Um pouco de vida e uma sopa palestina

Escrevi o último post do ano passado mergulhada na tristeza e volto quase um mês depois (nas primeiras semanas de janeiro esse blog costuma hibernar- ou veranear, dependendo do continente onde ele se encontra), volto agora com uma mistura de sentimentos, mas, sobretudo, aliviada pelo cessar-fogo em Gaza. Imaginem que mais de dois milhões de pessoas puderam dormir pela primeira vez em mais de um ano. Dormir embaixo das estrelas, certo, porque quem sobreviveu ao genocídio cometido por Israel está desabrigada, já que quase todas as construções em Gaza foram bombardeadas, mas pelo menos não foi embaixo de bombas. Se Israel vai respeitar o cessa-fogo, se vai permitir que a ajuda humanitária, nesse momento vital, entre em quantidade suficiente, se as pessoas feridas, que ainda estão entre a vida e morte, vão conseguir tratamento em algum hospital fora de Gaza (os hospitais de Gaza foram bombardeados por Israel), se vai ser possível reconstruir as casas, escolas, hospitais – e quanto tempo vai levar pra que isso aconteça…tudo isso é incerto e faz planar uma sombra de desconfiança nos nossos corações. Não tem como ficar alegre vendo as ruinas de um genocídio, mas pelo menos vamos começar o ano sentindo alívio. Provavelmente temporário, mas que permite um pouco de respiro nas próximas semanas.

No nível pessoal, minha vida anda instável. Depois de ter passado um ano no Brasil, voltei pra França no final de dezembro e fui direto pro interior, passar o natal com a família de Anne. Como explicar o que sinto quando volto pro velho continente? Antes era mais fácil, sabe? Lembro que passava de um país pro outro sem muito esforço. Meu corpo era mais jovem, os voos eram mais curtos, o colapso ambiental ainda não era tão evidente e a diferença de temperatura não era tão abismal, a França ainda não tinha normalizado a xenofobia como é o caso agora? Não sei. Mas posso afirmar que dessa vez meu corpo chegou na França de avião e meu espírito ainda está atravessando o Atlântico. Numa canoa.

Até junho de 2024 a gente alugava a garagem (transformada em mini-apartamento) de uma casa com jardim na periferia norte de Paris. Tinha suas vantagens, como a possibilidade de fazer uma horta e comer ao ar livre durante os meses quentes, mas também tinha seus problemas. A casa era escura e fria, a cozinha era bem ruim. Depois de três anos, tivemos que sair de lá, mas eu já sentia que tinha chegado a hora de ir embora. Porém, ficar sem domicílio não é uma situação confortável. Eu estava no Brasil, morando na casa da minha mãe, e Anne ficou pulando de sofá em sofá, acolhida pelas amigas e camaradas do coletivo. Ainda bem que temos amigas. A diferença que faz, na vida da pessoa, ter uma rede de apoio!

Voltamos pra periferia norte de Paris há pouco mais de duas semanas e no momento estamos hospedadas na casa da amiga que liderou a luta nos jardins operários e nos ensinou a fazer horta seguindo os preceitos da permacultura. A busca por um lar consumiu boa parte do nosso tempo esse mês e acabamos encontrando uma oportunidade que, de primeira, não tínhamos imaginado. Se tudo correr bem, em breve poderemos desfazer as malas e voltar a ter uma rotina. Nunca imaginei que ter uma rotina se tornaria tão importante pra minha saúde e pra produtividade no trabalho.

Enquanto isso, sigo trabalhando (como posso) no projeto multimídia sobre mundos a serem defendidos na Amazônia. Projeto que fiz com Anne ano passado e que nos levou a campo por quase dois meses. Depois de uma publicação num jornal alemão, a reportagem que fizemos sobre a trilha Chico Mendes, na Reserva Extrativista Chico Mendes (Acre) foi publicada numa revista online aqui na França. A terceira reportagem vai sair em março e, daqui até lá, provavelmente vai ter uma exposição também.

Além disso estou participando da organização do próximo ENUVA (Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo), que será em Belém, no final de outubro/início de novembro. Pra ter mais informações sobre o evento que, acredito, será um divisor de águas na luta antiespecista no Brasil e, ouso dizer, no mundo, acompanhem a UVA.

E pra finalizar esse post, uma receita de 2011, diretamente dos arquivos do blog. No dia seguinte ao anúncio do cessar-fogo fui visitar minha avó (adotiva) francesa e como ela é muito ligada à Palestina (acredita que ela foi me visitar lá em 2015, aos 85 anos?!), fiz um prato palestino pra gente celebrar esse momento. Eu faço essa sopa com muita frequência, porque além de simples e nutritiva, ela tem o gosto da Palestina pra mim. A versão na foto abaixo, a que fiz pra minha avó, tem tahina (ou tahine, como preferir chamar). Anos atrás inventei de juntar um pouco de tahina no final, pra deixar a sopa mais nutritiva e saborosa, e desde então sempre faço assim. Pensei que valia a pena trazer essa receita de volta pra compartilhar também a versão um pouco modificada.

Então me ocorreu que esse blog vai fazer 15 anos em fevereiro e que tem muitas, muitas receitas maravilhosas escondidas nos arquivos. Então de vez em quando vou tirar a poeira de alguma receita antiga e trazer novamente pra cá, com as devidas atualizações, caso tenha ocorrido alguma, e com o texto original (com correções, se eu achar necessário, pois a maneira como escrevo evoluiu um tanto desde a criação desse blog).

Podemos chamar de “Papacapim vintage”, se a gente quiser (embora eu tenha a impressão que o conceito inteiro de blog se tornou “vintage” há muitos anos).

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(Texto e receita publicados originalmente nesse blog, em 12/04/2011, com pequenas alterações feitas pela autora.)

Em cada país do mundo existe um prato típico (ou vários) que usa somente alguns ingredientes baratos, mas que é capaz de encher a barriga de qualquer trabalhadora faminta. Na India eu descobri o daal (sopa de lentilhas), que custava menos que um copo de chá, no Egito tem o koshari (um prato de macarrão com lentilhas, cebola frita e molho apimentado) que, segundo um artigo que li recentemente, alimentou os revolucionários da praça Tahrir, e por aí vai.

Por mais que eu adore os elaborados e deliciosos pratos de festas, também presentes em todas as culturas do mundo, o prato do pobre tem um lugar especial no meu coração. Não somente ele alimenta e permite que milhões de pessoas sobrevivam todos os dias mas, contrariamente ao que se possa imaginar, visto que os ingredientes são sempre tão simples, alguns são extremamente saborosos. A limitação, nesse caso financeira, nos obriga a ser criativos e a aproveitar os ingredientes da melhor maneira possível. Sem contar que, sendo carne e laticícios produtos de luxo na maior parte do mundo, os pratos do pobre são sempre veganos.

Aqui na Palestina os pratos do pobre são feitos com lentilha e arroz. Eu já publiquei a receita do Mujadara, um dos meus pratos preferidos, e hoje gostaria de dividir com vocês a sopa de lentilha que sempre salva o jantar quando a geladeira está vazia. Essa sopa é parecida com daal, mas é feita com arroz e não usa as especiarias da prima indiana. Ela é delicadamente temperada (só um toque de cominho e um pouco de suco de limão), mas é deliciosa e alimenta por várias horas. Tirando a cebola e o alho (e o limão), essa sopa usa ingredientes do armário, o que significa que mesmo com a geladeira vazia você será capaz de preparar um jantar nutritivo, saboroso e que fica pronto em 30 minutos.

Sopa de lentilha palestina – e a minha versão

A lentilha usada aqui é do tipo coral (veja foto no final da receita), que não tem casca e cozinha muito mais rápido do que lentilha verde e marrom. Acredito que usando mais água e deixando a sopa cozinhar mais tempo, você poderá usar lentilhas verdes (nunca testei, então não posso dar instruções precisas). Mas não deixe de procurar lentilha coral pra fazer o prato tradicional pelo menos uma vez. Eu faço uma versão com tahina (pasta de gergelim) que é ainda mais cremosa e gostosa, embora não seja tradicional. É a versão da foto acima.

1 1/2 xícara de lentilha coral

1/3 xícara de arroz branco

2 colheres de sopa de azeite – mais pra servir

1 cebola picadinha

4 dentes de alho grandes picados

1/2 colher de chá de cominho em pó

1,5 litro de água

Suco de limão

Sal e pimenta preta a gosto

Salsinha fresca – opcional

Tahina (pasta de gergelim) – opcional

Em uma panela grande, aqueça o azeite e refogue a cebola até ficar dourada. Junte o alho e refogue mais 1 minuto. Junte a lentilha, o arroz, o cominho, uma pitada generosa de sal e a água. Aumente o fogo. Quando começar a ferver, tampe a panela e deixe cozinhar em fogo médio, mexendo de vez me quando, até que a lentilha tenha se desintegrado e o arroz esteja bem cozido (20-25 minutos). Pra finalizar a sopa, temos duas opções.

Versão tradicional: Tempere com pimenta preta e suco de limão (a sopa tem que ficar levemente ácida). Prove e corrija o sal. Sirva bem quente, regada com bastante azeite e polvilhada com salsinha fresca picada (opcional). Eu gosto de servir a sopa com fatias de limão pra quem gostar de sopa mais azedinha (eu gosto!).

Versão com tahina: Coloque 2 colheres de sopa de tahina de boa qualidade (feita à partir de gergelim descascado e levemente torrado) em um recipiente pequeno e acrescente o suco de um ou dois limões, dependendo do tamanho. Misture rapidamente – vai ficar mais espesso, não se assuste – e vá acrescentando água aos poucos, até atingir uma consistência cremosa e fluida. Junte esse molho de tahina à sopa cozida, misture bem, acrescente pimenta preta e a salsinha picada (se estiver usando). Prove e corrija o sal/limão.

Serve 4 porções generosas.

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