encontrei, fiquei maravilhada com as árvores: gigantes e lindas. Talvez seja porque minha família é do Sertão, onde quase tudo é arbusto (“árvores acocoradas”, como disse Josué de Castro). O fato é que não importa quantos anos eu vivi e quanta coisa eu vi, árvores altas continuam sendo algumas das coisas que me mais me impressionam no mundo.
Acompanho, como o coração apertado e o peito cheio de revolta, a catástrofe causada pelas enchentes no RS todos os dias desde que voltei pro Brasil. Todos os dias, penso nas pessoas que conheci lá. Penso no assentamento que visitei, que produz tanta coisa além do famoso arroz orgânico, e que ficou completamente embaixo d’água. Penso no sofrimento do povo gaúcho que perdeu muito mais do que é possível contabilizar, nos animais que ficaram pra trás e morreram, nos que foram resgatados e estão em abrigos superlotados, nas voluntárias que estão fazendo um trabalho admirável salvando pessoas humanas e não-humanas… Penso também no meu irmão, que é bombeiro e saiu de um Rio Grande pro outro pra resgatar as vítimas das enchentes, sem data pra voltar pra casa.
E se a revolta com quem contribui pra que esse desastre acontecesse, sejam autoridades locais ou os poluidores do Norte do globo, ocupa uma parte dos meus pensamentos, ver a solidariedade das pessoas, a ajuda mútua (um dos pilares do compromisso anarquista) todos os dias é o que coloca alento dentro de mim. Claro que estou escrevendo essas linhas de um lugar bem longe, no seco e abrigada.
Hoje abri o telefone procurando as fotos da minha única passagem por Porto Alegre e percebi que apesar de ter compartilhado algumas fotos quando falei da Jornada do Veganismo Popular contra o Fim do Mundo, ainda não tinha feito um post contando o que vivi na cidade.
Enquanto sonho em voltar praquela terra, rever as amigas e camaradas e ver o RS reerguido e fortalecido, compartilho aqui alguns momentos da viagem de 2022.
Tive a honra de visitar o Assentamento Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul (região metropolitana de Porto Alegre) e conhecer algumas pessoas maravilhosas por lá, além do famoso arroz orgânico do MST. Quem me levou até lá foi o jornalista Marco Weissheimer, do Sul21. Marco já tinha me entrevistado uma vez em 2018 e 4 anos depois nos conhecemos, enfim, pessoalmente e fizemos mais uma colaboração. Sou muito grata ao Sul21 por me dar espaço, mais uma vez, pra falar do antiespecismo como parte da luta decolonial: A mesa é um território de disputa
Também pude visitar a padaria Pão da Terra, no assentamento. A história dessa padaria é linda demais e fico muito feliz que tenha sido registrada nesse video que o Sul21 fez mostrando nossa visita ao local.
Deixa eu contar um momento bem emocionante pra mim durante a visita à padaria Pão da Terra. Dona Maria Inês, assentada que também trabalha na padaria, nos mostrava os bolos lindos e cheirosos que elas preparam e vendem nas feiras. Perguntei que ingredientes ela colocava nos bolos e quando percebi que todos eram de origem vegetal (muito nutritivos, aliás) perguntei: “A senhora não usa ovo nos bolos por que?” Ela respondeu simplesmente: “Porque não precisa.” Algo óbvio que nós, veganas, sabemos, mas que as pessoas que comem animais e seus derivados ignoram (ou decidem ignorar). Se todo mundo entendesse essa informação tão simples…
A região de Eldorado do Sul foi muito afetada pelas enchentes e foi com muita tristeza que descobri que o assentamento Integração Gaúcha, todas aquelas roças lindas, os campos de arroz e aquela padaria tão especial, tinham ficado completamente embaixo d’água. Hoje Marco me enviou um vídeo da filha de uma das assentadas que conhecemos mostrando o estado que ficou a padaria. Ele também escreveu esse artigo contando como está sendo organizada a solidariedade pra reerguer a comunidade: Feiras Ecológicas lançam campanha para ajudar assentamentos atingidos pelas enchentes
Foi durante essa viagem que visitei, pela primeira vez na vida, um santuário animal. Pude conhecer o santuário Voz Animal e encontrei Feu, um dos fundadores do santuário e membro da UVA.
Encontrar cada animal vivendo ali foi lindo demais e descobrir o trabalho por trás do santuário me encheu de admiração por Feu e Fernanda, sua companheira e também fundadora do Voz Animal. E como se não fosse suficiente, essas pessoas estão atualmente na linha de frente resgatando animais vítimas das enchentes em Porto Alegre e organizando a solidariedade material nos abrigos.
Agradeço mais uma vez o carinho e a generosidade de todas as pessoas que conheci em Porto Alegre. Um obrigada especial a Monique, que me levou pra todos os lugares e me deu queijo (vegetal), a Bruno, que me deu pouso, mate e um livro, a Feu, que passou o dia me mostrando o santuário e a Marco, que decidiu levar minha voz e minha mensagem pras leitoras do Sul21:) A vontade de voltar pra rever vocês e estar aí mais uma vez é grande. Nosso reencontro, junto com o pessoal do MTST, as outras compas do coletivo Mova e Bruna Crioula vai ser potente. Um cheiro pra todas e vocês não saem do meu pensamento.
Organizando a solidariedade material
Quem puder contribuir materialmente com as pessoas e animais no Rio Grande do Sul, deixo aqui algumas recomendações de pessoas que conheço pessoalmente, que fazem um trabalho sério e que estão precisando de ajuda no momento.
Bruna Crioula criou o Fundo Crioula “em apoio ao povo negro e aos animais que sofrem os impactos do racismo ambiental no Rio Grande do Sul”. Doações via pix, chave: oi.crioula@gmail.com
As doações pro Santuário Voz animal vão ajudar os animais que moram no santuário (são 300 animais!), mas também os que foram vítimas das enchentes, fortalecendo o @aubrigo_scooby a UTI pra animais @op.resgateanimal , o Hospital de Campanha do Gasômetro @operacaoresgatepetpoa e Abrigo de Animais de Grande Porte de Viamão @naomedeixepratras . Você também pode doar diretamente pra cada uma dessas iniciativas.
Texto lindo, Sandra. A reconstrução que vem agora (e nem entramos exatamente nela ainda, pois hoje choveu o dia inteiro e a cidade voltou a ficar alagada) é física, emocional e conceitual. E atualizar a memória dessas vivências de resistência que têm por aqui é uma das formas de reconstrução. abraço grande, Marco.