Tenho até vergonha de dizer que só vim entender que a Amazônia chega até o Nordeste, mais especificamente, ao Maranhão, uns anos atrás. Sim, a Amazônia legal cobre uma parte desse estado e foi lá que terminamos nossa viagem-projeto de quase dois meses na Amazônia.

Foi minha segunda vez no Maranhão e a impressão que tive na primeira viagem se confirmou: é um lugar com muito borogodó. Tem o fato do território estar numa zona de encontro de biomas, entre a floresta amazônica, a mata dos cocais, o Cerrado, mangues e até Caatinga. Parece que tudo se encontra ali e zonas de transição são espaços de diversidade, possibilidades e abundância.
São Luís é uma das minhas cidades preferidas no Brasil e num cantinho do meu coração mora o projeto de fixar raízes por lá por algum tempo. Ainda não sei dizer com palavras o que tem ali que me deixa tão alegre. As pessoas são uma delícia! A comida é exuberante. A energia entra no meu corpo e me faz relaxar, desacelerar. Não serei insensível dizendo que é uma cidade perfeita, tem muitas, muitas injustiças sociais. E só estive lá de passagem, então se eu realmente morasse lá, tenho certeza que a complexidade e dureza da situação socioeconômica local tingiriam minha impressão de São Luís com cores mais sombrias.
Estivemos no Maranhão pra conhecer melhor o movimento das quebradeiras de coco babaçu e encontrar algumas delas. E isso aconteceu na Baixada Maranhense (fotos acima). Aproveito pra deixar aqui o meu agradecimento a Leila Figueiredo, que me aconselhou a ir pra Baixada e me colocou em contato com mulheres incríveis. (Junto com Lívia Humaire, ela tem um podcast ótimo chamado Arquipélago Verde.)
A mata dos cocais, onde ficam os babaçuais, e a luta das quebradeiras de coco babaçu são assuntos importantes demais pra caber num parágrafo. Um dia, se o tempo permitir, volto pra contar. Como essa série de posts é sobre comida, vou focar nisso.
Pra mim não tem como falar da comida no Maranhão sem começar por ele: o babaçu. Essa palmeira nativa da Amazônia é chamada de “mãe palmeira” pelas quebradeiras de coco babaçu. Pra saber mais sobre esse movimento de mulheres que é uma das lutas que mais me inspiram no mundo, dê uma olhada no site do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, o MIQCB.
Essa palmeira dá um coquinho, o coco babaçu, que é fonte de abundância. Do coco se extrai o azeite (tradicional ou extra virgem) e a farinha. O óleo também é utilizado pra fabricar sabonete e sabão. Ainda se faz artesanato e biojoias com a palha da palmeira e o endocarpo dos cocos. Provei azeite de babaçu pela primeira vez muitos anos atrás e foi amor à primeira colherada. O sabor do azeite levemente torrado é amanteigado e me lembra manteiga de garrafa, mas misturada com coco. O azeite extra virgem tem um sabor mais próximo do óleo de coco (de praia) mais conhecido no Brasil, só que mais suave. Eu acho uma riqueza gastronômica imensa e sonho que o resto do país descubra, e valorize, essa maravilha.

Como expliquei acima, além do azeite, se faz leite com o coco babaçu, exatamente como se faz leite de coco (de praia). Repare que o coco que conhecemos e amamos, aquele que oferta água quando verde e leite, quando maduro, é asiático. Ele é tão onipresente nos nossos territórios que é difícil acreditar que não é uma planta nativa. Sigo amando leite de coco (o asiático), mas depois que descobri leite de coco babaçu fiquei absolutamente maravilhada. Assim como o óleo de babaçu, o leite tem um sabor e aroma próximos do coco asiático, porém mais suave. O leite de coco babaçu é mais rico e encorpado (não tenho a tabela nutricional dos dois cocos aqui pra comparar, mas foi o que minhas papilas me disseram) e é uma belezura na cozinha.
Na foto acima, à esquerda, um mingau de tapioca feito com o leite e a farinha do babaçu, preparado por dona Antônia (de camiseta branca na foto abaixo). Dona Antônia fez esse mingau sem açúcar pra nós (Anne e eu) e com açúcar pras outras visitas. Uma delícia!
A foto da direita (acima) é de um bolo de fubá que dona Rosário (de vestido amarelo na foto abaixo) preparou pra gente. Foi o bolo de fubá mais simples e gostoso que já comi e dona Rosário compartilhou comigo a receita dela. Infelizmente ainda não consegui reproduzir essa gostosura, mesmo seguindo a receita. Tem comidas que são assim: você faz tudo igualzinho, mas o sabor não fica igual. Já me conformei que terei que voltar pra cozinha de dona Rosário pra comer esse bolo novamente. Mais uma desculpa pra voltar pra Baixada Maranhense e viver momentos de aprendizado e alegria com essas mulheres que tanto me inspiram.

O leite de coco babaçu é ótimo em receitas salgadas mas, pra mim, ele é uma perfeição em receitas doces. No centro histórico de São Luís, no beco Catarina Mina (pertinho do Mercado das Tulhas) tem uma sorveteria maravilhosa chamada “Vitória sorvete de frutas”. Os sorvetes são artesanais, feitos em quantidades pequenas (porque não tem conservantes) e as frutas do território brilham ali. Infelizmente tem leite de vaca em praticamente tudo, mas a estrela maior aqui é um sorvete de leite de coco babaçu, 100% vegetal. Vejam essa cremosidade ! Isso foi conseguido somente com leite de babaçu, sem nem um tico de gordura ou leite animal. Esse sorvete merecia ser destaque em todas as sorveterias do Norte e do Nordeste, no mínimo!

Fiquei uma semana em São Luís, hospedada em um local com cozinha (essencial pra mim, quando viajo). Preparei os cafés da manhã e os jantares na pousada, então pude passar muitas horas nos mercados da cidade, principalmente no Mercado Central, escolhendo ingredientes frescos. Que fartura, minha gente!
Tem até suco verde por lá, sabia? Além dos sucos das frutas nativas, que amo, mas como sempre eram adoçados, eu acabava optando pelo suco verde. Também almoçamos com frequência no mercado, dessa vez no Mercado das Tulhas. Era fácil montar um prato vegano, bastava se assegurar que no feijão do dia não tinha animais (não tinha em nenhuma das vezes que pedi) e, se fosse um PF, pedir sem o animal.
Veja que não disse que tem opções “veganas” no mercado de São Luís, porque esses pratos não vem com selo nem epíteto. Mas quem disse que precisa? Basta ir direto na parte de “acompanhamentos” do cardápio e ir montando o seu prato: uma porção de feijão, uma de arroz ou macarrão (sempre no alho e óleo), uma de farofa (quase sempre a farofa é de cebola ou alho, feita no óleo), uma porção de salada, verdura ou vinagrete… Os pratos abaixo ilustram como é perfeitamente possível ter uma alimentação 100% vegetal e popular.
Destaque pra foto abaixo, à esquerda. Esse almoço não foi no mercado, foi num pequeno restaurante oferecendo comida caseira no centro da cidade. Conversei com a cozinheira e perguntei o que poderia sair da cozinha dela que fosse 100% vegetal e ela me propos um prato que eu estava com muita vontade de provar desde a minha primeira visita ao Maranhão: arroz de cuxá. É o carro chefe da culinária maranhense, composto de arroz, vinagreira (uma planta da família do Hibisco) e camarão. Ela se propos a fazer um sem camarão pra gente e fiquei muito feliz em poder provar esse prato típico, feito pelas mãos de uma cozinheira maranhense.
Também fui comer duas vezes no Gafanhoto’s, um restaurante vegetariano (quase todo vegano) self-service. Os preço das refeições era muito mais elevado do que os meus PFs do mercado, mas a comida é deliciosa e vale a pena sair do centro pra ir até lá. Acho importante apoiar lugares vegetarianos/veganos, quando o bolso permite, e, como cozinheira, me inspira ver o que cozinheiras de outros territórios, que trabalham exclusivamente com o vegetal, estão inventando.
Mais dois pontos fortes gastronômicos da passagem por São Luís: sorvete de cupuaçu e maracujá e café gelado (feito com a técnica “Cold brew”). Os sorvetes vieram de outra sorveteria ótima, chamada “Mr Cold”, que fica no mesmo beco (na verdade, um beco-escadaria) da sorveteria Vitória. Sempre tem opções de sorvete sem leite e esses dois estavam uma perfeição. Maracujá e cupuaçu são duas das minhas furtas preferidas e esses sorvetes fizeram honra a elas. O café veio du um lugar charmoso que ficava quase de frente à nossa pousada, o Café Guará. Lá tem uma seleção de cafés de diferentes biomas brasileiros, todos deliciosos. Dá pra comprar o pó (moído na hora) pra fazer em casa, ou degustar um café (quente ou gelado) na cafeteria. Café gelado pode causar estranhamento, mas garanto que no calor de afundar a moleira do meu querido Nordeste, é uma experiência sublime.
Sem dúvida nenhuma o ponto alto dessa passagem por São Luís foi poder ter visitado o Quilombo da Liberdade, primeiro quilombo urbano do Brasil (certificado pela Fundação Cultural Palmares). Tive a imensa sorte de estar na cidade durante um roteiro cultural e gastronômico organizado por Paulo Borges, nascido e criado no quilombo, e pude visitar esse lugar de resistência e cultura.
Agora chega mais pra escutar essa. A vegana aqui, humilde que sou, mandou um mensagem pra Paulo explicando que não precisava nos contar entre as pessoas que comeriam durante a visita. Claro que eu imaginava que a comida oferecida seria de origem animal e não queria incomodar pedindo pra fazer algo diferente pra nós. “Terminando a visita, vamos procurar comida no mercado”, pensei. E quebrei a cara de melhor maneira possível! Paulo respondeu que a degustação incluída no roteiro era vegana porque o quilombo tinha a sorte de contar entre os seus moradores com um chef vegano premiado no Maranhão e no Brasil! Que coisa linda, né?
Na foto abaixo estou posando entre Paulo e o chef Gopa, que recebeu a gente na casa/restaurante dele. Na foto da direita, os pasteis de forno deliciosos que ele serviu pra gente, acompanhados de um suco fresquinho. Na minha lista de coisas importantes pra fazer nos próximos anos está voltar no restaurante dele e provar a “Moqueca da Horta”, o prato que fez ele ganhar o maior prêmio da gastronomia maranhense em 2018, com azeite de buriti, maxixe e quiabo. Um sonho!
E, provando que Maranhão também é Amazônia, adivinha o que o povo de lá ama comer? Açaí, obviamente. Só que no Maranhão, açaí é chamado de “juçara”. Calma, que essa história sempre causa confusão. Quando o pessoal do Maranhão fala “juçara”, estão falando do açaí, mesmo. O fruto do açaizeiro, a palmeira nativa da Amazônia, só que com um nome diferente. Não confundir com a juçara da Mata Atlântica, a outra palmeira famosa pelo palmito.
Seja chamada de açaí ou de juçara, a frutinha é consumida do mesmo modo no Maranhão: sem açúcar e com farinha de mandioca. Embora, assim como no resto do Brasil, está cada vez mais comum comer juçara/açaí entupida de leite de vaca e açúcar (leite condensado). Triste, triste.
Termino com uma descoberta que eu não teria feito sem a ajuda da minha amiga e pessoa maravilhosa Juliana Gomes. Assim que soube que eu estava no Maranhão ela me mandou uma mensagem perguntando se eu já tinha provado o abacaxi de Turiaçu e se ele era realmente o melhor abacaxi do mundo. Foi um momento de tapa na testa! Há dias eu vinha me extasiando com o abacaxi que eu estava comendo em São Luís, mas até então não tinha entendido a origem do fenômeno. Fica a foto do que, realmente, é o melhor abacaxi que já provei. Além de ser muito doce e de acidez bem mais baixa, ele é perfumadíssimo! Fiquei tão encantada que comi abacaxi de Turiaçu até o último momento! Na foto abaixo, à direita, dá pra ver que abacaxi (e um pouco de manga) foi minha última refeição no Maranhão, já dentro do avião que me levou de volta pra Natal.