Outro dia eu estava na feira do meu bairro e vi bolo preto na barraca das tapiocas. Adoro bolo preto e há anos não comia um. Me animei toda e comprei um pedaço pra tomar com café. Chegando em casa abandonei as frutas e as verduras no chão da cozinha, enchi uma xícara de café (ainda tinha um pouco na garrafa térmica que fica em cima da mesa) e sentei pra matar o desejo antigo. Que decepção! O bolo era seco, compacto e sem gosto. Uma vergonha chamar aquilo de bolo preto!
Pula pra algumas semanas depois. Tia Olizé, uma das irmãs da minha mãe, estava nos visitando e, não sei como, começamos a falar de bolo preto. Contei da minha decepção e expliquei que continuava com desejo de comer bolo preto, mas não sabia fazer. Ela disse: “Minha fia, é muito fácil!” e me contou como ela fazia. Eu queria fazer a primeira vez com ela pois, como toda pessoa que sabe cozinhar, ela não me deu medida nenhuma. Fiquei com medo de errar o ponto e ter outra decepção. Mas os dias foram se passando, minha tia acabou não voltando mais aqui em casa e a minha vontade de bolo preto só crescia. Eu poderia ter procurado em alguma padaria, mas depois de descobrir como minha tia fazia, minha intuição me dizia que o bolo dela era especial. Agora era o bolo dela que eu queria.
Ontem fizemos um adjunto na casa da minha mãe pra saudar São João (e São Pedro e Santo Antônio). Me ofereci pra preparar um bolo preto e logo depois mandei mensagem pra tia Olizé pedindo pra ela me repassar a receita dela, mas dessa vez com quantidades precisas. Ela respondeu por áudio e com a voz dela me guiando, foi como se ela estivesse na cozinha comigo. Apesar de ter ficado tensa algumas vezes, minhas dúvidas se dissiparam quando coloquei o primeiro pedaço (ainda quente) na boca. O sabor e a textura estavam muito, muito além das minhas expectativas. E o bolo foi um sucesso total com todas as pessoas que provaram. Algumas delas me disseram, inclusive, que tinha sido “o melhor bolo preto que já tinham comido”.
Algumas ressalvas sobre essa receita. Bolo preto não é pra todo mundo. A textura é densa e levemente gelatinosa, a léguas de distância da fofura que muitas pessoas associam à palavra “bolo”. O sabor é intenso e marcante. Eu o descreveria como uma rapadura cremosa perfumada com especiarias, mas menos doce e mais saborosa, por conta da castanha. É um bolo com caráter e personalidade. Ele sabe que não agradará todo mundo e está tranquilo com isso, pois vai ter sempre alguém que saberá apreciá-lo pelo que ele é. (Na vida, seja um bolo preto.)
Uma rápida busca pela internet me fez descobrir que algumas pessoas, principalmente de outras regiões, colocam macaxeira em seus bolos pretos. Vi até uma chef cearense usar carimã (macaxeira pubada/fermentada) na sua versão. E, o que me chocou bastante, vi pessoas no Sudeste colocarem ovos e até farinha de trigo nessa receita. Me parece correto dizer que no RN bolo preto é sempre feito com farinha de mandioca (é um bolo tradicionalmente sem trigo e sem glúten) e nunca, nunca entra ovo nem nada de origem animal em sua composição. É uma das nossas receitas tradicionais naturalmente vegetais (veganas). Sobre o nome, tem quem chame de “pé de moleque”, embora isso seja raro em terras potiguares. Li várias explicações pra origem desse nome e não gostei de nenhuma. Prefiro chamar de bolo preto, mesmo.
Se seu paladar é maduro (aprecia uma paleta de sabores muito variada, incluindo sabores marcantes) e você gosta de bolos densos (como meu bolo de macaxeira e coco, ou de carimã com goiabada), vai se encantar com essa receita. E se, assim como eu, você conhece e já gosta de bolo preto, saiba que essa versão é a “crème de la crème” dos bolos pretos.
Bolo preto de tia Olizé
Esse bolo é denso e quase cremoso, com um sabor marcante de rapadura e especiarias. Junto com um café amargo, ele é, pra mim, alegria comestível. Essa receita é da minha querida tia Olizé e ela usa uma técnica que nunca tinha visto antes. No final do texto incluí algumas dicas e explicações minhas. Aconselho ler tudo. Apesar de ser uma receita longa, o modo de preparo desse bolo é muito simples e está ao alcance até das pessoas que nunca fizeram um bolo na vida. E como ele não fica fofo, não tem como solar e dar errado.
1 rapadura preta (450g)
1 coco seco grande + 1 litro de água (pra fazer 1 litro de leite de coco)
2 xícaras de farinha de mandioca (fina – peneire antes, se for preciso)
1 colher de chá de cravo em pó
1 colher de chá de canela em pó
1 colher de sopa de erva doce
Pitada generosa de sal
1 1/2 xícara de castanha de caju + um punhado pra decorar
Comece preparado o leite de coco, como ensinei nessa receita. Você deve fazer 1 litro de leite de coco bem forte.
Quebre a rapadura em pedaços pequenos e leve ao fogo baixo junto com o leite de coco, pra fazer a calda de rapadura. Assim que a rapadura estiver completamente dissolvida, desligue o fogo e deixe esfriar. Enquanto isso passe a castanha no liquidificador (menos um punhadinho pra decorar o bolo) pra triturar miudinho. Pode fazer isso com a faca também. Unte com óleo uma forma média (quadrada é tradicional) e depois polvilhe com farinha de mandioca. É importante deixar a forma pronta pra receber a massa do bolo (você vai entender mais na frente).
Quando a calda de rapadura estiver quase fria (tudo bem se estiver levemente morna), junte a farinha de mandioca, as especiarias, uma pitada generosa de sal (pegue com 4 dedos) e a castanha picada. Misture com uma colher de pau ou, melhor, com um batedor de arame, pra que a farinha seja totalmente incorporada ao líquido. A gente faz isso fora do fogo pra não emboluar (é a mesma técnica pra fazer pirão). Agora você vai levar essa mistura ao fogo médio-alto, de preferência em uma panela grande e com o fundo grosso, mexendo sem parar com uma colher de pau. Assim que abrir fervura baixe o fogo e cozinhe, sempre mexendo, até a massa ficar bem encorpada. Cronometrei essa etapa pra te ajudar: foram 9 minutos, do momento que liguei o fogo até ficar pronto.
Transfira imediatamente a massa pra forma previamente untada/enfarinhada (essa massa, depois de cozida, endurece assim que começa a esfriar. Por isso é importante que a forma seja untada/enfarinhada previamente). Bata o fundo da forma contra um superfície dura (mesa, bancada) pra massa se espalhar em uma camada uniforme. Decore com o punhado de castanhas restante e leve ao forno médio-baixo (não precisa pré-aquecer). Deixe assar por 45 minutos (mais ou menos, vai depender do seu forno), ou até a superfície ficar bem seca (toque de leve com os dedos pra testar) e as bordas estiverem mais firmes.
Retire do forno e deixe esfriar completamente antes de degustar (enquanto estiver quente, esse bolo é bem cremoso. Só depois de frio que ele atinge a consistência desejada e pode ser cortado).
Sobre a rapadura
Tem vários tipos de rapadura, todas gostosas, mas pra esse bolo você vai precisar de rapadura preta. O nome do bolo, assim como o sabor característico, vem dela. O tamanho das rapaduras também varia. O tamanho do tijolo mais convencional vai de 450g a 600g. A minha rapadura tinha 450g e achei que ficou no ponto: doce o suficiente pra agradar quem gosta de açúcar, mas não excessivo pra uma sobremesa (brasileira).
Sobre o leite de coco
Use leite de coco caseiro, feito na hora. A versão industrializada é muito mais espessa (sempre tem espessante nos ingredientes) e, na minha opinião, o sabor é enjoativo. Na minha família é um insulto pra comida (e pra quem vai comê-la) usar leite de coco industrializado. Quebrar coco seco e rapar dá trabalho, mas felizmente aqui em Natal é fácil encontrar coco seco rapado na feira (não confundir com coco desidratada). Até o supermercado do meu bairro vende coco seco rapado congelado. Então compro sempre e congelo em porções pequenas. Pra fazer esse bolo usei o equivalente a um coco seco grande (aproximadamente 2 1/2 xícaras de coco).
Sobre as especiarias
Minha tia usa cravo inteiro e pila (num pilão pequeno) junto com a erva-doce. Eu tinha cravo em pó em casa e foi o que usei, mas pilei grosseiramente a erva-doce (depois de tostar alguns minutos numa frigideira seca pra intensificar o aroma). Algumas pessoas já fazem a calda de rapadura com as especiarias dentro (o cravo e a erva-doce inteiras) e deixam macerando enquanto a calda esfria. Depois coam o líquido (descartando as especiarias) antes de acrescentar os outros ingredientes.
Sobre a castanha de caju
Como a castanha usada na massa do bolo vai ser triturada, fica bem mais barato comprar castanha do tipo “quebradinha”, ou o xerém de castanha (a mais quebrada de todas, quase uma farofa). Aqui em casa sempre tem castanha quebrada (pra fazer leite e queijo), por isso usei as quebradas até pra decorar o bolo. Mas, tradicionalmente, as castanhas que decoram o bolo são inteiras, pra ficar mais bonito.
Se a gente ainda usasse msn, acho que eu colocaria no meu subnick: “na vida, seja um bolo preto”. A receita parece deliciosa, vou atrás de rapadura pra testar o quanto antes!
Já virou meu mantra 😉
Que preciosidade, Sandra! Obrigada por compartilhar a receita de sua tia com tanto amor. Vou atrás dos ingredientes pra fazer em breve. Beijos, Giulia.