Feijão adubado

Outro dia eu estava lendo “História da alimentação no Brasil”, do meu conterrâneo Câmara Cascudo, e me deparei com duas informações que me surpreenderam. Quando surgiu, a feijoada era feita com feijão carioca (que ele chama de “mulatinho”), e não preto. Ele compartilha algumas receitas de feijoada do final do século 19 (segundo Cascudo, época em que apareceu a feijoada, contrariando a versão mais popular de que é um prato muito mais antigo), todas com feijão carioca, e numa delas o autor (da receita) explicita que só serve esse feijão. Todas as receitas terminavam dizendo: “Come-se com farinha e molho de pimenta e/ou limão”. Arroz ainda era presença rara nas mesas nacionais. Quer dizer, nas mesas empobrecidas, como nos explica uma das receitas: “Os ricos misturam à farinha um pouco de arroz cozido.”

A outra informação que derrubou uma crença que eu tinha com relação à feijoada é que, nas versões mais antigas, ela vinha sempre recheada de verduras. Eu, que escrevi longamente sobre minha antipatia por feijoadas veganas com verduras, mordi a língua. Cascudo escreve: “Só se diz feijoada quando há carnes e verduras. O feijão com carne, água e sal, é apenas feijão. Feijão ralo, de pobre. Feijão todo-dia. Há distância entre feijoada e feijão. Aquela subentende o cortejo das carnes, legumes, hortaliças.” Então tá. Mas no meu coração sigo acreditando que entupir seu feijão de legumes é arriscado. Se a mão pesar um pouco, ele atravessa uma linha que o coloca do lado das sopas.

Pouco tempo depois dessas descobertas, estava passeando pelo Mercado de Petrópolis, aqui em Natal, e vi a cozinheira de uma das barracas de comida lá dentro colocar uma panela de pressão no fogo. Como eu estava procurando algo pra almoçar, me aproximei e perguntei o que era. Ela respondeu que estava fazendo “um feijão bem adubado”. Adubado? A lavradora de quintal dentro de mim, que tinha (até recentemente) três composteiras em casa, imediatamente pensou em muitas verduras. Achei uma graça “adubar” feijão, mas quando ela me contou que o tal do adubo era todas as partes imagináveis de porco e vaca, a decepção foi grande. Uma expressão tão bonita….

Quer dizer que a feijoada, que eu imaginava ser composta exclusivamente por partes de animais (fora o feijão, claro), também tinha um “cortejo de legumes e hortaliças”, enquanto o “feijão adubado” não tinha verdura nenhuma, só uma quantidade assustadora de pedaços de animais?

Estava ruminando essas coisas com minha irmã do meio, quando ela me lembrou que nossa mãe, que fazia o melhor feijão preto que já comi, gostava de colocar verduras no feijão marrom, geralmente uma combinação de batata e cenoura ou apenas jerimum. Eu sempre gostei tanto do feijão preto dela que tinha esquecido como ela preparava outros feijões, mas depois da conversa com a minha irmã, relembrei e fiquei saudosa daquele prato.

Essa foi uma longa introdução pra contar que fiz as pazes com feijão cozinhado com hortaliças. Não que eu achasse ruim, só achava com gosto de sopa. Repare que eu adoro sopa, e frequentemente faço sopa de feijão pro jantar, mas na hora do almoço preferia comer as verduras feitas à parte, acompanhando o feijão. Mesmo tendo dado essa dica várias vezes pra pessoas que não querem passar muito tempo cozinhando (“coloquem suas verduras dentro do feijão pra economizar tempo, sem prejudicar o consumo de verduras”), eu continuava cozinhando meu feijão e minhas verduras separadas. Porém, como disse, isso acaba de mudar. Acho que consegui achar um equilíbrio perfeito entre os ingredientes e ontem fiz um feijão maravilhoso. E o resto da família aprovou.

Claro que eu tinha que chamar essa receita de “feijão adubado”, pois foi exatamente isso que imaginei quando ouvi a expressão no mercado. Mas já adianto que vou seguir fazendo minha feijoada com feijão preto e sem verduras.

Feijão adubado

Mais uma receita que não é exatamente uma receita: é uma técnica. Use as verduras que preferir, embora eu ache que a combinação de jerimum, chuchu e couve é ideal. Também insisto no feijão carioca, ou outro feijão marrom que dê um caldo espesso, pois acho que esse tipo de feijão casa muito bem com essas verduras. Fica untuoso e uma delícia sem tamanho! Mas se quiser usar feijão preto, fique à vontade. As quantidades dependem da quantidade de feijão, mas a minha regra pra não virar sopa é que o volume de verduras (todas juntas) seja menos da metade do volume de feijão cozido.

Feijão carioca

Jerimum

Chuchu

Cebola

Couve

Alho

Coentro

Pimenta de cheiro (opcional)

Óleo

Suco de limão ou vinagre

Páprica defumada, sal e pimenta preta

Deixe o feijão de molho na véspera (pelo menos 12h). Descarte a água da demolha e coloque o feijão numa panela de pressão, coberto com água limpa (a água deve passar um pouco do feijão) e sal a gosto. Cozinhe por 12 minutos à partir do momento em que a panela pegar pressão (começar a apitar).

Enquanto isso, prepare as verduras. (Lembrando que gosto de usar menos da metade de verduras -todas juntas- com relação à quantidade de feijão). Pique a cebola e reserve. Faça o mesmo com o alho, a pimenta de cheiro e a couve. Descasque e corte o jerimum e o chuchu em pedaços médios. Refogue a cebola em um pouco de óleo, até ficar dourada. Junte o alho e a pimenta de cheiro e deixe cozinhar mais alguns segundos. Tempere esse refogado com bastante páprica defumada e desligue o fogo.

Quando o feijão estiver cozido (tudo bem se ainda estiver um pouco firme) deixe a pressão escapar, abra a panela e despeje o refogado de cebola dentro. Junte também o jerimum, o chuchu e a couve. Acrescente mais um pouco de sal e pimenta preta a gosto. Se tiver usando o vinagre, acrescente uma colherada nesse momento. Feche a panela e coloque novamente no fogo. Assim que começar a apitar conte uns minutinhos e desligue. Essas verduras cozinham rápido, ainda mais dentro da panela de pressão.

Retire a pressão novamente e junte bastante coentro picado. Prove e corrija o sal, se necessário. Se você preferir usar limão como ingrediente ácido (acidez realça o sabor do feijão), esprema um pouco de limão no prato, na hora de servir.

Come-se com farinha e, juntos, é uma refeição completa, saborosa e nutritiva. Mas se quiser comer com arroz, também dá certo;)

2 comentários em “Feijão adubado

  1. Oi Sandra,
    Adorei o post, como sempre. Confesso que pelo título achei que você iria comentar alguma coisa relacionada à série recente da Rita Lobo sobre o prato feito brasileiro. No episódio em Belém ela mostra que por lá o pessoal diz não comer verduras, mas o feijão costuma ser adubado, que é justamente quando é cozido e servido com verduras junto (e não produtos de origem animal).

    1. Eu vi esse episódio recentemente, depois de ter descoberto a expressão com a senhora do mercado em Natal. Mas na minha lembrança, além das verduras, também tinha carnes animais naquele feijão adubado que uma família paraense preparou…De todo jeito, achei lindo quando vi novamente a expressão ali e acho que podemos concluir que “adubado” varia muito de significado, dependendo de quem está cozinhando, né?

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