Muitas, muitas luas atrás, quando esse blog ainda era um bebê de pouco mais de um ano, e que eu ainda usava o masculino como neutro, escrevi um post chamado “Vegano na estrada“, com dicas pra não passar fome durante viagens. Além das dicas, que ainda considero úteis, aquele post tem fotos de uma versão muito mais jovem e otimista da autora dessas linhas.

Não vim revisitar o post mencionado nem fazer uma versão atualizada das dicas. Vim falar do que a Sandra jovem e otimista evitou abordar naquele texto, porque ela não queria afastar as pessoas do veganismo, queria passar uma imagem positiva e convidativa em qualquer circunstância. Quase uma década e meia depois, não só parei de me importar com esse tipo de coisa, como meu pensamento se desenvolveu muito e hoje vejo restrições como: 1-inevitáveis, 2- um convite a repensar prioridades e 3-o ponto de partida pra uma reflexão muito mais profunda, que vai além da comida. Vou usar alguns exemplos de situações e refeições que fiz na viagem que fiz na Amazônia no final do ano passado, quando fiquei quase dois meses na estrada.
Nas duas fotos acima vemos refeições feitas “na estrada”, em lugares muito simples e que seriam considerados “sem opção vegana”. Não porque não tinha nenhuma comida de origem vegetal, mas porque são comidas vistas como “acompanhamentos” e se alimentar dessa categoria de alimentos é considerado pela maioria como uma refeição que não é “completa”.
A primeira foto é de um café da manhã em uma pousada numa cidade bem pequena, na zona onde o Nordeste se torna Amazônia. No buffet tinha três frutas (melão, mamão e banana), cuscuz (sem nenhum tipo de leite, só na água e sal), café e tapiocas recheadas com queijo e/ou ovo. Chamei a cozinheira e perguntei se ela podia fazer tapioca sem nada pra gente (Anne e eu) e ela fez, sem problemas. Num canto do restaurante da pousada, usado no buffet do almoço, vi que tinha uma garrafa de azeite. Perguntei se poderia usar o azeite na minha tapioca e isso também me foi concedido com um sorriso.
A foto acima, à direita, é de um almoço em uma churrascaria na beira da estrada, no caminho pra São Luís. Naquele momento nós já estávamos viajando há mais de um mês e foi a primeira vez que, em um restaurante self-service/no quilo, todos os feijões tinham animais ou derivados de animais dentro. Acho revoltante quando um restaurante tem um montão de opções de carnes animais e ainda assim enfia mais animais dentro do feijão. Mas tudo bem, ainda assim consegui um prato de alimento: macarrão no alho e óleo, arroz, beterraba e jerimum cozidos, salada de tomate com pepino, abacaxi e melão (Anne também comeu macaxeira frita, porque ela ama!).
Ouço vozes indignadas gritando “Cadê a proteína???” Sim, nos dois casos as refeições teriam sido mais nutritivas (e teriam me saciado por mais tempo) se tivesse uma aveia com leite de soja, ou um hummus pra passar na tapioca na primeira, e duas boas conchas de feijão na segunda. Mas ninguém se desintegra automaticamente depois de fazer uma refeição com muito mais carboidrato do que proteína, meu povo! Bora relaxar um pouco a obsessão com proteína, bora? Até porque poderia ser muito pior: você poderia não encontrar nada pra comer e ficar com fome.
E falando em ficar pior, tem, realmente, momentos mais difíceis quando a gente é vegana e está viajando de ônibus, trem e barco no interiozão desse território conhecido como Brasil.
A foto acima, à esquerda, foi de um almoço improvisado em uma universidade federal. A lanchonete só vendia salgados e sanduíches com animais. Tinha uma pessoa vendendo quentinhas na universidade, mas já com carne de animais misturada dentro da comida. Quando o estômago roncou e eu ainda precisava ficar mais um pouco ali, vi que a lanchonete também vendia bolacha do tipo água e sal de uma marca que eu sei que não usa ingredientes de origem animal. Comprei um pacote, que acompanhamos de suco de laranja natural. Isso está muito longe de ser um almoço equilibrado, ou até razoavelmente satisfatório. Mas enganou a fome por mais uma hora, o tempo que precisávamos pra sair dali e procurar um almoço de verdade em outro lugar.
Aí tem momentos que você não encontra nada pra comer. Um noite, ai chegar em uma pousadinha de beira de estrada, já bem tarde, o único lugar que ainda estava aberto (entregando comida) não tinha absolutamente nenhuma opção vegetal, nem sequer “veganizável” com alguns ajustes. Felizmente, essa vegana aqui sempre anda com comida na bolsa e antes de subir no ônibus que me levou até aquela cidadezinha, 24 horas antes, eu tinha comprado uma penca de bananas na rodoviária. Sim, fruta é comida e nos interiores do Brasil ainda é fácil encontrar frutas pra vender, principalmente próximo (às vezes dentro) das rodoviárias. Então nós, que já estávamos nos alimentando praticamente só de bananas, comemos as últimas bananas da penca e fomos dormir.
Por maior a frustração que os momentos acima tenham me causado, entendo que eles são acontecimentos pontuais, dentro de uma vida de fartura, onde não só nunca fui dormir de barriga vazia, como a maior parte das minhas refeições são extremamente saborosas e variadas. Mais uma vez, ninguém morre se jantar duas bananas uma vez na vida .
Termino com mais dois exemplos de como se virar na estrada, quando se tem uma prática vegana. A refeição à esquerda foi feita no barco que nos levou de Manaus pra Belém. O almoço servido a bordo era composto por feijão, arroz, macarrão e uma carne animal. Eu pedia sem animal e completava a refeição com uma banana (levei várias pencas na bagagem, pois a viagem durou 5 dias) e com uma mistura de gergelim e semente de girassol torrados, cebola e alho desidratados e um pouco de sal que fiz especialmente pra esse trecho da viagem. Coloquei num potinho e salpicava os meus almoços com esse mistura (inspirada no gersal da culinária macrobiótica), pra que eles ficassem mais nutritivos e saborosos. É uma maneira bem prática de melhorar refeições na estrada. Basta ter alguns elementos-chaves na bolsa (sementes, castanhas, frutas secas e/ou frescas) pra melhorar o ordinário.
Na última foto: abacaxi e manga, degustados no voo que marcou o fim da viagem e nos levou de volta pra Natal. Vou repetir: fruta também é comida. E pode ser um lanche completo, sem mais nada. Enquanto as passageiras ao meu redor comiam os biscoitos/bolachas distribuídas pela companhia aérea, junto com sucos de caixinha, eu me fartava com as delícias que a natureza nos oferta.
Sempre penso nas pessoas que dizem ter deixado de ser veganas porque viajam muito e “não tem opção vegana nas viagens”. Obviamente que essas pessoas, apesar de se alimentarem de vegetais, não o faziam por razões éticas. Eu não sei você, mas quando penso em todo o sofrimento que o complexo industrial especista – a indústria da exploração animal- causa nos animais, que são torturados e mortos aos milhões a cada dia, só no Brasil (sim, MILHÕES a cada dia!), fazer uma refeição aqui outra acolá que não seja ideal, e até jantar só uma banana, me parece um “sacrifício” bem pequeno pra não quebrar a minha solidariedade e passar do lado de dos que participam dessa injustiça tão cruel. Irrisório, até. Veja que não estou falando aqui de passar fome, simplesmente de aceitar que em certos contextos (viagens) a gente não vai encontrar uma opção vegana perfeita (gostosa, nutritiva, acessível) e que se contentar com algo mais simples faz parte da vida de uma vegana dentro de uma sociedade especista e capitalista. E esse é o cerne da questão.
Pra além de discutir a suposta dificuldade de ter uma prática vegana na estrada, estou cada vez mais convencida da importância de chamar a atenção das pessoas pra algo que não tem nada a ver com veganismo. A mentalidade capitalista nos condicionou a esperar ter tudo, o tempo todo, do jeito que a gente prefere, na hora que a gente quer. Por isso fazer uma refeição, ou algumas, que não sejam “ideias”, mesmo num contexto específico e de duração limitada (viagem), pode parecer como um sacrifício impensável. E talvez o veganismo, além de ser uma prática de solidariedade com outros animais, seja também uma oportunidade de ter atitudes mais maduras (leia: menos mimadas) com relação à comida. E, indo ainda mais longe, entender que é preciso aceitar ter menos, de vez em quando, pra que tenha suficiente pra todo mundo.
PS Se as bananas me salvaram da fome no Maranhão, foram as mangas (foto de abertura desse post) que me salvaram no Acre. Depois de quase um dia inteiro sem comida, cruzar com uma mangueira carregada foi uma fonte de alegria, além de calorias, pra todo um grupo de pessoas, das quais apenas duas eram veganas.