O lote que cultivamos coletivamente, nos Jardins Operários, está dando muita abobrinha no momento. Os pés de abobrinha que eu mesma plantei e que me foram presenteados por Maria, uma das operárias que cultivam aquela terra, pertinho do nosso lote. E, procurando novas maneiras de cozinhar abobrinha, decidi fazer essas panquecas um dia e foi um sucesso tão grande que agora pra todo lugar que vou, chego com elas embaixo do braço. Em duas semanas elas apareceram em pique-niques, reunião com o coletivo, jantar de comemoração nos jardins, jantar com as amigas aqui em casa e até levei pra reconfortar uma camarada no dia em que ela perdeu sua cadela velhinha.
A receita segue o mesmo princípio dessa “mini fritada de couve-flor”. Não duvido que seja possível utilizar essa base com uma infinidade de outros vegetais, mas a mistura de abobrinha com grão de bico me pareça perfeita. E o molho de tahina é um velho conhecido aqui do blog, mas dessa vez acrescentei coentro pra ficar ainda melhor. Se você odeia coentro, basta usar salsinha que também fica supimpa.
Panqueca salgada de abobrinha e grão de bico com molho de tahina e coentro
Abobrinhas variam muito de tamanho, então adapte a receita ao que você tiver em casa e/ou ao número de pessoas comendo. Como sempre, aqui vão os ingredientes e as instruções de preparo, mas sem as medidas. O importante é ter uma ideia da proporção de abobrinha e farinha de grão de bico, o resto é tempero e você decide o quanto quer usar. A mesma coisa é válida pro molho, que é opcional, mas altamente recomendado.
Abobrinha (italiana)
Farinha de grão de bico (bem fina)
Cebolinha
Sal e pimenta preta
Azeite ou óleo
Molho de tahina e coentro
Tahina (pasta de gergelim)
Suco de limão
Coentro ou salsinha
Alho (opcional)
Sal e pimenta preta
No dia anterior misture a farinha de grão de bico com um pouco de água, aos poucos, mexendo bem com uma colher pra ficar homogêneo e sem carocinhos. A textura deve ser bem espessa, pois no dia seguinte você vai acrescentar a abobrinha e ela traz muito líquido à mistura. É importante fazer isso na véspera de quando quiser comer as panquecas, pois a farinha de grão de bico fica muito mais saborosa, e cozinha melhor, se for hidratada por 12 horas antes de ir pra frigideira. Eu vou além e deixo minha massa fermentar um pouco, como dá pra ver na foto abaixo, à esquerda (fermentação natural, só colocar em um local quentinho da cozinha que numa noite começa a fermentar).
Depois da noite de descanso (no dia seguinte), rale a abobrinha, com casca e sementes, no ralo grosso. Salgue e deixe descansar 5 minutos pra liberar um pouco do líquido do vegetal. Enquanto isso corte miúdo um pouco de cebolinha, a parte branca e a verde. Depois coloque a abobrinha ralada numa peneira e use a palma da mão pra espremer a abobrinha contra a peneira. Não precisa espremer muito, basta retirar um pouco da água. Misture a abobrinha ralada/espremida com a massa de farinha de grão de bico que estava repousando. O ideal é usar o dobro de volume de abobrinha – depois de espremida- em comparação ao volume de massa de grão de bico. Acrescente a cebolinha cortada, um pouco de sal e tempere com pimenta preta. Prove pra ver se precisa corrigir o sal.
Aqueça um pouco de azeite/óleo em uma frigideira anti-aderente e despeje colheradas da mistura. Pra cozinhar direito e virar com facilidade, não faça panquecas grandes: uma colher de sopa bem cheia por panqueca é ideal. Tampe (minha frigideira não tem tampa, então cubro com outra frigideira) e deixe cozinhar em fogo baixo até as bordas ficarem douradas. Destampe a frigideira e use uma espátula pra virar os bolinhos. Deixe cozinhar do outro lado, dessa vez sem cobrir. Quando estiver dourado dos dois lados, está pronto. Repita a operação com o resto da mistura. Deixe amornar antes de servir, pra textura firmar um pouco dentro do bolinho.
(Eu gosto de ir colocando as panquecas prontas dentro de uma travessa de vidro, umas em cima das outras, e tampada. Assim o vapor criado dentro do recipiente continua cozinhando levemente as panquecas, deixando tudo bem macio, e ao mesmo tempo elas amornam o suficiente pra ficar na textura perfeita, sem ficarem fria. Mas mesmo frias, são deliciosas.)
Se estiver servindo com o molho de tahina, aqui vão as instruções de preparo. Misture a tahina com um pouco de suco de limão e mexa bem. Vá acrescentando água aos pouquinhos, mexendo bem, até atingir a textura de um creme fluido. Junte alho (pilado ou ralado – a gosto), se estiver usando, tempere com sal e pimenta preta. Prove e decida se precisa de mais limão ou mais sal. Ficou líquido demais? Junte mais tahina. Ácido demais? Junte mais tahina e mais água. E assim por diante. Use seu paladar pra te guiar, basta respeitar a textura: cremosa e fluida. Pique um punhado de coentro (ou salsinha) bem miúdo e misture ao molho. Sirva com os bolinhos.
Esse molho pode acompanhar uma infinidade de coisas. Pode inclusive ser degustado simplesmente com pão.
Mês passado fiz um post que chamei de “o melhor de maio” e disse que talvez virasse uma tradição mensal nesse blog. Redes sociais acostumaram o pessoal a ver tudo que todo mundo faz (e pensa) em tempo real. Embora eu não queira mais isso pra minha vida, compartilhar momentos do meu dia-a-dia uma vez por mês é uma maneira de trazer as pessoas que leem o blog mais pra perto do meu cotidiano, mas de maneira menos invasiva (pra mim). Estou atrasada pra falar do mês passado, mas bora lá. Fazer um diário visual de um mês inteiro renderia um post longo demais e nem tudo que faço, eu desejo compartilhar. Então aqui estão alguns momentos (escolhidos) que vivi em junho.
Junho é o mês da transição entre primavera e verão e as flores, principalmente as rosas, causaram uma explosão de cores nos jardins (o daqui de casa e os Jardins Operários).
Anne voltou da Palestina, onde ela esteve trabalhando por um mês, e trouxe presentes das minhas amigas que moram lá. Melado de romã, feito por Dragiša e essa bolsinha zapatista, enviada por Tati.
As cerejeiras dos jardins operários estavam carregadas, mas esse ano não foi um bom ano pra cerejas, e muitas apodreceram no pé. Mas um belo dia de junho, um coletivo amigo conseguiu uma quantidade imensa de cereja (orgânica) de descarte e voltei pra casa com uma caixa cheia dessa preciosidade. Cerejas são uma das frutas que você só consegue comprar na estação e são bem caras. É fruta de gente rica, por isso não compro quase nunca. Então aquela caixa era um tesouro pra mim. Fartura. Agora é esperar até o ano que vem pra comer cereja novamente.
Degustei, feliz da vida, as favas que plantamos no quintal. Adoro fava e esse ano descobri, graças à uma amiga que também tem uma horta nos Jardins Operários, que quando elas são bem jovens dá pra comer com casca e tudo, sem debulhar, como uma vagem. Aqui fiz um macarrão com molho de urtiga e favas frescas, mais salsinha. E uma salada de folhas de beterraba, alface e dente de leão. Tudo, com excessão do macarrão, veio da nossa horta.
Também foi o mês das framboesas. No lote que o nosso coletivo cultiva nos jardins operários tem vários pés. Nunca comi framboesas tão deliciosas, e tão grandes, na minha vida. Comi até no café da manhã, em cima da aveia dormida (mais amêndoas de cacau e castanha do Pará, que trouxe do Brasil).
A okupa que nos servia de base foi fechada e foi um momento triste pra todos os coletivos do território, pois era um lugar estratégico pra organizar as lutas aqui. Mas a gente sabe que ocupações são efêmeras e essa conseguiu sobreviver por três anos, o que é um milagre. Felizmente, as pessoas dessa okupa já encontraram outro imóvel pra fazer uma nova ocupação e passamos o mês inteiro fazendo a mudança (todos os coletivos ajudaram). Puxei, pela primeira vez, uma carrocinha na bicicleta, pra ir buscar comida de descarte pro pessoal de lá. Preciso dizer que caí no primeiro dia. Mas no segundo consegui fazer a viagem sem problemas, apesar da carga ser ainda mais pesada do que no dia anterior. Quando a gente diz que a militância é uma escola, acho que muita gente não imagina a imensa variedade de coisas que aprendemos nela.
Tomamos café da manhã todos os dias no jardim e isso, pra mim, é a definição de luxo.
Descobri que a borragem é rosa quando desabrocha, mas em poucas horas ela fica azul. (Observar o jardim e a horta são minhas atividades preferidas no momento.) Plantamos várias borragens na horta dos tomates porque as abelhas amam essa flor. E a gente ama as abelhas. Sabia que a borragem é comestível e tem um leve sabor iodado que algumas pessoas acham parecido com ostra? Não posso confirmar, nunca comi ostra na vida, mas adoro o sabor dessa flor. Só não como tudo na salada porque elas são mais importantes pras abelhas do que pra mim.
Pelo segundo ano consecutivo organizamos uma festa pras crianças do CoHab onde fazemos, todo domingo, atividades de educação popular. Levamos um forno de pizza (emprestado) pra lá e cada criança pode fazer sua pizza com a massa, molho e legumes que tínhamos preparado. Como nosso coletivo se comprometeu com a luta antiespecista, toda a comida que preparamos/oferecemos é vegetal. Talvez surpreenda algumas pessoas me lendo, mas nenhuma criança estranhou a falta de produtos de origem animal e, mais uma vez, as pizzas foram um grande sucesso. Foi um dia inteiro de trabalho, sem contar o trabalho na semana anterior pra preparar a festa, que também teve muitas atividades lúdicas, e muitos braços pra acompanhar as crianças no preparo de 40 pizzas, além de cuidar do forno. Mas como esses momentos de partilha com a nossa comunidade são preciosos! A luta não é só uma lista de tarefas e sacrifícios: ela também oferece alguns dos momentos de maior alegria da minha vida.
Quando você abre a câmera do celular e está em modo selfie 🙂
Umo, um dos habitantes da nossa casa, resolveu voltar. Ele decidiu sair de casa há uns três anos, e passou a morar na rua e a nos visitar somente de vez em quando. Mas parece que ele cansou da vida itinerante, pois umas semanas atrás ele se instalou no minúsculo jardim na frente da casa. Ele se recusa a entrar em casa, porque não se entende com os outros gatos moradores daqui, mas a gente coloca água e comida pra ele lá fora e pelo menos uma vez por dia saímos pra dar carinho pra ele. Apesar de preferir a liberdade da rua e de ter se emancipado das humanas que viviam com ele, Umo adora carinho e ainda pede nossa companhia de vez em quando.
Esse mês também levei várias turmas de crianças de dois jardins de infância do bairro pra visitas as hortas dos Jardins Operários. Guiar turmas de escola nos jardins é uma das minhas tarefas no Coletivo de Defesa dos Jardins. É uma delícia ver as crianças se maravilharem diante das flores, das borboletas e descobrirem os legumes crescendo nos pés. Aproveito pra conversar com as crianças sobre comida vegetal e até provamos algumas coisas pelo caminho.
Mais pro final do mês aconteceu um encontro militante no interior da França, organizado pelo nosso coletivo de solidariedade popular. Convidamos alguns coletivos de outros territórios e foram 3 dias de muita troca e banho de rio. Eu organizei uma oficina chamada: “O lugar do antiespecismo nas nossas lutas” e fiquei muito feliz em ver a quantidade de pessoa que participou. Foi o primeiro encontro inter-coletivos que organizamos depois de termos decidido colocar a luta antiespecista na nossa declaração de princípios e, pela primeira vez, a comida foi totalmente vegetal e só recebemos elogios.
Mas teve um problema. Um problema de 14kg. Preparamos uma parte da comida antes de pegar a estrada, no dia anterior, e todo o hummus que eu tinha preparado fermentou. Sete potes de 2kg cada, ou seja, 14kg de hummus!!! Eu cheirei e provei tudo e decidi que dava pra comer um dos potes que tinha fermentado menos que os outros. Fomos na fé e todo mundo sobreviveu sem nem mesmo uma dor de barriga. Infelizmente tivemos que jogar o resto fora e isso me partiu o coração.
Na volta pra minha periferia, no norte de Paris, fui cuidar da horta. Os pés de favas estavam secando (todas as favas tinhas sido comidas por nós). Arranquei tudo, agradeci pela comida oferecida e pelo nitrogênio que elas levaram pra terra, que vai beneficiar todas as outras plantas que crescem ali e coloquei na composteira. Ali os pés de favas vão virar terra novamente e o ciclo se fechará. Olha que coisa mais linda as raízes das leguminosas. Repare nesses pequenos nódulos. São ali que elas hospedam as bactérias que capturam o nitrogênio (N2) do ar e o converte em uma forma utilizável pelas plantas. Por isso leguminosas são o verdadeiro adubo verde. Eu fico abestalhada diante da sofisticação e tecnologia das plantas.
O primeiro tomate brotou. Ainda vai demorar semanas pra gente poder comer tomates maduros e esperar pacientemente por esse momento só contribui pra que eles sejam ainda mais saborosos pra mim.
O lote do nosso coletivo está cada dia mais luxuriante. Plantamos tomate, abobrinha, couve, berinjela, manjericão, alecrim, cebolinha e azedinha. Tem também um pé de damasco (a safra foi curta e já comemos todos) e uma cerejeira jovem. A primeira abobrinha foi colhida (e comida) e outras já vieram depois. Cultivar a terra com camaradas me enche tanto de felicidade que nem consigo colocar em palavras. E cultivar a terra com as crianças dos camaradas, que estão sempre por ali se maravilhando com os bichinhos que moram naquela terra ou procurando framboesas pra comer, é gostoso demais.
Fiz meu primeiro arranjo floral, com flores do lote, pra receber uma grande amiga de 80 anos que veio jantar com a gente. De sobremesa, fiz o creme-mousse de chocolate branco, gergelim e missô que criei no ano passado e que é um sucesso total. Parece absurdo, mas é absurdamente bom. Servi com as framboesas dos Jardins Operários e minha amiga ficou encantada.
Fiz seis bolos num dia, pras atividades de educação popular com as crianças (no CoHab) e pro almoço com jardineiras e jardineiros dos Jardins operários. Das tarefas da militância, cozinhar é uma das que faço com mais frequência. O almoço nos jardins teve churrasco, mas teve também uma abundância de pratos vegetais. Nem uma jardineira é vegetariana, muito menos vegana, mas vários trouxeram contribuições vegetais pra compartilhar com todo mundo. Quase beijo o jardineiro português que fez esse feijão fradinho, que estava uma delícia.
Apareceu o primeiro jerimum do quintal. Esse pé cresceu sozinho (não foi semeado) e está se espalhando pelo quintal inteiro. Aliás, impressionada com a proeza e abundância desse pé de jerimum, fui pesquisar pra saber se as folhas eram comestíveis. São! Comi, pela primeira vez na vida, folha de jerimum refogada e adorei. A generosidade da natureza…
Rolou um date de rompimento definitivo de namoro. É conceito. E a comida estava ótima. Mas, falando sério, acho importante celebrar finais tanto quanto celebrar começos.
Falando em ex namorada, a newsletter desse mês foi sobre isso. Mais especificamente, sobre ter uma ex mítica (quase todo mundo tem). A minha é aquela das alcachofras. Envio uma newsletter mensal falando de amor, em sua imensa pluralidade e com narrativas que vão contra a visão uniformizada que nos é imposta culturalmente, pra agradecer quem apoia financeiramente o meu trabalho.
Eu tenho alguns problemas de saúde que são aliviados quando faço musculação e esse mês encontrei uma academia perto de casa e bem baratinha. Sempre gostei de musculação, porque além de aliviar minhas dores, aumentar minha força física faz bem pra minha autoestima, e estou feliz por ter voltado a puxar ferro.
E pra terminar, os jardins operários em toda a sua glória no crepúsculo do final de junho.
Quando eu estive em Belém, em novembro passado, tive a honra de ser convidada pra tomar um tacacá na casa de Larissa e Maria. Assim como Michelle, que entrevistei aqui, Larissa (que todo mundo chama de “Lara”), é uma companheira do coletivo antiespecista VEM. Maria, também vegana, é a mãe dela. Passei uma tarde na casa delas, entre bonecas de Ângela Davis e Paulo Freire feitas por elas, tomando tacacá e conversando. Aproveitei pra entrevistar as duas, porque elas têm uma história com o veganismo que começou de uma maneira diferente de todas as outras pessoas que entrevistei aqui no blog até hoje. E porque elas disseram coisas que me tocaram profundamente e que eu levo pra vida e pra luta.
Podem se apresentar?
Larissa – Larissa Pontes, socióloga, um tanto artista das manualidades. Nortista meio manauara, meio belenense. Militante por um veganismo popular e integrante do coletivo VEM.
Maria – Maria Melo, paraense, artesã, vegana mãe de vegana.
Como vocês chegaram no veganismo?
Larissa – Eu sempre tive vontade de conhecer, pela questão animal. Eu já tinha alguma ideia a respeito, mas não sabia exatamente como fazer. Até que a minha mãe desenvolveu uma doença autoimune e começou a ter crises sérias. A primeira coisa que eu fiz pra tentar ajuda-la foi pesquisar sobre o impacto da alimentação na saúde. Parece estranho dizer que eu encontrei uma oportunidade pra me tornar vegana, mas foi a conjuntura perfeita pra eu chegar pra ela e dizer: “Olha mãe, eu acho que a gente pode unir uma coisa à outra. A gente consegue ter uma alimentação mais ética com os animais e ao mesmo tempo vai melhorar a tua situação de saúde.”
Maria – Eu fiz um exame de colonoscopia antes de fazer a transição pra vegetariana e ali foi detectado pólipos no meu intestino. Já estava num processo inflamatório bem alto. Algumas pessoas olham pra isso e falam: “Faz parte do processo de envelhecimento”. É verdade, mas você pode melhorar o seu processo de envelhecimento. Eu fiz o exame alguns anos depois de ter me tornado vegana e não apareceu mais nenhum pólipo. Tenho certeza que a mudança na alimentação contribuiu com isso. Tem zero chance de voltar? Não sei, só sei que por enquanto está tudo na paz.
Larissa – A gente tirou primeiro a carne, depois carne de frango e por último fizemos a despedida do peixe. A gente já estava sem comer peixe há um tempo quando fomos passar o fim do ano na praia, em Salinas. Aí vimos um pescador e a mãe disse: “Ai, eu queria tanto comer peixe!”. Ela foi buscar o peixe lá, junto com o pescador, mas eu já não consegui comer. Ela comeu e depois disse: “É, pra mim também não dá mais. Tá diferente.”
Diferente como?
Maria – Foi como se eu tivesse comendo uma coisa que não fosse comida. Não era mais comida. E olha que o bichinho tinha sido pescado ali, estava fresquinho, não era da indústria, não era congelado, era do pescador que morava ali na beira da praia. Imaginei que ia me dar um prazerzão. E foi três vezes pior quando tentei comer ovo novamente.
Larissa: Por que ovo é o que? É pitiú.
(Aprendi essa palavra maravilhosa quando estive em Belém. “Pitiú” é, pra paraense, o que “catinga” é pra norte-rio-grandense: fedor, mal-cheiro.)
Maria – No início do veganismo eu tinha umas preocupações, achava que podia não estar me nutrindo bem. Então decidi comer um pouco de ovo. A gente tem amigos que tem sítio, tem ovos de galinha ‘feliz’. O ovo veio pra mesa, ovo caipira… Tentei comer e não deu certo mais, não teve condição. E não é porque tenho nojo, não.
Larissa – Aí eu falei pra ela : “É simples, vamos pro nutrólogo e vamos fazer exames com certa frequência.” No começo a gente fez exames de 6 em 6 meses, porque ela estava com medo de ter alguma carência. Depois de um tempo a gente passou a fazer exames uma vez por ano. Todos os médicos olhavam os resultados dos exames e perguntavam se a gente realmente não estava comendo carne. Não conseguiam acreditar que era possível.
Maria – A gente está mostrando que é possível. A gente faz reposição de B12, claro, e reposição de vitamina D, mas eu vejo que todo mundo, incluindo o povo que come carne, faz reposição também.
Larissa – Às vezes eu fico pensando… Se a gente teve que enriquecer a farinha de trigo com ferro e ácidofólico, por que não pode ter uma farinha, um alimento, enriquecido com B12?
(Quando a farinha de trigo passou a ser enriquecida com ácido fólico, não foi visando a população vegetariana/vegana, foi pra atender as necessidades das pessoas que comem carne, mas não comem vegetais suficiente. E vale lembrar que o sal é enriquecido em iodo.)
O que é veganismo pra vocês?
Maria – Eu não vou negar que no início não foi a questão animal que me fez abraçar o veganismo, apesar deu amar os animais. Foi uma questão de saúde. Eu estava num estado de sofrimento muito grande, por causa da doença autoimune, estava inchada e tendo que começar tratamentos mais agressivos. Fui pra uma consulta médica e naquele dia o meu médico estava muito triste porque tinha perdido uma paciente muito jovem por causa de um problema hepático, consequência do uso de corticoide. O corticoide detonou o fígado e o pâncreas dela. Aí eu fiquei olhando aquilo e falei: “Eu não quero isso pra mim”. Eu sei que um dia vou morrer, como todo mundo, mas até lá vou me esforçar pra viver. E pra viver bem. Então o veganismo foi uma porta, apresentada pela minha filha, que se abriu pra mim e me deu a possiblidade de estar aqui hoje, me sentindo bem, ao invés de estar deitada numa cama, com dor, inchada.
Larissa – Pra mim o veganismo é algo plural. É uma maneira de imaginar um horizonte diferente, onde os animais não são mais vistos como inferiores, nem como mercadoria. É ampliar a nossa visão e entender que a gente partilha esse planeta com outros seres vivos, além dos humanos. É solidariedade. E aí eu fui descobrindo mais coisas no caminho, fui aprofundando a minha consciência. E abriram-se muitas possibilidades de encontrar companheiros de luta, amigos. E eu pude ver a saúde da minha mãe melhorar. Então pra mim, o veganismo representa certas coisas muito pessoais e outras mais amplas.
Veganismo é a vontade de transformar o mundo pra melhor. Porque está insustentável! E ninguém se responsabiliza por isso! Se está insustentável, a gente precisa construir algo sustentável, um lugar onde não só humanos possam viver. Pode ser que a gente não veja tudo se acabando durante a nossa vida, mas tem muita gente por vir. Então veganismo também é solidariedade com as gerações que virão.
Pique-nique do coletivo VEM
É difícil ser vegana?
Maria – É maravilhoso alguém chegar pra você, com todo o carinho, fazer uma proposta de qualidade de vida melhor e você ter força pra abraçar. Não estou dizendo que é fácil fazer mudanças na sua alimentação depois de décadas com aquela rotina (com produtos animais). Mas é gostoso também! Você descobre que o que parecia ser um sacrifício passou a ser um prazer, uma satisfação. Você tem N possibilidades alimentares com aqueles ingredientes que antes eram olhados como enfeites no prato.
A manutenção do meu veganismo se dá por vários caminhos. Pela saúde, sim, mas também pelo caminho da delícia. A gente tem uma comida muito gostosa! Eu não sinto falta de nada parecido com carne, nada que lembre carne, nada com formato daquilo… Eu gosto das nossas comidas, gosto da beleza delas, do colorido. As pessoas tem uma ideia muito equivocada do que é a alimentação vegana. Você tem que interagir com o alimento: ele conversa com você e você conversa com ele. Quanto mais tempero natural você colocar, mais gostosa vai ficar a sua comida. Se você cozinhar só no vapor e não colocar um azeite, um salzinho, você vai olhar aquela batata e não vai dar vontade de comer.
(Eu disse que a mesma coisa era válida sobre a culinária carnista. Pegar um pedaço de músculo de vaca ou um frango e cozinhar na água, sem tempero, não va ser gostoso. Maria respondeu que a galera do churrasco sempre vem com o argumento de que se for carne, “passou sal, botou na brasa, tá bom!” Aí Larissa lembrou que isso também é verdade no caso de vegetais. Afinal é o calor intenso e o defumado do fogo que conferem aquele sabor característico e tão apreciado. E concluiu dizendo: “Não precisa fazer nada pra uma fruta ficar gostosa. Você pega uma manga e ela é perfeita. Nossa comida já vem pronta.”)
Junto com o veganismo a gente fez uma transição muito bacana que foi abrir mão, no máximo possível, do industrializado, do ultraprocessado. Não somos as veganas que compram não sei que produto ultraprocessado do futuro, do passado ou do presente, sei lá como é que chama esse negócio. Nem vamos usar glutamato monossódico como tempero. Tem sabores maravilhosos nas nossas folhas, nos nossos limões, tem vinagre de maçã, tem tanta coisa boa pra temperar a comida! Também tento comprar do pequeno produtor, do pequeno fabricante, daquela pessoa que está se esforçando pra sustentar a família. Lara tem uns amigos que fazem linguiça artesanal e é tudo de bom. A família toda é vegana.
Larissa – Essa coisa da dificuldade, eu vejo assim. Antes de se tornar vegana a gente estava nadando no sentido da corrente, estava ali com todo mundo, fazendo a mesma coisa. Aí a gente se torna vegana e a sensação que dá é que a gente passa a nadar ao contrário. Porque tudo vem contra a nossa decisão. Vão aparecer muitas dificuldades sociais e as pessoas vão dizer que tu não come nada. Mas, eu como, sim! Posso inclusive compartilhar a minha comida. Mas tem essas dificuldades no comecinho.
Mas por que eu sou vegana? Tem gente que acha que não é importante ser vegana porque uma pessoa sozinha não faz diferença. Mas eu sei que eu não sou só uma. Eu quero que a pessoa que está pensando em ser vegana e acha que está sozinha olhe pro coletivo, pra essa ruma de gente que está se juntando, e diga “eu também não sou só uma”. O veganismo é um boicote, mas ao mesmo tempo a gente está dizendo pro mundo que dá pra viver de outra maneira. Acho que é uma ferramenta de reeducação. Quando a gente vive de outra maneira, a gente está dizendo: “Olha aqui, é possível!” Mas vivo isso com zero sentimento de superioridade. Não penso: “Nossa, como eu sou evoluída!”. Sou só o exemplo de uma coisa diferente, e as pessoas ao meu redor podem ver isso e se interessar. É assim que mudanças acontecem. É assim que a gente vai construindo coisas melhores.
Como é que a gente destrói o especismo?
Maria – Um dia eu escutei uma fala do pastor Ricardo que fez muito sentido pra mim. Ele disse: “O mal é extremamente audacioso e o bem é tímido.” Então eu acho que o caminho pra combater o especismo é esse: ser audacioso. A gente tem que ser audacioso e se juntar com quem é audacioso pra formar uma audácia maior ainda!
Quando a gente chega em algum lugar e as pessoas reagem de maneira negativa ao nosso veganismo, quando dizem: “Você não come nada!”, eu respondo: “Eu como, sim, você que não tem pra me oferecer. Se você me convidou, deveria ter se preparado melhor porque uma boa anfitriã recebe bem um e outro.” A gente tem que ser mais afrontosa e mostrar que estamos aqui pra ficar. Às vezes ouço comentários como: “Ah, você pode ser vegana porque tem condição, porque pode escolher.” Justamente! Aí falam: “Mas e se você estiver na floresta, no meio do mato?” Aí é que eu vou me dar bem! “E se estiver com uma vaca, no meio de uma ilha deserta?” Quais são as chances deu ir parar numa ilha deserta com uma galinha ou com uma vaca? Tem quem diga: “Não vou falar (sobre veganismo) porque não quero deixar as pessoas desconfortáveis.” Eu quero! Quero incomodar, quero desajustar a situação!
Larissa – Se a gente quer romper com esse sistema especista, se a gente quer romper com o capitalismo, não vai ser sem audácia.
Maria – Então eu acho que é dessa forma que a gente vai colaborar pra destruir o especismo. Precisamos nos juntar com quem pensa assim e formar esse grande bom combate.
Larissa – É um trabalho de formiguinha. A gente destrói o especismo aos poucos, mas ao mesmo tempo sem cessar, sem desistir. Convencendo mais pessoas de que o nosso sistema de produção é insustentável. Que a maneira como nos relacionamos com a natureza, e com os seres que partilham o mundo com a gente, é insustentável. A gente tem que buscar possibilidades pra fazer crescer o veganismo. Tem uma oportunidade na educação? Surgiu uma oportunidade ali, numa política pública? Quando a gente vê, de repente, o debate antiespecista não é mais invisível, não existe apenas dentro do nosso grupo. Se torna um rio, correndo pra todos os lados.
Como falar da luta antiespecista com a esquerda?
Larissa – Essa é uma das perguntas mais difíceis. A gente tem um grande amigo de esquerda, super politizado, que trabalha na base, viajando esse estado todinho politizando as pessoas, mas que se recusa firmemente a aceitar a importância do veganismo. E ele tem problemas de saúde, uma mudança de alimentação faria tanto bem pra ele. Ele come a nossa comida e gosta, mas sempre faz piadas depois. Hoje a gente já não responde mais, pra não perder a amizade. Mas é uma situação muito difícil.
Maria – Tem duas situações bastante mal resolvidas na minha cabeça e ainda não encontrei respostas pra elas. A primeira é a questão dos grupos de pessoas com doenças autoimunes dos quais faço parte. Elas não se interessam em aprender sobre alimentação vegana. Tem gente que posta todo tipo de tratamento irresponsável. Já me perguntaram por que não conto a minha história nas redes, mas não sei… As pessoas que consomem corticoides, por causa dessas doenças, acham que tomando esses remédios podem comer carne e vai ficar tudo bem. Não é verdade. Eu estava tomando uma carga pesada de corticoides antes de me tornar vegana e um dia comi um filé e tive uma crise séria, inchei muito. E que pensamento é esse, né? Preferir se encher de corticoide do que parar de comer carne. Não faz sentido.
E a outra situação difícil que eu vivo é dentro dos grupos de prática da solidariedade, que distribuem refeições pra pessoas em situação de rua e famílias carentes. Todo mês a gente faz uma lista com os alimentos necessários pra preparar as refeições e sempre pedem muita linguiça, charque, salsicha, muito embutido. Eu falei: “Trocando essas carnes por legumes a gente consegue oferecer duas refeições por semana, ao invés de uma, com o mesmo valor que gastamos por mês. E ainda melhoraria a qualidade das refeições.” Me responderam que as pessoas iriam estranhar uma comida sem carne, que pensariam: “Eles comem carne, mas não querem nos dar.” Eu fico sem saber o que fazer. O dinheiro ia render mais, alimentar mais pessoas e alimentar melhor…
Larissa – A maneira como eu costumo falar sobre veganismo pra pessoas de esquerda é tentar mostrar que as opressões não ficam pedindo licença uma pra outra pra oprimir. “Ei, agora eu vou oprimir esse grupo aqui, então tu para. Fica quieta no teu canto que agora é a minha vez de oprimir! Vai pro final da fila e espera!” As opressões agem todas ao mesmo tempo. Elas estão batendo junto na gente há muito tempo, então como é que a gente vai bater de volta separado? Nunca encontrei alguém que conseguisse argumentar a favor desse ideia de deixar uma luta pra depois, enquanto focalizamos nas outras, então logo a pessoa leva pro individual e diz: “Mas é difícil ser vegana!” Ou então solta o token do indígena que caça. Eles caçam, certo, mas não são os indígenas que estão causando a ruptura na natureza. Nosso inimigo é outro.
Depois da entrevista fomos tomar o tacacá preparado por elas. Eu estava saltitante com a oportunidade de degustar algo tão emblemático da culinária paraense, mas não sabia bem o que esperar desse prato. Que negócio bom! Tacacá geralmente é servido com camarão, mas não faz falta. Larissa e Maria, além de pessoas lindas, são ótimas cozinheiras e saí da casa delas com vontade de voltar muitas vezes. Ser vizinha delas se tornou um dos meus objetivos na vida. Quero ser amiga, claro, mas amiga E vizinha. Quero essas duas do meu lado na luta, e na mesa. Como decidi visitar Belém novamente no ano que vem, dias atrás mandei uma mensagem pra Larissa dizendo: “Pode ir esquentando o tacacá que eu tô chegando!”. E ela respondeu: “Vou esquentando o tacacá e guardando muruci pra gente fazer nosso queijo.” Porque Larissa e eu temos um projeto de queijo verdadeiramente decolonial que vai ser sucesso. Aguardem.
Sei que a última receita que postei nesse blog foi uma torta, mas essa aqui não tem nada a ver com aquela lá. E, sendo bem sincera, a verdadeira receita é a cebola caramelizada. Ela dá uma torta saborosa e elegante? Sim, mas se quiser fazer só a cebola e usar como condimento ou pasta pra comer com pão, tens todo o meu apoio. Mais que apoio, incentivo! Tanto que vou parar esse texto por aqui pra você ir direto à receita.
Torta de cebola caramelizada com vinagre e figo (ou passas)
Você pode usar essa cebola caramelizada pra uma infinidade de coisas. Pra rechear uma torta salgada, como fiz aqui (use essa massa ou a que preferir). Como parte de um sanduíche ou pizza. Pra rechear uma empada ou pastel de forno. Ou simplesmente pra passar no pão (como um chutney). Se você tiver a sorte de ter queijo de castanha de caju por perto, os dois casam lindamente. Vou dar as medidas pra fazer recheio suficiente pra uma torta, mas use como um guia pra te dar uma ideia das proporções e adapte pra quantidade que você quiser fazer.
4-5 cebolas médias (brancas)
3 figos desidratados (ou um punhadinho de uva-passa)
3 colheres de sopa de azeite
1 colher de sopa de vinagre balsâmico (se não tiver, use de vinho)
Um punhadinho de alecrim fresco (ou uma pitada generosa de alecrim seco)
Sal e pimenta preta
Pra massa:
1 caneca de farinha de trigo (200g)
5 colheres de sopa de azeite
6 colheres de sopa de água (leite de soja – sem açúcar- deixa a massa ainda melhor)
Sal
Corte as cebolas ao meio, depois corte cada metade em fatias. Aqueça o azeite em uma panela média e de fundo espesso. Cozinhe a cebola em fogo médio (coberta) até começar a dourar, depois baixe o fogo e cozinhe, sempre coberto, até a cebola começar a caramelizar. Mexa de vez em quando, usando uma colher de pau, pra que tudo cozinhe de maneira uniforme. O açúcar natural das cebolas vai ser liberado aos poucos, fazendo com que elas fiquem macias, doces e escureçam um pouco. Seja paciente: o processo de caramelização vai levar de meia hora a 40 minutos e quanto mais baixo o fogo, melhor (assim a caramelização vai acontecer sem que algumas cebolas queimem no processo). Junte o vinagre (a acidez é importante pra quebrar o doce e realçar o sabor aqui) e os figos secos picados (ou as passas) e deixe cozinhar até o vinagre evaporar. As cebolas estão prontas quando estiverem como na foto abaixo (essa é a torta antes de ir pro forno. As cebolas vão terminar o bronze lá dentro). Desligue o fogo, acrescente o alecrim e tempere com sal e pimenta preta.
Enquanto as cebolas cozinham, prepare a massa. Misture todos os ingredientes com as mãos, até formar uma bola coesa e elástica. Obs: dá pra inverter as proporções de azeite e água (ou leite de soja) pra deixar a massa mais amanteigada e menos elástica. Questão de preferência pessoa. Deixe descansar alguns minutos (fica mais fácil abrir a massa quando ela está relaxada) antes de espalhar numa forma (ou placa). Quando lembro, cubro a forma com um pedaço de papel manteiga (sai mais fácil depois) e abro a massa com as mão, mesmo, mas nada te impede de usar um rolo. A massa deve ficar fina pra assar direitinho (medi aqui em casa: ela tem que ficar com 26 cm de diâmetro – o tamanho do fundo de uma forma de quiche aqui- pra ficar na espessura ideal).
Espalhe as cebolas caramelizadas sobre a massa, deixando um dedo de borda descoberta, e leve ao forno médio (180 graus), pré-aquecido ou não (às vezes esqueço de pré-aquecer e dá certo do mesmo jeito). Quando as bordas estiverem bem douradas (como na foto abaixo), tá pronta. Deixe esfriar um pouco antes de servir. Rende 4 pedaços/porções.
Dicas:
-Coloque umas azeitonas pretas na sua torta, depois que sair do forno, pra deixá-la ainda mais especial. Azeitonas pretas e uma pitada de algas em flocos (ou uma folha de nori picada), então, e vira comida de festa.
-Se gostar de mostarda de Dijon, espalhe uma fina camada na massa crua, antes de colocar as cebolas.
-Como eu disse, essas cebolas são uma delícia só com pão, então se quiser fazer só o recheio, vá em frente. Guarde em um pote de vidro com tampa e coloque na geladeira. Dura vários dias.
Versão com azeitonas pretas (eu tava distraída e deu uma queimada, ops)
Há anos eu procurava uma receita de torta salgada que reunisse todos os critérios que fazem, na minha opinião, uma boa torta salgada. Não gosto de tortas que são secas ou com muita farinha de trigo (as “pizzas de liquidificador” da minha infância eram assim). Queria uma torta suculenta e com muito mais legume do que farinha, mas que ao mesmo tempo pudesse ser cortada em pedacinhos bonitos e servida em ocasiões festivas (ou como tira gosto no meu boteco imaginário).
Tive o prazer de provar algumas tortas assim feitas por duas mulheres veganas do meu Nordeste (um cheiro pra Natália, de Fortaleza, e outro pra Bia, de Salvador). Mas quem disse que eu tenho a receita delas? Natália até me deu, anos atrás, a receita da torta com lentilhas que ela faz, mas eu perdi. E quando pedi a receita de Bia, ela respondeu que tinha feito no olhômetro, com o que tinha achado na cozinha naquele dia. Então tive que inventar minha própria receita.
Mas preciso dizer que não iniciei essa empreitada sozinha. Parti da receita de torta de legumes de Ruan Félix (cheiro, Ruan!), que ele publicou no blog de dona Juliana Gomes (cheiro, Ju!). Eu não tinha todos os ingredientes da receita de Ruan, mas ela foi fundamental pra me ensinar o pulo do gato em matéria de torta de legumes suculentas sem usar ingredientes de origem animal: batata cozida. É a bruxaria que faz a beleza dessa receita. E, como ele explica, essas tortas em versão animal geralmente levam ovos, óleo/manteiga e queijo, então são bem gordurosas. Por isso a versão vegetal pode (e deve) caprichar na dose de gordura (ele usa uma maionese caseira, eu uso azeite, mas já usei pesto também). Meus testes também me mostraram que a abobrinha é mais que um “legume” na “torta de legumes”, ela garante a textura úmida que eu procurava.
Foram muitos testes pra entender quais ingredientes são essenciais,e quais são enfeites, e chegar nas proporções ideias. Percebi, por exemplo, que pra chegar na textura suculenta que eu queria, o fermento era desnecessário. Fiz uma versão com farinha de grão de bico e outra com lentilha, mas tenho planos de fazer outra receita-base usando leguminosas. Eu queria que essa receita aqui fosse o mais simples possível, com ingredientes acessíveis pro maior número de pessoas. E também que se mantivesse próxima das tortas de legumes mais tradicionais, embora eu ache que a minha versão é ainda melhor.
Como precisei fazer quase uma dezena de testes antes de chegar na receita abaixo, pude compartilhar essa torta com várias pessoas e posso afirmar que o sucesso é garantido. E repare como essa torta é linda! Vão perguntar se tem queijo, por causa da maneira como ela fica douradinha por cima e do sabor maravilhoso (obra, em partes, da dose caprichada de gordura ). Responda que ela tem algo muito melhor: amor por todos os viventes e valorização dos vegetais.
Torta salgada de legumes
Essa é mais uma fórmula que pode ser usada pra criar várias tortas diferentes, dependendo do “legume saborizante” que você utilizar. A abobrinha da base é importante pra atingir a textura desejada, então ela não pode ser substituída aqui. Se estiver usando um legume de sabor forte no tempero (como azeitona ou tomate seco), aconselho usar apenas 1/2 medida dele e completar com algo de sabor mais suave. Cenoura ralada fica perfeito aqui e ajuda a baratear a receita (nesse caso ficaria 1/2 medida de tomate seco ou azeitona e 1/2 medida de cenoura ralada). Pra fazer uma torta pequena uso uma caneca como medida. Você pode dobrar a receita (mantendo a caneca como medida) pra fazer uma torta maior. Minha receita foi inspirada em grande parte pela receita de torta de legumes de Ruan Félix.
Base (1 medida = 1 copo ou 1 xícara ou 1 caneca):
1 medida de batata cozida e amassada
1 medida de abobrinha ralada com casca (aperte bem na hora de medir)
1 medida de farinha de trigo (branca ou integral)
1/4 medida de óleo
Sal e pimenta preta a gosto
Temperos
1 medida de um legume “saborizante” (tomate seco, palmito, azeitona, milho verde, ervilha, coração de alcachofra, cogumelo, cenoura ralada… pode ser uma mistura de mais de um)
Alho e/ou cebola a gosto (opcional)
Ervas secas ou frescas
Um pouquinho de suco de limão (opcional, mas eu gosto porque a acidez realça o sabor de tudo)
Misture tudo com uma colher de pau ou espátula. Prove e corrija o sal, se necessário. (Se estiver usando alho e cebola, pique esses ingredientes e refogue em um pouco de óleo por alguns minutos antes de acrescentar à massa.) A massa vai parecer seca e você vai se perguntar se não era pra acrescentar algo líquido ali. Confie, vai dar certo. Mas ATENÇÃO: se os ingredientes que você estiver usando pra dar sabor à torta (“legumes saborizantes”) forem bem secos (milho verde e ervilha, por exemplo), ou seja, não tiverem a umidade de uma cenoura ralada ou de corações de alcachofra, use um pouco menos de farinha (3/4 de medida, ao invés de 1 medida cheia) ou um pouco mais de abobrinha ralada pra equilibrar a massa.
Despeje a massa em uma forma untada com um pouco de óleo (não precisa enfarinhar), espalhe com as costas de uma colher e leve ao forno médio (não precisa pre-aquecer) até ficar bem dourado e levemente firme quando você apertar com o dedo. O ideal é que essa torta não fique muito espessa, então escolha uma forma onde caiba tudo em uma camada não muito alta. O tempo de cozimento vai depender do tamanho da sua forma, então fique de olho e não tenha medo de abrir a porta do forno pra checar regularmente e, nesse caso, é melhor assar demais (vai ficar ligeiramente crocante nas bordas) do que de menos.
Importante: deixe esfriar completamente antes de cortar e servir. Se ela ainda estiver morna na hora de cortar, o interior estará cremoso demais e vai ser purê de torta pra todos os lados. Somente depois de totalmente fria é que dá pra cortar pedaços perfeitos.
O que usei na torta da foto, que é grande (8 pedaços bons):
(Base) 2 canecas de batata amassada (4 batatas médias) + 2 canecas de abobrinha ralada (2 abobrinhas médias, apertei bastante pra entrar tudo na caneca) + 2 canecas de farinha de trigo semi-integral + 1/2 caneca de azeite (Temperos) 1 caneca de cenoura ralada (1 cenoura grande) + 1 caneca de ervilha cozida (compro congelada) + alho poró refogado (aproximadamente 1/2 caneca) + alho desidratado (porque estava com preguiça de descascar alho fresco) + um punhadinho de ervas secas (tomilho/manjericão/orégano) + sal e pimenta do reino + suco de limão.
Dicas:
-Tomate seco fica uma delícia aqui, mas se estiver usando tomates conservados no óleo, reduza um pouquinho a quantidade de óleo da receita. Eu não fiz isso e minha torta de tomate seco ficou bem gordurosa (saborosa, mas gordurosa – e ninguém reclamou dos dedos lambuzados de óleo).
-Se tiver pesto na geladeira, use no lugar do óleo. Fiz isso uma vez e ficou sublime, embora a torta fique verde, o que pode causar estranheza em algumas comedoras que torcem o nariz pra verduras.
-Sinta-se à vontade pra temperar sua torta como quiser. Uso páprica doce defumada e fica ótimo. E imagino que uma versão com curry e coentro fique supimpa também.
Esse causo aconteceu muitas luas atrás, numa das primeiras visitas que fiz à minha família, que mora no Sertão do RN, depois de ter me tornado vegana. A tia que me hospedou estava aflita: “O que vou fazer pra você almoçar agora?” Expliquei que ela poderia fazer o que fazia sempre pro almoço, eu só não comeria o animal. Minha tia achava que tinha que fazer algo diferente, já que agora eu tinha um “regime” diferente e eu insisti que, por morar fora do Brasil, o que mais me deixaria feliz era comer a comida da nossa terra, da qual sou privada na maior parte do tempo. Ela se pôs a cozinhar, mas não parecia convencida de que seria capaz de me alimentar. Quando sentei na mesa pra almoçar meus olhos viram um banquete. Além do feijão (Macaça -ou “feijão de corda”-, o mais cultivado no Sertão) com arroz, tinha jerimum, batata-doce, salada crua, suco… Enchi meu prato, que estava lindo e colorido, mas antes de dar a primeira garfada minha tia se aproximou de mim e, olhando pra comida que eu estava segurando, soltou essas palavras: “Minha fia não achou nada pra comer, não foi?”
Ela estava segurando um prato praticamente idêntico ao meu, com uma única diferença: o dela tinha um pedaço de frango. Mas só o prato dela estava cheio. O meu, aos olhos dela, estava vazio. A comida que veio da terra, plantada por gente dali (com exceção do arroz, aqueles vegetais tinham sido cultivados na própria cidade), parecia não existir pra ela. A única “comida” era aquele pedaço de animal, comprado no mercadinho da esquina (criado confinado em algum galpão, morto, despedaçado e embalado não sabemos aonde).
Contei essa história várias vezes nas palestras que dei Brasil afora porque ela ilustra perfeitamente os fenômenos de desvalorização do alimento da terra (vegetal) e de colonização da nossa alimentação. E quando o alimento vegetal é desvalorizado, a pessoa que o produz também é desvalorizada. Esse processo também faz com que a própria terra perca valor, já que os alimentos que ela produz não são mais vistos como alimentos nobres. Ao mesmo tempo, a supervalorização da carne animal na alimentação, ou produtos derivados de animais, significa que na nossa sociedade, o pecuarista tem muito mais poder e prestígio que a agricultora. E dar mais poder pra pecuária vem com consequências terríveis: mais latifúndio, monocultura, grilagem, conflitos no campo, roubo de terras indígenas, desmatamento, queimadas, exploração animal, exploração de trabalhadoras e trabalhadores em abatedouros e frigoríficos, zoonoses…
Mas eu abri esse texto contando sobre o almoço na casa da minha tia porque há tempos venho ruminando algo e essa história também fala sobre isso. Quando se trata de comida, o que consideramos “fartura”? Essa pergunta se instalou na minha cabeça uns anos atrás, quando eu estava em Natal, visitando a família. Senta que lá vem mais história.
Quando estou em Natal uma das minhas tarefas na casa da minha mãe é fazer a feira da semana. Vamos no CECAFES (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária) de Natal e conseguimos comprar diretamente de alguns produtores/produtoras rurais. Tem até gente de assentamento da reforma agrária e a oferta de vegetais é maravilhosa. Quando volto da feira e coloco tudo na mesa pra lavar/guardar, sempre sinto um prazer imenso. Quanta fartura! Quanta vida! Quanta delícia! Saber quem plantou e colheu aquilo ali só aumenta a minha alegria.
Fartura pra mim é ver a fruteira cheia de frutas. É abrir o freezer e ver ele cheio de pacotinhos de coco ralado, pronto pra virar leite, e de polpa de jaca e graviola (cortadas e embaladas por mim), prontas pra virar vitamina. E uma ruma de macaxeira descascada, pronta pra ser cozinhada. É ter uma vasilha enorme cheia de hortaliças na geladeira. É ter sempre um quilo de goma na água, pra fazer as tapiocas mais fresquinhas e saborosas. É ter pratos coloridos a cada almoço, com verduras cruas e cozidas, mais uma fruta. É abrir a geladeira e ter pasta de feijão com amendoim e leite de coco fresco. É sentar pra tomar café da manhã e ter vários recheios pra minha tapioca (pasta de feijão, restos de legumes ensopados do almoço), leite de coco pronto pra colocar no meu cuscuz e no meu café e mamão docinho. É poder escolher preparar macaxeira, batata-doce ou cará pro jantar. É comer banana-da-terra cozida no café num dia, tapioca no outro e cuscuz no outro, variando sempre os prazeres. É ter pinha e manga maduras pra lanchar. Mas nem todo mundo na minha família pensa assim.
Um dia estávamos eu e minha irmã caçula, que também é vegana, nos maravilhando diante da fruteira cheia de frutas e da geladeira cheia de verduras, enquanto lanchávamos tapioca. Nesse momento uma das nossas sobrinhas chegou da casa do namorado. Ela abriu a geladeira e fechou quase imediatamente com irritação. Depois fez uma declaração que me lembrou a tia do Sertão e seu comentário sobre o suposto vazio no meu prato lotado de comida vegetal: “Não tem nada pra lanchar aqui!” Olhei surpresa pra minha irmã, que também não estava acreditando no que tinha ouvido. Como assim não tinha nada pra lanchar? Olha nós ali lanchando! “Tem tapioca, tem frutas, tem leite de coco feito…” Mas antes que pudéssemos terminar a lista das delícias que estavam ao alcance da mão, e da boca, dela naquele momento, ela falou: “Por isso que eu gosto de comer na casa do meu namorado. Lá tem muita fartura. Sempre tem iogurte e presunto na geladeira, sempre tem leite condensado e biscoito recheado no armário.” Nesse momento nossa surpresa se tornou indignação. O problema era outro. Mais uma vez, alguém estava me dizendo que comida da terra não era alimento. Comida, mesmo, a que conta, a que tem valor, a que é gostosa, é o que vem dos animais. E dessa vez, como se travava de uma pessoa jovem e que cresceu na cidade, tinha um elemento a mais: comida é o que vem dos animais e é ultraprocessado pela indústria.
Quando entrevistei Michelle, em Belém, ela falou em como também percebeu que pessoas com práticas especistas (que vêem animais e seus derivados como comida, patrocinando e perpetuando, assim, a exploração animal) muitas vezes têm dificuldade em ver uma fruta ou um punhado de castanha do Pará como um lanche. Concordo com ela que uma das principais missões do veganismo é colocar o vegetal de volta no centro da mesa. E eu iria mais longe. Talvez a maior tarefa do veganismo (não do antiespecismo!*) seja redefinir a noção de fartura. (*A tarefa do antiespecismo é libertar os animais. Emancipação animal é o nosso horizonte.)
A gente sabe que, no Brasil, em um hectare se cria um boi ( 0,97 boi por hectare, pra ser precisa – fonte: Censo Agropecuário de 2017, feito pelo IBGE). Esse boi vai ser abatido em 3 anos e vai “produzir”, em média, 250 kg de carne (248,1kg é o peso médio da carcassa, de acordo com o Beef Report de 2022, feito pela Abiec – Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne).
Nesse mesmo hectare a gente pode plantar comida, no sistema agroflorestal, e colher 50 toneladas de vegetais por ano. Eu tive a oportunidade de visitar alguns assentamentos da reforma agrária onde as assentadas cultivavam a terra com práticas de agroecologia e agrofloresta e pude ver a imensa abundância de vegetais que crescia em espaços onde só poderíamos colocar uma ou duas vacas. É uma fartura de biodiversidade!
Precisamos redefinir nosso conceito de “terra improdutiva” pra incluir pasto. E precisamos redefinir o nosso conceito de “fartura”. Eu sempre digo que o prato é uma janela pro campo. Sabe o que acontece quando você só consegue ler como “comida” um pedaço de animal, ou um produto feito com o que sai do corpo de animais, muitas vezes ultraprocessado? A monotonia no prato reflete a monocultura do campo (de soja) e a falta de biodiversidade do pasto. É uma imensidão de terra (latifúndio) na mão de poucos e uma imensidão de animais se tornando pouca comida e deixando a terra arrasada. De todos os ângulos que você olhar, é o extremo oposto de fartura. A única abundância aqui é o lucro dos ruralistas e do agro em geral, ganhado em cima da destruição das florestas e das reservas de água, do genocídio indígena, da saúde da terra e das pessoas e da exploração animal.
“Fartura” é vegetal no prato, agroecologia no campo e floresta de pé. Pra isso precisamos de reforma agrária popular, claro. Está no programa de luta do veganismo popular. Mas tem algo que é ainda mais urgente e pode ser feito por todo mundo, nesse exato momento: valorizar a comida que vem da terra.
Feijão macaça, jerimum de leite, pirão de maxixe, banana, salada de alface e tomate, macaxeira e batata-doce cozidas
A foto acima foi feita na casa da mesma tia, no Sertão, meses atrás. Quando cheguei pra visitá-la dessa vez, ela me recebeu com uma bacia de maxixe, que tinha pedido pro marido colher na roça do irmão. “Tem maxixe e coco pra você fazer aquele seu pirão”, ela falou animada. Meu pirão de maxixe é tão famoso na família que as primas vieram das outras casas pra degustá-lo com a gente.
Estava aqui pensando com meus botões quando me dei conta que hoje é primeiro de junho! Parece que quanto mais intensos os dias, mais rápido eles passam. Aí tive uma ideia: guardar num cantinho esses pequenos momentos de alegria que passam por nós e a gente esquece quase que instantaneamente. O cantinho, no caso, é esse blog. O mês de maio foi rico em emoções e atividades. Muita alegria, pontuada por alguns momentos intensos de tristeza. Ou seja, a vida sendo a vida. Vou reunir aqui os melhores momentos do mês e, quem sabe, começo uma tradição no blog.
O mês começou com uma viagem a outra cidade pra comprar composto pro lote que cultivamos coletivamente nos Jardins Operários (nós = nosso coletivo de solidariedade popular). Nesse lugar você pega a pá e enche os sacos de composto (100% vegetal) com o suor do próprio rosto. O carro é pesado na chegada e em seguida na saída, depois de colocar os sacos de composto dentro, e assim sabemos quantos quilos levamos pra casa (o composto é vendido na tonelada). Éramos três mulheres e em uma hora carregamos a van (emprestada) com 750 kg de composto. O funcionário do local ficou impressionado com a nossa força (ele tinha olhado pra nossa cara na chegada e nos julgou fraquinhas). Respondemos: “Normal, somos lésbicas” e deixamos ele lá sem entender. (Segundo a minha melhor amiga, somos “lésbicas de sítio”. Ela diz que é uma categoria real: a lésbica que tem força no muque, entende de motor de carro a encanamento de cozinha e te tira de qualquer sufoco.)
Comecei a plantar a horta que cultivo no quintal. Sim, sou lavradora de quintal e isso me deixa profundamente feliz. Acontece que no início de maio ainda chovia um pouco e as lesmas sempre invadiam tudo depois da chuva. Eu plantava à tarde, chovia à noite e na manhã seguinte eu encontrava meu brotinho devorado pelas lesmas. (À esquerda: girassol. À direita: tagete). Nesse ponto eu só estava plantando flores e deixei pra plantar os legumes mais tarde, quando as chuvas tivessem parado.
Enquanto isso eu ia protegendo minhas flores como dava, com garrafas PET e outros recipientes de plástico. Felizmente a maior parte sobreviveu.
Plantei dois pezinhos de morango na horta e a primeira rosa do ano desabrochou no jardim.
Pascu seguiu representando sua categoria com orgulho e dormindo em todas as minhas roupas lavadas. As danadinhas das lesmas conseguiram, não sei como, entrar dentro de casa e comer meus brotinhos de couve. Acordei um dia e flagrei essa sapeca com a boquinha cheia de couve (juro!). Eu passei um sermão nela e a coloquei de volta no jardim, explicando que ela podia comer aquilo tudo ali.
Anne foi pra Palestina no início do mês e só volta em junho. Pela primeira vez pude desfrutar da casa só pra mim. Quer dizer, pra mim, Pascu e Satã, os gatos que moram com a gente (na primeira foto Pascu está dormindo no sofá-almofada, Satã está dormindo na poltrona). Faço parte do grupo de pessoas que adora morar sozinha e que curte momentos de solidão, então foi uma delícia. Também faço parte de um outro grupo, o grupo de pessoas casadas que acha que o segredo de uma relação duradoura é ter muitos momentos longe da esposa. Adoro. Aproveitei o tempo extra esse mês pra começar (finalmente!!!) a escrever o manifesto antiespecista que venho prometendo há anos (sim, na foto o computador está com o whatsapp aberto, mas juro que sentei a bunda nessa cadeira e trabalhei assiduamente no manifesto).
A luta pra salvar os Jardins Operários de Aubervilliers da destruição continua (contei tudo no podcast “Jardins da Comuna” e se você ainda não ouviu, corre lá) e dia 8 de maio fizemos a “Festa dos Jardins em Luta”. Nosso coletivo de solidariedade popular (BSP = Brigadas de Solidariedade Popular) tem uma cozinha solidária (que em Francês chamamos de “cantina solidária”) desde o ano passado e fomos nós que cozinhamos toda a comida pra festa, que reuniu cerca de 200 pessoas. Nossa cozinha é 100% vegetal e fui eu mesma que escrevi a mensagem acima (“Em solidariedade política com os animais, nossa cantina é vegana”). Usamos legumes de descarte (é assim que nossa cozinha solidária funciona) e legumes dos lotes, compartilhados pelas próprias operárias e operários que cultivam ali. Foi lindo demais.
Como parte da programação da festa dos jardins, nosso coletivo propos uma oficina de horta em lasanha (técnica pra plantar em camadas, que aprendi com uma das mulheres incríveis que cultivam nos Jardins Operários), pra compartilhar o conhecimento com a galera. Várias pessoas do bairro vieram aprender com a gente e aproveitamos a mão de obra voluntária pra fazer as lasanhas do nosso lote.
Fiz panquecas “americanas” pra minha namorada e o sucesso foi tamanho que repetimos a receita mais duas vezes esse mês. Fiz essa receita gringa aqui, mas adaptada (troquei o “cream cheese” por iogurte de coco e deixei o sal de fora). Ela gosta de comer coisas doces no café da manhã e até eu, que não gosto, adorei essas panquecas. Tanto que um dia fiz só pra mim, pro lanche da tarde. Comi no jardim, lendo o melhor livro que li esse ano. Se chama “As impacientes”, da escritora feminista camaronesa Djaïli Amadou Amal).
A raiva que sinto quando vejo frutas do Brasil pra vender aqui… E algumas vêm de avião! (Certo, isso não faz parte dos melhores momentos de maio, mas eu não queria passar raiva sozinha.) Entenda a minha raiva lendo essa reportagem do Joio e o Trigo. E o melão, que está secando a água no meu estado?
Tem que cuidar muito do mental e do físico pra aguentar o tranco. Então esse mês voltei pra terapia (tinha interrompido no final do ano passado) e passei a praticar ioga com mais regularidade. Isso quando Pascu deixa, claro. Por que gatos adoram tapetes de ioga? Nunca saberemos. Outro grande momento de alegria do meu mês foi descobrir que só tem duas pessoas entre eu e Brigitte Vasallo. Uma grande amiga minha tá namorando um boy que é unha e cutícula da escritora. Ela é o maior crush da minha vida, então imagina aí a minha emoção.
Participei de uma conversa com Nanda e Efe, junto com Ellen, transmitida pela rádio do MST, durante a feira de reforma agrária em São Paulo. Não ficou gravada, porque é rádio, mas foi muito bacana. Fico feliz demais com essa aproximação com o MST. (Não sabe o que o MST tem a ver com veganismo? Descubra aqui)
Na parte doída-triste-alegre-bonita, passei muito tempo com a minha namorada, de quem estou me separando. Nossa relação durou dois anos e o fim está sendo um processo. É um momento de reflexão e de crescimento, mas com muito, muito amor. Um dia escrevo mais sobre isso. Cozinhei bastante pra ela esse mês e essa torta de cebola roxa com azeitona foi um dos pratos que apareceu na nossa mesa em maio. Enquanto navegamos sem bússola pelas águas do fim de um tipo de relação -e começo de outra-, alheios a tudo isso, os morangos crescem na horta.
E falando em horta, lá pelo dia 20 plantei todos os pés de tomate (14 variedades!), jerimum, couve, couve-flor, brócolis, beterraba… Felizmente as lesmas estão se contentando das folhas que coloco ao redor das mudas pra elas e tá tudo indo muito bem.
Na mesma semana plantamos os pés de tomate no nosso lote, nos Jardins Operários. Lá também plantamos abobrinha e berinjela. A gente se reveza, entre camaradas, pra aguar as mudas e pelo menos uma vez por semana nos encontramos lá pra cuidar da manutenção do lote. Queríamos um lote coletivo pra plantar comida pra nós, claro, mas também pra poder compartilhar a alegria de trabalhar a terra com as pessoas que participam das nossas atividades (migrantes em situação de rua, menores refugiados, famílias em situação de vulnerabilidade econômica). Está sendo incrível e olha que ainda nem deu tomate!
Pausa pra admirar as rosas que uma camarada de coletivo, e vizinha, me deu (do jardim dela). Porque queremos pão, mas queremos rosas também. Outra pausa pra admirar o fato de eu estar em processo de fazer as pazes com meu melasma. Tirei essa foto pra mandar pra uma prima, que também tem melasma (temos um grupo de apoio só com nós duas). Repare que estou com protetor solar com cor aqui, então sem essa camada aí as manchas são bem mais escuras. Mas estou aprendendo a aceitar que é isso, mesmo. Processos, processos. A vida é feita de processos. (Por favor, não me recomende tratamentos pra melasma. Eu já tentei vários e estou numa fase em que só quero me amar e ser feliz. Tire o seu ácido do caminho que eu quero passar com a minha pele de mulher de 41 anos que nem sempre se protegeu do sol. Tô bem, me acho top pra minha idade, beijo, tchau.)
Mais pro final do mês, quando a temperatura já tinha aumentado o suficiente, plantei as mudinhas de berinjelas palestinas que minha amiga Draguitsa me mandou de presente (ela mandou as sementes). É uma semente crioula, selecionada pra suportar o calor da Palestina, então não sei se ela vai gostar de crescer na Europa. Estou torcendo que sim. A segunda rosa do meu jardim se abriu e à partir daí foram rosas e mais rosas todos os dias. A primeira coisa que faço quando acordo é ir até a roseira e cheirar uma rosa. Recomendo.
Segui trabalhando no manifesto, com a ajuda de Satã. E colhi minhas primeiras ervilhas tortas (na verdade a primeira colheita da horta esse ano). Elas foram plantadas no final do ano passado, junto com as favas.
Outro grande momento do mês: o lançamento do nosso coletivo antiespecista aqui na periferia. Começamos a nos reunir em setembro do ano passado, uma vez por mês, e dia 27 fizemos o lançamento público em grande estilo. Foi na ocupação onde mora a minha namorada, que também é uma camarada do coletivo, e teve brunch (cozinhado por nós, com comida de descarte), sessão de filmes sobre o antiespecismo e três mesas redondas. Uma sobre antiespecismo e feminismo, outra sobre antiespecismo e ecologia e uma terceira sobre antiespecismo decolonial (eu que organizei essa mesa). Nossa intenção era mostrar que as lutas da esquerda (e a esquerda radical em si) não podem mais se dar o luxo de ignorar a luta antiespecista. Por isso o título: “Nossas lutas não são desertos antiespecistas”. O evento foi um sucesso e fiquei impressionada com a quantidade de pessoas antiespecistas que moram na nossa periferia. Mês que vem vai rolar o segundo encontro e acho que esse é o começo de algo muito importante. (No prato tem: bolo de pera e chocolate, bolo-pudim de damasco e abacaxi, pepino com hortelã, pão, brócolis confitado e tofu mexido com creme de castanha.)
Depois de uma semana inteira preparando o evento de lançamento do coletivo antiespecista, você pensa que descansei? No dia seguinte nossa cozinha solidária tinha que preparar mais uma refeição pra uma atividade nos jardins: o encontro da coalizão nacional dos jardins operários em luta. Nosso grupo recebe muitos pedidos pra cozinhar em eventos militantes e, apesar de estarmos sempre cansadas e ocupadas, quase sempre aceitamos porque é uma oportunidade pra falar de antiespecismo com outros movimentos. Passei a noite do sábado (depois do evento antiespecista) e a manhã do domingo cozinhando com uma camarada do coletivo (que acontece de ser também a minha namorada. Por isso tiramos onda nos chamando reciprocamente de “camarada meu amor”. Porque anarquistas não se levam a sério, mesmo). O almoço foi um sucesso, mas como não tirei foto nem da comida nem do evento, deixo vocês com fotos dos Jardins Operários, suas cabanas de madeira, suas rosas magníficas e as framboesas do nosso lote, que tinham acabado de aparecer.
Já no finalzinho do mês fui levar minha solidariedade pros nossos amigos afegãos, que são entregadores de aplicativo (de bicicleta). Conheci vários quando trabalhei em uma mercearia chique em Paris, ano passado, e como muitos moravam na minha periferia, acabamos nos aproximando. Eles estavam precisando de ajuda pra resolver uns perrengues administrativos e como não falam Francês, fui lá ajudar os companheiros. Que aflição ser refugiada indocumentada, sem falar a língua do país, e com problemas pra resolver no telefone. Depois de horas no telefone com uma ruma de gente que não queria ajudar, fui recompensada com uma refeição preparada por eles (delícia!), toda vegetal, e com um chá de açafrão que um dos companheiros trouxe do Afeganistão. Imagina atravessar meio mundo com essa preciosidade. Ele guarda a garrafinha no quarto e só compartilha com visitas especiais. Me senti realmente muito especial. E o chá é muito gostoso!
A primeira colheita de favas da horta. Comi temperada com um punhadinho de coentro, também da minha horta. Eu amo favas. Profundamente.
Comi os primeiros morangos da horta. Segui colhendo as folhas plantadas (acelga e alface) e as que nascem de maneira espontânea no jardim (dente-de-leão, hortelã) a cada refeição. As primeiras flores que plantei pras abelhas se abriram. Coloquei urtigas (do nosso lote, nos jardins operários) em uma quantidade enorme de pratos. E tiveram mais momentos de alegria, outros de tristeza. Coisas mais ou menos íntimas, mas esse post já está longo demais. Espero que o mês de maio tenha sido florido e gostoso pra você também.
Tenho consciência que o nome dessa receita vai dar medo em muita gente, mas tem duas lições incríveis nessa prato, então bora lá.
Já falei nesse post que 1-urtigas são comestíveis e 2- que são uma delícia. Também falei que elas são riquíssimas em ferro e vou acrescentar agora que elas são extremamente ricas em proteínas, comparada às outras plantas. Corre à boca miúda que elas tem duas vezes mais proteína que a idolatrada soja. Porém como a urtiga, por ser uma folha, é levinha, pra conseguir competir com a soja você vai precisar comer um arbusto de urtiga inteiro. Mas eu só queria compartilhar esse informação pra você brilhar nos jantares mundanos com seu conhecimento sobre plantas comestíveis, mesmo. Não compactuo da proteinolatria e carência de proteína não deveria ser uma preocupação pra você, nem pra galera vegana em geral. Coma urtiga porque é gostoso, nutritivo e um alimento gratuito.
Da esquerda pra direita: alecrim, urtiga branca (com flores) e melissa.
Expliquei no post do pesto de urtiga como colher e cozinhar essa planta (sim, é seguro) e não vou repetir aqui. Dá uma olhada lá e aproveita e pega a receita do pesto. Na receita de hoje usei urtiga branca (Lamium album) que é da família da urtiga (visualmente e gustativamente são praticamente idênticas), mas não queima. Sim, uma urtiga que não queima. Hoje fui no lote que cultivamos coletivamente nos Jardins Operários aqui da minha cidade e colhi algumas pra comer no almoço. Ando apaixonada por urtigas e coloco em tudo (sopas, grãomeletes), mas hoje decidi inovar e fazer bolinhos salgados com ela. E aqui vem o segundo aprendizado do post de hoje.
Sabia que com um pedaço de pão velho, uma colherada de pasta de amendoim e alguns temperos dá pra fazer bolinhos supimpa? A inspiração veio de uma receita de bolinho de pão e nozes, que vi num site de receitas belga. Fiz mais ou menos como o site mandava e ficou muito bom. E tudo que acho muito bom, eu quero compartilhar aqui no blog. Só que pra quem está no Brasil, nozes é algo caro e difícil de achar. Sem falar que é importado. Será que não dava pra fazer usando outra oleaginosa?
A resposta é “sim”. Usei sementes de girassol no lugar das nozes e ficou supimpa. Mas resolvi ir mais longe no esforço de deixar essa receita acessível. Qual ingrediente da categoria das oleaginosas é o mais abundante e barato no Brasil? Amendoim. Que inclusive, é nosso! Então fiz umas adaptações, reduzi ao máximo os ingredientes e o resultado ficou ainda melhor do que a receita original. Desde então sempre que tem um pedaço de pão envelhecendo, faço bolinhos.
(Eu sei que botanicamente falando amendoim é uma leguminosa, ou seja, é um tipo de feijão. Mas como é gorduroso como oleaginosas e usamos da mesma maneira que oleaginosas, decreto que culinariamente falando, amendoim é oleaginosa. E tenho dito.)
O que me encantou nessa receita é que usando basicamente 3 ingredientes (pão velho, pasta de amendoim e um vegetal – aqui, urtiga) você faz algo muito saboroso em pouquíssimo tempo. É receita de carestia, quando só tem um pedaço de pão dormido na cozinha, um vegetal triste na geladeira e um fundo de pasta de amendoim no armário. Mas apesar de humilde, o resultado ultrapassa as expectativas. Meu tipo de receita preferido.
E se você usar urtigas, o que recomendo demais, o sabor será incrível! Pode confiar.
Come urtiga, bem.
Bolinho salgado de amendoim e urtiga
Quanto de pão dormido é necessário? O tanto que você tiver. À partir dessa informação você dosa os outros ingredientes. Lembrando que os ingredientes aparecem em ordem decrescente, ou seja, o ingrediente usado em maior quantidade aparece primeiro e o usado em menor quantidade, por último. Os três ingredientes essenciais são pão + legume + pasta de amendoim, o resto é tempero e pode ser adaptado (embora eu recomende muito usar molho de soja, pois fica uma delícia com amendoim). Se quiser usar coentro ou salsinha fresca, maravilha! Se só tiver alho e shoyu, dá certo também.
Pão dormido
Urtigas frescas (ou outro legume – veja dicas no final da receita)
Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)
Molho de soja (shoyu)
Alho
Raspas e suco de limão
Ervas (usei alecrim fresco porque era o que eu tinha, mas tomilho e orégano secos também são ótimo aqui)
Pimenta preta
Ferva as urtigas por alguns segundos, pique bem e esprema pra extrair a maior parte do líquido (como expliquei nesse post). Usei uma parte de pão pra uma parte de urtiga. (OBS Como dessa vez usei urtiga branca, que não queima, não cozinhei antes e bati crua junto com o pão).
Corte o pão dormido em pedaços médios e coloque no liquidificador junto com as urtigas cozidas e o alho. Bata (ou pulse) até ficar bem triturado, como uma farofa molhada. Transfira pra uma tigela e acrescente a pasta de amendoim (veja a foto acima pra ter uma ideia da proporção) e os temperos: raspas e suco de limão, molho shoyu, ervas e pimenta preta. Tudo a gosto. Misture bem com as mãos. Prove e corrija o tempero, se necessário. A massa deve ficar bem colante e formar bolinhas sem dificuldade quando apertada entre as mãos. Cuidado pra não ficar molhada demais: acrescente os ingredientes líquidos com cuidado (shoyu e suco de limão). Se ficou muito seca, junte um bocadinho de água.
Pra quem fica nervosa se não tiver medidas, usei 1 colher de sopa (não muito cheia) de pasta de amendoim pra mais ou menos 2 xícaras da mistura pão+urtiga, mais 1 colher de sopa bem cheia de shoyu, 1 dente de alho pequeno, raspas de meio limão galego e umas 2 colheres de chá de suco de limão. Não precisei acrescentar água pra dar o ponto. Essa quantidade deu 6 bolinhas, o suficiente pro meu almoço.
Faça bolinhas com essa massa (umedeça as mãos com água, pra não grudar) e frite em uma frigideira antiaderente (eu nem uso óleo, pois a gordura da pasta de amendoim é suficiente pra dourar os bolinhos – mas só funciona se a frigideira for realmente antiaderente!). Você também pode assar no forno. A vantagem é que dá pra fazer uma quantidade bem grande de uma vez, mas a desvantagem é que as bolinhas ficam mais secas (nada dramático).
São uma delícia quentes, mas guardei as bolinhas assadas na geladeira, em um vidro fechado, por vários dias e também achei gostoso frio. (Na verdade eu abria o pote e comia gelado, mesmo).
Dica: Não tem urtiga? Use couve picada ou cenoura ralada (ambas cruas). Bata a couve com o pão, como fiz com as urtigas. Mas se usar cenoura ralada, deixa pra acrescentar na tigela, junto com os temperos. Já fiz com cogumelos (champignons), salteados antes de entrar na massa, e ficou incrível (foto abaixo – aqui as bolinhas foram assadas no forno).
Dias atrás minha amiga Bárbara me mandou uma mensagem contando que tinha feito omelete com ervilha seca e que tinha ficado muito feliz com o resultado. Há tempos eu andava pensando em fazer omelete com outra leguminosa, seguindo a técnica que uso pra fazer omelete de grão de bico (vulgo grãomelete). A mensagem dela me deu ainda mais vontade de explorar novos caminhos, mas ao invés de usar ervilha seca, decidi usar feijão mungo.
Se você é nova no veganismo e/ou se tem pouca intimidade com a culinária vegetal, talvez o parágrafo acima tenha te deixado intrigada. “Por que danado veganas querem fazer omelete usando feijões ao invés de ovo?”, você deve estar se perguntando. A resposta é: porque é uma delícia! Quando você sai do padrão de culinária especista, que vê animais e os produtos do seu corpo como alimentos, abre-se um mundo de possibilidades na cozinha. Feijão pode ser a base de omeletes (grãomelete, feijãolete, chame como quiser) saborosos, nutritivos e facílimos de preparar. E por que chamar isso de “omelete”, se não tem ovo? Eu acredito que usar palavras que denominem receitas à base de animais e seus derivados pode ser útil pra te informar que a técnica de preparo (como no caso de queijos vegetais) ou a maneira de consumir (como no caso desse omelete) são as mesmas. Eu chamo de “omelete de feijão” pra sinalizar que a gente cozinha essa preparação como um omelete, que pode acrescentar os mesmos ingredientes que usaríamos pra incrementar um omelete de ovo e que consumimos como um omelete (acompanhado de vegetais no almoço / dentro de um pão no café ou jantar / puro, como um lanche rápido…).
Escolhi usar feijão mungo aqui por duas razões. Eu moro na periferia norte de Paris, onde tem uma comunidade indiana importante. Aqui tem várias mercearias com produtos indianos, super acessíveis e sempre encontro feijão mungo nesses lugares, já que ele é bastante utilizado na culinária indiana. A segunda razão é que tem alguma propriedade culinária no feijão mungo que faz com que ele se comporte um pouco como ovo. Não por acaso os produtos industrializados que se vendem como “ovos vegetais” geralmente usam proteína de feijão mungo. Eu queria ver se dava certo fazer omelete em casa, usando simplesmente o feijão inteiro, como já fiz com o grão de bico tempos atrás.
Trago boas novas! Não só é possível, como é muito fácil. O sabor é bem suave, principalmente se você coar a mistura antes de cozinhar (explicações na receita abaixo) e isso também é positivo. De um lado, esse feijãolete vai agradar os paladares cheios de melindres. Aqueles que foram formados sem muito contato com vegetais e tendem a rejeitar a comida da terra. E, por outro lado, o sabor discreto te convida a ser criativa e acrescentar outros ingredientes, pra incrementar a receita. E a textura realmente é mais próxima do omelete de ovo que a minha (amada, idolatrada, salve, salve) receita de grãomelete. Sabe aquela coisa ligeiramente gelatinosa e elástica do ovo? Você vai encontrar algo próximo aqui.
Um dia tentarei a versão de omelete vegetal de Bárbara, embora no momento eu esteja tão animada com a versão com feijão mungo que já repeti a receita 5 vezes em duas semanas. Mas agora que essa porta se abriu, vejo inúmeras versões de omelete de leguminosas no futuro.
Omelete de feijão mungo (feijãolete)
Feijão mungo cru (usei o grão partido aqui, mas funciona igualmente com o grão inteiro)
Água, sal e tempo
Óleo/azeite pra cozinhar
Opcional:
Cebola
Alho
Coentro
Páprica defumada
Pimenta preta
Deixe o feijão mungo de molho na água fria por pelo menos 12 horas (de um dia pro outro). Eu já deixei de molho por 24h e 48h (trocando a água do molho uma vez) e nos três casos dá certo. Aumentar o tempo da demolha deixa o grão mais digesto, então escolha de acordo com a sua sensibilidade pra digerir feijões.
Escorra o feijão demolhado, enxague rapidamente e bata no liquidificador com água apenas suficiente pra cobrir tudo (sem passar). Bata por alguns segundos, até o feijão se transformar em um líquido encorpado e liso (esfregue entre os dedos). Use uma peneira fina pra coar a mistura, separando as cascas e parte da fibra. Se quiser fazer seu omelete sem coar, fique à vontade. Saiba apenas que a casca deixa essa receita mais granulosa e com um sabor mais pronunciado, o que não é necessariamente desagradável (mas eu prefiro coar). A espessura da massa deve lembrar uma vitamina de banana (nem espessa demais que pode ser comida de colher, nem líquida como um leite).
É nesse momento que você pode incrementar seu omelete. Aqui eu juntei cebola roxa em tiras finas, alho picado, coentro, páprica defumada e pimenta preta. Misture tudo na massa e não esqueça de colocar sal a gosto.
Aqueça um pouco de óleo (ou azeite) em uma frigideira antiaderente. Quando estiver bem quente, despeje um pouco da mistura de feijão mungo (uma camada fina é melhor do que uma camada muito espessa). Cozinhe em fogo médio até o omelete se formar e for possível virar sem que ele se quebre. Baixe o fogo e cozinhe mais alguns minutos do outro lado. Quando estiver bem dourado dos dois lados, está pronto.
A massa de omelete (feijão mungo demolhado, triturado e coado) pode ser conservada por vários dias na geladeira. Sempre que quiser fazer um omelete, retire a quantidade necessária, tempere e cozinhe.
Um dia, muitas luas atrás, uma moça chamada Michelle me enviou uma mensagem pelo Instagram (na época eu ainda frequentava a plataforma) e trocamos algumas ideias. No final da conversa ela disse que era de Belém do Pará e me chamou pra conhecer a cidade. Eu disse que aceitava o convite com muito gosto, que era um sonho antigo visitar Belém, mas que não sabia quando isso iria acontecer. Anos depois eu desembarquei no aeroporto de Belém e lá estava ela me esperando, junto com outras camaradas, com um sorriso enorme e uma banana na bolsa. (Eu tinha enviado uma mensagem pra Michelle, antes de embarcar pra Belém, pedindo encarecidamente que ela levasse uma coisinha pra eu comer porque a jornada até lá seria longa e eu já estava morrendo de fome. Curiosamente quando eu entrevistei Michelle, dias depois, a questão de ver frutas como lanche acabou entrando na conversa e desencadeando uma reflexão profunda do meu lado.)
Michelle Muriel é gestora ambiental, ecofeminista e militante pelo veganismo popular na Amazônia. Ela faz parte do coletivo antiespecista VEM (Veganismo Em Movimento), que é associado à UVA. Como parte da Jornada do Veganismo Popular Contra o Fim do Mundo, que aconteceu durante todo o mês de novembro de 2022, em várias cidades do Brasil, as/os camaradas do VEM me receberam em Belém pra participar de um evento junto com Ana Felicien, uma companheira da Venezuela, e Gisiane Ferreira, uma companheira do MST. Foi um dos eventos mais potentes dos quais participei e ainda escuto os ecos daquela conversa dentro de mim. E o que dizer do pessoal do VEM? Ô povo maravilhoso! Que honra construir a luta antiespecista no Brasil do lado desse povo!
Não era possível entrevistar todo mundo do coletivo, mas consegui tempo pra gravar uma conversa com duas companheiras do grupo e a primeira que vai aparecer aqui é Michelle. Ela me disse que nosso encontro foi uma pororoca e eu não poderia achar uma maneira mais linda e certeira de descrever o que senti. Foram quase duas horas de gravação, que eu transcrevi em nada menos que 11 páginas! Mesmo depois de duas semanas de edição, essa é a entrevista mais longa que já publiquei aqui no blog, mas te garanto que vale muito a pena ler até o final.
Tivemos essa conversa na ilha do Combu, dentro da floresta Amazônica e tenho certeza que as palavras dela vão provocar uma pororoca no peito de vocês também.
Como você se tornou vegana?
Em 2010 eu estava cursando gestão ambiental e visitei um abatedouro como parte de um trabalho pra faculdade. Eu já tinha duas cachorrinhas e quando cheguei lá e vi os animais no curral, imediatamente pensei nelas. Até hoje eu lembro do olhar dos animais na minha direção, da sensação de não poder fazer nada pra ajudá-los. Depois desse dia sempre que eu via carne no prato eu lembrava dos animais no abatedouro e não conseguia comer. Foi quando um amigo me falou sobre vegetarianismo. Eu não conhecia nenhuma pessoa vegetariana e pensei que aquilo não era pra mim. Eu repetia que ainda estava assustada com o que eu tinha visto no abatedouro, mas que em algum momento eu voltaria a sentir cheiro de carne sem associar aquilo com animais sendo queimados. Isso durou um ano e durante esse tempo não consegui comer carne diretamente, mas quando tinha carne no meio de alguma comida, charque por exemplo, eu colocava pro lado e comia o resto. Frango eu já não gostava de comer, então eu só comia peixe. Até que em 2011 eu me tornei vegetariana.
Logo depois comecei a trabalhar na Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Foi então que comecei a visitar abatedouros como parte do meu trabalho, fazendo fiscalização, recenseamento. Eu morei uma época em São Félix do Xingu, no sudeste paraense, que é onde tem o maior número de bovinos do estado. Quando você chega nessa região o agro está presente em tudo. Tu não vê mais mata, essa mata que a gente está vendo aqui, tudo foi devastado. À noite a fumaça das queimadas parece uma neblina. Tudo foi transformado em pasto. E o que eu via nos abatedouros? Uma cena de horror: sangue espalhado por todos os lados e tristeza. É horrível porque ninguém é feliz fazendo esse trabalho. Os trabalhadores nos abatedouros são uma mão de obra descartável. São corpos que, se acontecer alguma coisa com eles, não serão lembrados.
Sem falar no impacto ambiental. Aquele sangue, aquela gordura toda que sai dos animais mortos vai se acumulando numa vala. E é um negócio verde, um lodo. Aquilo deveria ser tratado antes de ser jogado num rio, só que na maioria dos casos isso não acontece. Nos lugares próximos aos abatedouros onde a água dos rios foi testada, foi constatado que ela é imprópria pra consumo, pra banho. Então as conexões foram sendo feitas na minha cabeça.
Aí teve o caso do abatedouro no Marajó… Fomos fazer uma inspeção e fiquei impacta quando vi que os animais estavam doentes, que tinha tumores nas carnes. Falamos que aquela carne tinha que ser jogada fora, mas o veterinário responsável disse: “Não! A gente tira a parte doente e vende o resto”. Mandamos descer toda a carne que estava dentro de um caminhão, indo pro frigorífico. O abatedouro foi fechado, lacramos tudo. Mas políticos influentes foram mobilizados e poucos dias depois o lugar estava funcionando novamente.
Comecei a perceber o impacto social da pecuária também. Eu via pessoas na miséria, morando nas margens do rio, mas sem a possiblidade de pescar porque o rio está poluído. E ao mesmo tempo eu via um grupo privilegiado, os pecuaristas, os donos dos abatedouros, se aproveitando daquela situação, exibindo riqueza como eu nunca tinha visto em Belém. Em lugares como Xinguara, São Felix do Xingu e Marabá eu via pessoas extremamente brancas, louras, enormes, totalmente diferentes das pessoas daqui, com botas de couro e bolsas de luxo que eu só tinha visto, até então, na televisão. E quem mora nas comunidades dessa região passa a servir aquele grupo, ser garçon, cozinheira nas churrascarias, diarista…
Como eu estava mais próxima da classe trabalhadora, fui fazendo amizades com as pessoas que prestavam serviço ali. E elas me chamaram pra visitar a roça delas. Essas pessoas criavam animais pequenos, mas elas se alimentavam principalmente do que plantavam. Descobri que no fim de semana o pessoal da comunidade vendia verduras no mercado e comecei a fazer minhas compras lá. Era muito fácil, e farto, se alimentar com comida vegetal ali.
À noite eu via as manifestações dos indígenas falando sobre o avanço do agro, explicando que eles estavam sendo expulsos das terras, que estavam em luta… Então a situação ficou evidente pra mim. Existe um grupo muito poderoso, os pecuaristas, que está se beneficiando da situação e, ao mesmo tempo, oprimindo, vulnerabilizando, excluindo e marginalizando a população nativa. Na época eu não tinha teorias, mas é impossível estar ali e não fazer essas conexões.
Fale um pouco sobre o veganismo popular no seu território
Quando voltei pra Belém, voltei com vontade de me organizar. Foi quando eu entrei em contato com o pessoal do coletivo VEM (Veganismo Em Movimento). O coletivo já existia, mas estava parado. As eleições de 2018 estavam se aproximando e organizamos algumas ações pra mobilizar as pessoas e mostrar quem era Bolsonaro e ajudar Haddad a se eleger. A gente entendia que as lutas estavam conectadas e na época falávamos de veganismo interseccional. Ainda não conhecíamos o termo “veganismo popular”, mas o pensamento era o mesmo. Começamos a ler o blog Veganagente. Foi então que eu vi o seu vídeo com Sabrina Fernandes e comecei a ler o seu blog também. A gente pegou uns textos do seu blog, juntou com textos do Veganagente e nos reunimos pra ler e discutir. Foi assim que retomamos as atividades do VEM, com um veganismo politizado aqui em Belém.
As tarefas são muitas e somos poucas pessoas no coletivo, mas estamos muito felizes com o sucesso dos eventos que organizamos. O VEM passou a ser uma referência aqui e somos convidados pra participar de discussões e construir junto de outras lutas. Em 2020 organizamos um encontro com as candidaturas pra vereadores e teve muito interesse da parte dos candidatos em aprender mais sobre o que defendemos. Conversamos muito sobre merenda escolar, alimentos agroecológicos e as várias políticas públicas que Bolsonaro derrubou, na verdade que vêm sendo derrubadas desde Temer, e que impactam diretamente os ribeirinhos que produzem alimentos aqui. Se não tiver políticas públicas de escoamento como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), articuladas com o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), os agricultores não vão conseguir escoar a produção e a comida não vai chegar nas escolas. Quem ganha são os monopólios alimentares, que vão conseguir levar seus produtos pra merenda. Sem as políticas públicas, quem produz tem o que comer, mas não consegue vender uma parte e não tem como garantir o resto do que precisa.
Talvez em reação a isso percebi que o número de cooperativas e associações rurais está aumentando. Elas se reuniram pra buscar uma forma autônoma de levar toda essa produção pras feiras municipais e pra beira das rodovias. Aqui em Belém tem um movimento de feira totalmente autônomo. Conseguem organizar transporte pra chegar até aqui, ficam no meio da rua, sem nenhum tipo de estrutura e vendem seus alimentos. Outro dia perguntei pra um feirante se tudo aquilo na barraca vinha da propriedade dele. O senhor respondeu: “É, minha filha, tudo isso aqui é da minha propriedade. Tem muita coisa lá, a gente fica com uma parte e o que sobra a gente traz pra vender. Tem tanta coisa que até estraga. Aí eu fico pensando nas pessoas da cidade, que moram na rua, que não tem o que comer… Lá é tão farto!”
Eu vejo que as coisas andam juntas. No campo, as pessoas estão trabalhando e lutando muito pra estar naquele território. Elas criam laços com a terra e relações com as outras pessoas. São exemplos de sociedades muito solidárias. E ali está a sua identidade. Quem vem pra cidade, porque perdeu a possiblidade de viver da terra, perde essa rede de apoio. Na cidade elas são marginalizadas, empurradas pra beira dos rios ou pras periferias, lugares que não são vistos, ou acabam na rua e começam a passar fome. É necessário uma sensibilidade pra gente perceber isso. Na cidade as pessoas estão cada vez mais individualistas e você acaba ficando mais endurecido, perdendo a sensibilidade pra olhar pro outro.
O que é o veganismo pra você?
O veganismo tem uma dimensão política, é uma luta coletiva por libertação animal e humana. Mas como amazônida, ele também tem uma dimensão muito particular pra mim. Estando aqui na Amazônia e encontrando as pessoas nas comunidades, eu vejo que ele é um espaço que agrega e acolhe as pessoas que estão em luta.
Porque você chega nas comunidades e tem luta. Elas estão lutando pra serem reconhecidas, pra não serem invisibilizadas, pras que políticas públicas cheguem até elas. Estão defendendo suas causas, seu território, sua identidade. Muita gente acha que ao falar de veganismo a gente se distancia das pessoas que consomem animais pra subsistência. A verdade é que estamos muito mais próximas delas, pois elas têm uma relação muito forte com a natureza. E eu encontro no veganismo um lugar onde eu posso me apoiar pra tratar desse aspecto, que é bem sensível: a conexão com a natureza.
Quando a gente nasce e cresce aqui aprende desde pequenininha que tem que pedir a permissão da natureza pra entrar no rio, pra entrar na floresta. “Com licença, mãe natureza!” Quando vamos plantar, a gente conversa com a natureza e pede a permissão. Na hora de colher, também. Tem a época em que o caranguejo sai pra namorar e ninguém, nem o pegador de carangueijo, pega carangueijo nessa época. Ele espera o tempo do carangueijo crescer. Aqui a gente respeita a lua, as estações, o inverno amazônico, o verão amazônico. Meus bisavós e avós cresceram na beira do rio, na beira do mangue. Entrou ali, não se pega nada sem permissão. Nem um animal, nem uma folha, nem uma casca. A gente aprende a ter esse respeito. Então quando eu conheci o veganismo eu me identifiquei, porque é esse respeito que eu quero.
O veganismo pra mim tem essa dimensão política coletiva que casa muito bem com o veganismo amazônida. Nós, amazônidas, estamos com essa sensibilidade aflorada em defesa da Amazônia e nossas raízes estão clamando isso. Não tem como você mergulhar numa praia em Mosqueiro, numa praia no Marajó e não querer lutar por isso. Porque se a gente não lutar por isso, o preço que vamos pagar é alto demais: vamos perder nossa identidade.
Então aonde eu vou lutar? Vou lutar aonde tem respeito por todos os seres, que é junto do veganismo popular. E não sou só eu que falo isso: tem meus companheiros do VEM, os companheiros do MST, a UVA… É uma luta pelo nosso território, pela nossa identidade, pela nossa história. Pelos meus avós, bisavós, os que estavam aqui antes, resistindo pra não sucumbir e os que morreram lutando. A terra onde eles lutaram permanece e é a terra onde lutamos hoje. Pra mim o veganismo é isso.
Por que você é vegana?
Primeiro porque eu não consigo ver o corpo de um animal como alimento. Pra mim o alimento é vegetal. Eu me disponho a ser uma amiga e companheira de luta desses animais, de todos os animais. Segundo porque, sem precisar falar nada, quando escolho um prato totalmente vegetal as pessoas a minha volta percebem e fazem perguntas. Assim o meu existir já demonstra a minha prioridade de vida, que é lutar em defesa da Amazônia e dos animais.
No veganismo eu consigo conectar o que acredito ser necessário individualmente e coletivamente pra construir a sociedade que a gente almeja. É uma luta que não está lá na frente. Ela vive aqui, no presente, e já existia lá atrás. A gente chega em qualquer comunidade na Amazônia e vê a luta pela defesa dos animais, pela defesa da natureza.
Veja o exemplo da pesca industrial. Colocam barcos industriais na cabeceira do rio e o peixe não entra nas comunidades, os ribeirinhos não podem fazer pesca artesanal. A pesca artesanal luta contra a pesca industrial e como é que a gente não vai lutar do lado dessas pessoas? Se a gente não faz uma luta contra os grandes monopólios da indústria não teremos condições de viver o veganismo, de alcançar libertação animal. As pessoas vão comer o quê? Um ultra processado? Vão sucumbir? Vão vir pras periferias ou viver uma vida deplorável no meio da rua? Primeiramente devemos lutar com os pescadores artesanais contra a grande indústria. Quando eles tiverem seu lugar garantido e condições de escolher o que fazer, só então terão a possibilidade de considerar os animais como seus companheiros de luta. E é à partir daí que a gente vai poder levar a discussão do antiespecismo até eles.
Lembrei de uma história. A pesca industrial estava afetando várias comunidades em Marapanim e apesar das pessoas que moravam ali denunciarem a situação, os órgãos ambientais e a Câmara repetiam que “não tem ninguém nessas comunidades”. Como sempre, a Amazônia é vista como um grande vazio demográfico. Então uma liderança comunitária ribeirinha organizou várias pessoas num caminhão, cada uma levando um cartaz com o nome da sua comunidade e foram na câmara pra dizer “a gente existe”. No final de uma luta de 12 anos conseguiram uma reserva extrativista marinha que protege essas comunidades de agricultures familiares, de pescadores artesanais e de marisqueiras (que é uma atividade feita por mulheres). A reserva se chama “Reserva Mestre Lucindo”. Mestre Lucindo foi um músico de carimbó e perguntei por que deram o nome dele pra reserva. Me explicaram que ele também era pescador artesanal e compunha suas músicas nas noites de luar, enquanto pescava. Ele morre, mas renasce como reserva extrativista. Ele renasce pra proteger os membros da comunidade. Aqui a existência das pessoas permanece, as lembranças, as memórias, os ensinamentos… Isso é muito forte pra nós.
Estamos na Amazônia, onde o projeto colonial avança sem pausa há séculos. Você acredita que o veganismo se articula com a luta decolonial?
O veganismo popular fala da defesa do território, da identidade, do que está aqui, dos antepassados que defenderam a terra e produziram uma cultura alimentar tão forte e diversa. Ele vem com o principio de fortalecer a cultura alimentar do seu local e pra mim isso é decolonial. Veja que isso não é algo novo dentro dos espaços de luta. Que as pessoas aqui descrevam sua luta como “decolonial” ou não, é escolha delas, mas essa luta sempre existiu. O veganismo vem se somar a isso tudo e eu percebo que ele vem organizar as pessoas e nomear as coisas. Você chega aqui na comunidade do Combu e consegue identificar o que é colonial. Então a gente se soma de uma forma organizada e já denominada, explicando com todas as palavras o que você observa aqui nas comunidades que já estão na luta. Se eles produzem, a gente vai consumir. Organizamos encontros com as candidaturas tanto em 2020 quanto agora, em 2022, pra falar sobre soberania alimentar e formas de fortalecer a cultura alimentar. Aqui no Ver o Peso tem essa força ainda. Mas a gente tem que ficar atento e vigilante, porque o colonialismo vem devagarzinho, pelas laterais.
(Contei pra Michelle o que vi na minha visita ao mercado Ver o Peso no dia anterior: farinha de tapioca e coco seco sendo vendidos banhados em leite condensado. A Nestlé conseguiu se enfiar até em produtos tão tradicionais, no mercado que é um dos maiores símbolos da cultura alimentar paraense.)
Sim, a gente tem que ficar vigilante.
É complicado ser vegana na Amazônia?
Aqui é muito fácil se alimentar bem, de maneira farta e dentro da nossa cultura alimentar, sendo vegana. Meu pai carrega muito essa cultura alimentar raiz. Quando é época de pupunha, ele cozinha pupunha na casa dele, coloca um pouco num potinho e deixa na portaria do meu prédio. Aí eu já subo com minha pupunha cozida, faço um cafezinho e é meu lanche ou café da manhã. Quando a minha família fala: “Vamos fazer um café da tarde?”, eu levo um milho cozido, uma macaxeira cozida, uma pupunha cozida. E ninguém vai se espantar e dizer: “Ah, isso aqui que a Michelle trouxe é vegano!” Não, as pessoas vão dizer: “Eu adoro milho cozido, adoro macaxeira!” As pessoas comem o que eu levo e o pão, aquele pão de supermercado que alguém colocou na mesa, vai ficando de lado. Se tiver um bolinho de macaxeira, que a minha mãe faz, ou um bolinho de tapioca, as pessoas adoram porque esses pratos são carregados de memória afetiva. Talvez isso esteja se perdendo entre as pessoas mais jovens, mas a minha geração ainda tem essa lembrança de infância da vó fazendo mingau de carimã, mingau de milho, mingau de banana. Antigamente não tinha leite de vaca, era sempre com leite de coco, porque é o mais prático aqui. Também tem o leite de castanha (do Pará).
Já escutei muitas pessoas afirmarem, no Brasil e na Europa, que veganismo não faz sentido porque “indígenas caçam”. Pior, que o veganismo é “anti-indígena” e “busca separar o humano da natureza”. O que você diria pra essas pessoas?
Antes de falar, é bom ouvir. Ninguém pode falar por ninguém, incluindo nós, no movimento vegano. A gente tem que ouvir as pessoas da Amazônia. Pra se somar a essa luta, precisamos estar no local, ouvir as pessoas e ter a sensibilidade de entender que elas são as protagonistas. Se um grupo indígena está falando, vamos ouvir. Eu tenho certeza que eles não estão falando que é pra matar não sei quantas cabeças de gado. Não tão falando isso, não. A gente tem que chegar, sentar e ouvir. Depois se perguntar: “Onde posso ajudar?” Estamos olhando pro mesmo destino, pro mesmo horizonte? Estamos, então vamos lá juntos. As pessoas falam: “Ah, o veganismo é isso, o veganismo é aquilo…” Quantas dessas pessoas vão estar lá pra lutar ao lado dos indígenas?
Essas pessoas têm uma ideia estereotipada dos grupos indígenas. E usam isso pra desconsiderar o veganismo e continuar vivendo sua vidinha no ar condicionado, comendo carne, numa bolha de conforto, sem conseguir enxergar quem está do seu lado? Ouçam o que eles estão falando ao invés de falar o que vocês acham deles.
Gostaria que as pessoas tivessem a oportunidade de sentar e tomar um cafezinho com uma comunidade indígena ou ribeirinha. Se você sentar e tomar um café com essas pessoas elas vão te oferecer uma macaxeira cozida. Provavelmente vão te oferecer um suco de cupuaçu, ou de bacuri, uma banana da terra frita… E quando você falar da defesa da natureza, da defesa dos animais, elas serão as primeiras a concordar. Elas utilizam os animais pra subsistência, mas a visão delas é muito próxima da nossa luta pela defesa da natureza, dos animais e da Amazônia.
Ouvi dizer por aí que o veganismo pode até ter alguma relevância nas cidades, mas que não tem sentido chegar pras comunidades indígenas e falar pra elas comerem estrogonofe de soja. Desde então fiquei com essa dúvida. (contém ironia) Vocês realmente querem que indígenas parem de pescar e comam estrogonofe de soja no lugar?
Mais uma vez, isso é a visão do veganismo de alguém que não conhece a luta. Se você quer ter uma opinião sobre algo que você não conhece, sem estar no local onde essa luta acontece, converse com alguém que está lá. É importante se informar antes de falar!
Nós, do movimento vegano, não estamos chegando em nenhuma comunidade indígena ou ribeirinha falando: “Vamos fazer um escondidinho de soja?” Não! Quando eu vou pra essas comunidades muita gente me pergunta o que eu vou comer. Eu levo minha comidinha, minha marmita? Levo, até porque gosto de compartilhar. Mas eu vou tranquila porque sei que essas pessoas não vão me julgar. Eu vou sentar na mesa com elas e vai ter um peixe, uma galinha caipira, mas também vai ter macaxeira, açaí, farinha, tapioca. Sempre tem feijão de corda, feijão verde. Se tiver pupunha, eu coloco no meu prato. Se só tiver açaí e farinha, eu já almocei! Ninguém vai ficar te questionando por você não comer a galinha ou o peixe, muito pelo contrário! Eles vão experimentar o que eu tiver levado, eu vou comer os vegetais que eles tiverem preparado e vamos socializar ao redor da comida compartilhada.
Mas o que a gente pode discutir aqui é um pensamento muito colonial e neoliberal que vai chegando nos lugares e transformando a maneira como vemos a comida. Então as pessoas passam a não enxergar os frutos, as frutas, os alimentos vegetais em geral, como alimento. Isso faz parte da missão do veganismo: lutar pro vegetal ter um papel central na mesa.
Eu cheguei em um lugar uma vez, a trabalho, e tinha muito coco. Todo mundo estava bebendo água de coco. Estava naquele intervalo entre o café e o almoço, então eu comecei a comer a carninha do coco. Quando eu vi, todo mundo estava fazendo igual. Porque é gostoso! Mas até então ninguém tinha pensado em comer a carninha do coco. Eu gosto de comer o cupuaçu, quebrar e comer a polpa. O bacuri também. Como a fruta diretamente. Nesses lugares tem muita polpa, porque as comunidades comercializam, então você pode pegar a polpa e fazer um suco… Também tem sempre biju, que é diferente da tapioca. O biju é feito com a farinha d’água misturada com água e um pouquinho de açúcar. É um lanche da tarde pra mim.
(Explico que pra mim uma das maiores contribuições do veganismo é passar a enxergar o vegetal, uma simples fruta, como um lanche satisfatório. A gente vê comida onde as pessoas especistas vêem ausência de comida. Sempre que me dizem: “Você não come carne, nem laticínios, nem ovos? Então não come nada!” eu percebo a que ponto as pessoas especistas vêem o vegetal como uma não-comida. Michelle falou de como a Amazônia é considerada, por quem quer explorá-la, como “um vazio demográfico” e agora estou me dando conta que comida vegetal também é vista como uma espécie de vazio alimentar.)
Exatamente. Também é comum ter castanha (do Pará) em todos os lugares. Você chega e as mulheres estão cortando a castanha, preparando pra vender. Aquilo ali com um cafezinho, pra mim já é um lanche! Outro dia eu estava com meus colegas de trabalho e tinha muito capim santo no lugar onde estávamos. Fizemos uma panela de chá, que meus colegas tomaram com biscoito de castanha. O biscoito levava leite, então eu tomei o meu chá com as castanhas, mesmo. Como você disse, muita gente não vê isso como lanche, como refeição.
Como falar da luta antiespecista dentro da esquerda?
Esse está sendo o nosso maior desafio. É onde a gente vê mais resistência. Quando a gente chega numa comunidade e leva sua comida vegetal, ou faz seu prato, é tranquilo. Mas quando a esquerda percebe que você é vegana, é muito comum fazerem uma crítica não embasada. Dizem que vamos ficar com deficiência de nutrientes, que comer animais é cultural…
A gente tenta trazer a esquerda pro veganismo explicando que existe um ponto comum nas nossas lutas: a exploração dos corpos, dos corpos de todos os animais, humanos e não-humanos. Mostramos que a exploração dos animais tem por finalidade a acumulação e o lucro e que com isso vem todas as questões socio-ambientais, como a exploração dos trabalhadores, a destruição da floresta, a poluição dos rios… A gente tenta conectar isso pra que as pessoas percebam que lutamos contra um inimigo em comum. Pra elas enxergarem a relevância em defender os animais, porque estamos todos conectados num grande sistema.
Muita gente não consegue perceber o quão conectados estamos… Basta pensar que todo mundo precisa do ar. Se tirar o ar, a gente morre. Precisamos dos rios, das florestas, dos animas… Se a gente não se perceber como parte importante desse processo, assim como os outros animais, a gente quebra os pilares importantes pra reprodução da vida.
Acho que na esquerda tem muito a questão de rigidez, de não mudar o que fazem, o que falam. Mas aqui, por causa do que a pecuária está fazendo com a Amazônia, as pessoas na esquerda conseguem conectar isso, perceber a importância, mas sem necessariamente se tornarem veganas.
Existe uma resistência com a questão antiespecista. Minha leitura é que como as pessoas teriam que fazer um esforço, se quiserem se tornar veganas, e como não tem ninguém cobrando essa postura delas dentro da esquerda, é muito mais fácil deixar pra lá. Dizem: “Isso não é urgente, então vamos deixar pra depois”.
A gente convida o pessoal na esquerda a lutar pelo antiespecismo de maneira paralela. Porque nós, veganas, militamos de maneira paralela. A gente luta contra a opressão, então construimos condições pra fazer as lutas acontecerem de maneira simultânea. Dá pra você viver sem consumir nada de origem animal e, juntamente com a defesa da luta antiespecista, você pode se aliar à luta LGBT, à luta antiracista… Dá pra fazer todas as tarefas da militância na esquerda sendo antiespecista e a gente mostra isso através do exemplo.
Algumas pessoas de esquerda, quando entendem o que é o veganismo, conseguem conectar as pautas imediatamente. Outras precisam fazer um esforço maior pra superar a questão do paladar. Mas sabe uma coisa que eu vejo, principalmente aqui em Belém? O lado social. A gente tem a síndrome do vira-lata. A gente não quer parecer nortista, não quer parecer caboquinho. “Nossa, isso é coisa de caboquinho, não faz isso!”
O que é ser caboquinho?
É a mistura do indígena com o negro, a miscigenação de etnias aqui. É o caboclo, aquele que mora no interior, que está perto da natureza, que tem uma outra forma de se alimentar e de se relacionar com a natureza. Aí a gente pensa: “Não quero parecer um caboquinho! Quero dizer que vou pro Sudeste, que viajo pelo menos uma vez por ano pra Europa com a minha família, que tenho uma empregada doméstica, que tenho um carro novo, mesmo que eu esteja cheia de dívidas…” A gente mora aqui, mas não quer parecer com as pessoas daqui. Antigamente as pessoas tinham vergonha de estar com a boca suja de açaí, porque quem tomava açaí eram os caboquinhos. A comida, a base alimentar do ribeirinho, do caboquinho, é o açaí, então eles sempre estão com a boca e os lábios roxos. Tucupi também é comida de caboquinho, mas quando chefs de fora começaram a falar do tucupi, todo mundo passou a dar valor. Agora você chega na Estação das Docas e tem tudo isso lá, só que em versões muito mais caras.
E pra não ser identificado como caboquinho, é preciso comer o que?
Comer mais animais. Comer vegetais locais traz essa dificuldade social, mesmo pra quem é de esquerda. É um comportamento que vai te denunciar, que vai mostrar que você é caboquinho. Como vou chegar pro meu grupo de amigos de esquerda, que são cool, que são a galera que consome a cultura do Sudeste, que conhece certas teorias, e recusar a carne do churrasco? Vão te olhar e dizer: “Ah, tu não quer comer carne? Então não vou mais te chamar pros churrascos.” Nessas horas eu sempre falo: “Me chama que eu levo o meu churrasco de vegetais!” Mas quando as pessoas falam “Não dá mais pra sair contigo”, o que eles querem dizer, na verdade, é que você não faz mais parte daquele grupo. Todo mundo quer se sentir pertencente e pra fazer parte do grupo não pode comer pupunha, que é comida de caboquinho. Tem que comer o churrasco. A gente quer ser o de fora, o mais branco. Isso vem de uma dor muito grande que ainda não curamos: a dor da colonização.
Gostaria de agradecer a Michelle pelo tempo concedido pra gente fazer essa entrevista, pelo carinho, pelos passeios, por ter compartilhado tanta informação preciosa comigo, por tudo que ela me ensinou em poucos dias, por me inspirar na luta antiespecista e pela banana levada pro aeroporto (e que ela esqueceu de me dar). Obrigada por tudo, amiga samaumeira. Sigamos criando raízes e nos tornando floresta.
A ausência de post semana passada (alimento esse blog semanalmente) não significa que estou fazendo uma pausa. Repare que quanto menos coisas aparecem aqui, mais coisas aparecem do outro lado da tela. E as últimas semanas foram cheias de uma infinidade de coisas, grandes e pequenas.
No lado profissional, teve o convite pra participar de um pequeno projeto que me deixou extremamente feliz e, ao mesmo tempo, ativou uma mini crise de síndrome da impostora (gostaria de dizer que não sofro disso, mas mentir é feio). A militância anda a todo vapor, com a criação de mais um coletivo (o terceiro do qual faço parte no meu território!), só que dessa vez se trata de um coletivo antiespecista. Porque queremos mostrar que veganismo não é coisa de parisiense branca e rica e que nossa quebrada não é um deserto antiespecista.
Nosso coletivo anarquista conseguiu um lote nos Jardins Operários, um fato histórico. Nós estamos na luta pra salvar a última zona agrícola, e uma das poucas áreas verdes, da nossa periferia e somos o primeiro coletivo a receber um lote. Ele faz parte dos lotes ameaçados por um projeto de centro comercial, totalmente inútil, que é o cavalo de Troia do momento pra passar o cimento por cima dessa terra que alimenta uma parte da classe trabalhadora, e imigrante, no nosso território. Como sempre, só a luta muda a vida.
Agora temos mais uma tarefa na nossa longa lista de tarefas da militância: plantar e compartilhar os frutos do nosso lote. Militar pode adquirir muitas formas e confesso que cultivar a terra é uma das maneiras mais prazerosas de militar. Além de nos transformar profundamente. Como canta Zé Pinto: “Amar a terra e nela botar semente / a gente cultiva ela e ela cultiva a gente”.
Passei a manhã e uma parte da tarde trabalhando no lote, junto com camaradas do coletivo, e voltamos pra casa com uma sacola cheia de comida dos jardins, presente das nossas vizinhas de lote. Percebi que cultivar a terra também deixa a gente mais generosa.
No lado pessoal, é tanta coisa que a atividade acontecendo da pele pra dentro é ainda mais intensa do que o que faço da pele pra fora. E ainda teve a visita de um dos meus sobrinhos e da namorada, que veio pedir a mão dela em casamento aqui (com a ajuda dessa tia, que escolheu o lugar e fez as fotos do pedido). Foi lindo e ela disse “sim”.
Paralelo a tudo isso estou trabalhando na transcrição da entrevista de duas companheiras de luta antiespecista que fiz em Belém (Pará), ano passado. Está preparada pra ouvir a palavra antiespecista amazônida? Mal vejo a hora de compartilhar com vocês!
Sem falar que transformamos nossa casa em berçário de plantas pra nossa horta (e pra horta do coletivo também). Começamos a semear em fevereiro e atualmente quase não tem espaço pras duas moradoras humanas, já que é muda pra todos os lados. Na foto acima tem apenas uma parte das nossas mudinhas, o que significa que todo dia passo pelo menos uma hora aguando tudo, colocando do lado de fora pra levar sol e depois trazendo tudo de volta pra dentro no final do dia. Fizemos bastante pra poder compartilhar com as amigas também. E muitas dessas sementes vieram dos Jardins Operários.
Esse foi o almoço de hoje e olhar pro meu prato sempre oferece uma janela pra ver a riqueza que é a minha vida. Aqui tem uma salada com dois tipos de alface selvagem, que ganhei hoje de manhã de Hugo, um dos operários-jardineiros, enquanto trabalhava no nosso lote. As laranjas (orgânicas, da Itália) eu consegui na ocupação onde mora minha namorada, que ganhou uma imensa caixa dessa fruta de uma vizinha que também é militante no nosso território. A couve veio do lote de Lucas, outro operário-jardineiro (que eu entrevistei no quinto episódio do podcast “Jardins da Comuna”, que criei junto com a Biblioteca Terra Livre). Lucas tem uma floresta de couve no lote dele e disse que eu podia pegar o tanto que eu quisesse, sempre que precisasse. O pão tradicional de semolina é feito por uma senhora argelina que trabalha na minha padaria preferida, perto da minha casa. E dentro do potinho tem hummus, feito por mim, com tahina libanesa que encontro na mercearia árabe também aqui perto (no pé do Cohab onde eu morei), de uma família marroquina que é uma simpatia só.
Além de alimentar o corpo e a alma, comida também pode nos inserir numa complexa rede de solidariedade e apoio mútuo. Uma refeição simples, mas que me conecta a várias pessoas bacanas e em luta e a espaços de resistência.
Tem dias em que sinto meu nível de energia no chão. Hoje é um desses dias.
Eles não aparecem do nada, esses dias sem energia. Ou, usando as palavras de Anne pra descrever o meu estado, esses dias em que “minha força vital parece ter sigo completamente drenada”. Eles são o resultado de vários dias (ou semanas, ou meses) de intenso esforço físico e, principalmente, emocional. As últimas semanas foram puxadas e eu gostaria dizer que vou tirar um tempo pra descansar e pra recarregar as baterias, mas a verdade é que coisas que precisam da minha atenção continuam acontecendo ao meu redor e pessoas que eu amo precisam de mim nesse momento.
Dividimos a casa com a proprietária, que mora no andar de cima (nós moramos no térreo e compartilhamos o jardim com ela). Ela é mexicana e viajou pro México, pro aniversário de 90 anos da mãe, algumas horas atrás. Anne saiu depois do café e foi montar uma exposição em um teatro aqui da periferia. As duas estariam fora de casa no horário de almoço, em trânsito ou sem a possibilidade de encontrar comida vegetal. Então acordei e cozinhei duas marmitas pra elas.
Eu queria dizer que cuidar das mulheres da minha vida me dá energia e que por isso fiz o almoço delas, sem que elas tenham me pedido. Mas não sei se é inteiramente verdade. Me dá prazer cuidar de pessoas que eu amo, principalmente mulheres. E ao mesmo tempo tenho consciência de que, por ser mulher, essa prática, quase um reflexo automático, de cuidar de outras pessoas é algo condicionado pelo sistema patriarcal. Algo imposto por causa do meu gênero, do lugar que ocupo na sociedade. Mas talvez eu encontre um prazer genuíno aqui. Sei disso porque quando faço esse trabalho de cuidado pra um homem (o que acontece raramente, glória à Deusa!) a reação do meu corpo e os sentimentos que me invadem são completamente diferentes.
Cozinhar pra mulheres não vai trazer de volta a minha energia no momento. Mas posso dizer com certeza que nutrir o corpo delas me dá prazer e alegria.
O prato que preparei hoje é a minha última invenção pra transformar restos em algo delicioso. Fiz uma ou duas vezes, com o que achei na geladeira, e o resultado foi tão espetacular que resolvi vir aqui compartilhar. Apesar de ter sido criado pra aproveitar as sobras de outras refeições, esse prato pode (e deve) ser preparado mesmo quando não tem nenhum resto na sua geladeira (foi o que aconteceu hoje).
Gostaria de oferecer um prato desse arroz pra cada mulher me lendo que também está esgotada, mas continua cuidado das pessoas ao redor dela, apesar do cansaço. Vou pensar em vocês quando for comer a minha parte de arroz, daqui a pouco. E parece que alguém soprou no meu ouvido: “Coma arroz, tenha fé nas mulheres.”
“Coma arroz tenha fé nas mulheres O que eu não sei Eu ainda posso aprender Se estou sozinha agora Estarei com elas mais tarde Se estou fraca agora Posso me tornar forte Lentamente, lentamente Se aprender, posso ensinar as outras Se as outras aprenderem antes Eu devo acreditar Que elas voltarão e me ensinarão
Mulheres vindas de mulheres Indo para mulheres Tentando fazer tudo que pudermos Com as palavras Em seguida, tentar trabalhar com ferramentas Ou com nossos corpos Tentando ficar o tempo que for preciso Lendo livros quando não há professores Ou quando eles estão muito distantes Ensinando a nós mesmas Imaginando outras lutando Devo acreditar que nós estaremos juntas E construir confiança o suficiente Para que quando eu precise lutar sozinha Eu saiba que há irmãs que Ajudariam se soubessem Irmãs que viriam Para me apoiar mais tarde
Canções que nos lembram de nós mesmas E nos fazem querer continuar com o que importa para nós
Vamos sair de novo Encontrando as mulheres que saem pela primeira vez Sabendo que esse amor faz uma boa diferença em nós Afirmando uma vida contínua com mulheres Devemos ser amantes médicas soldadas Artistas mecânicas agricultoras Todas em nossas vidas Ondas de mulheres Tremendo de amor e raiva
Coma arroz tenha fé nas mulheres O que eu não sei agora Ainda posso aprender Lentamente, lentamente Seu eu aprender posso ensinar as outras Se as outras aprendem antes Eu devo acreditar Que elas voltarão e me ensinarão”
(Partes do poema “Coma arroz, tenha fé nas mulheres”, de Fran Winant. Tradução por Marcella. O poema inteiro pode ser lido aqui.)
Arroz com legumes e molho de amendoim
Como expliquei no texto, essa é uma receita pra usar os restos da geladeira. A fórmula é bem simples: uma parte de arroz cozido pra uma parte de legumes cozidos, mais o molho de amendoim, que é o que faz toda a diferença aqui. Dá pra deixar a receita ainda mais rica acrescentando tofu ou tempeh. Ou, como fiz aqui, grãomelete em tirinhas. Mas isso é opcional. Se for cozinhar legumes especialmente pra essa receita, minha sugestão é: repolho (salteado), cenoura (em palitos fininhos, crua ou ligeiramente salteada) e couve (salteada). Acho que é a mistura mais perfeita com esse molho. Sou nordestina e acho que o coentro aqui é essencial, mas se quiser deixar de fora, quem manda na sua receita é você.
Arroz cozido (qualquer um. Usei arroz integral)
Legumes cozidos (Usei: ervilha -congelada, que cozinhei na água e sal- repolho verde, couve e cogumelo Paris)
Melado de cana (ou um tico de açúcar – melhor se for mascavo)
Cebola picada (opcional. Usei chalota, que é mais suave)
Alho picado
Pimenta calabresa (opcional. Usei pimenta d’Espelette, que é bem forte)
Água
Se estiver usando restos, misture tudo e aqueça em fogo brando (pra não queimar). Enquanto isso prepare o molho. Se estiver cozinhando os elementos especialmente pra fazer esse prato, cozinhe o arroz, os legumes e o grãomelete (ou tofu/tempeh), se tiver usando.
Misture todos os ingredientes do molho e junte água aos pouquinhos, uma colher de sopa por vez, até que ele se torne líquido mas ainda bem cremoso. Pra quem precisa de proporção, usei 2 colheres de sopa cheias de pasta de amendoim, um limão galego pequeno, umas 2-3 colheres de sopa de shoyu, 1 colher de sopa de melado, 1 chalota pequena, um dente de alho grande e um pouquinho de pimenta. Depois acrescentei água aos poucos. Se estiver usando restos que já estão salgados, cuidado pra não exagerar no shoyu do molho, mas como cozinhei tudo especialmente pra fazer essa receita, não salguei o arroz e coloquei pouquíssimo sal nos legumes, por isso fiz o molho um pouco mais salgado.
Quando o arroz/legumes/grãomelete (ou tofu/tempeh) estiverem bem quentes, desligue o fogo e despeje o molho por cima. Misture bem, junte o coentro e misture novamente. Prove e corrija o sal, se necessário. Esse prato tem que ficar suculento: nem seco demais, nem nadando em molho. Se fez pouco molho e seu arroz ficou meio seco, faça mais um pouco pra corrigir. Se colocou molho demais e a coisa virou sopa, danou-se! Mas vai ficar gostoso mesmo assim.
Sirva imediatamente, com mais coentro e pimenta calabresa polvilhada por cima.
Ontem foi o equinócio de primavera aqui no hemisfério norte, o que marca oficialmente o primeiro dia da primavera. Mas hoje amanheceu chovendo, o clima esfriou bastante e na minha cozinha nada lembra as estações mais quentes: só tem batata, repolho, jerimum e alho-poró. Ainda tem cheiro de inverno por aqui e estou escrevendo essas linhas colada no aquecedor, embaixo de várias camadas de roupa.
Mas aos poucos a estação está mudando e a vida começou a brotar ao meu redor. A imensa árvore do jardim, pelada durante meses, já cobriu seus galhos de olhos verdinhos, de onde sairão as próximas folhas. Os passarinhos estão cantando mais alto. Os narcisos floriram e os botões de tulipas já estão visíveis, avisando que em breve estarão aqui.
Já comecei a semear as plantas que irão pra horta esse ano e, emocionada com o sucesso do ano passado, tem mudas de mais de 10 variedades de tomates na minha varanda. Posso explicar esse entusiasmo.
Eu cresci comendo tomates de supermercado, sempre comprados verdes e consumidos antes de atingirem a maturação. Aliás o costume de comer tomate verdoso é tão forte que um tomate maduro, na sua suculência e fragilidade, é visto como algo a ser evitado: muitas pessoas vão dizer que está “maduro demais”, que assim, “mole”, ele não é gostoso. Só depois de ter acesso a tomates de estação, orgânicos e colhidos/consumidos maduros, pude notar o abismo de diferença em matéria de sabor. E depois de ter começado a plantar meus próprios tomates, selecionando as variedades mais gostosas, colhendo apenas quando eles estão prestes a explodir de tão maduros e degustando imediatamente depois da colheita, minha relação com tomate mudou completamente.
Não compro tomates fora de estação, apesar de poder encontrar tomates (produzidos em estufas ou importados de países quentes) o ano inteiro nos supermercados franceses. E quando estou em Natal e só tenho acesso a tomates de supermercado, quase nunca como cru. Então espero o ano inteiro pelos dois, três meses quando terei acesso aos melhores tomates, aqueles que crescem no meu quintal. E são semanas de puro deleite!
Se você está me lendo no hemisfério sul talvez tenha tomates maduros na sua cozinha nesse exato momento. Nesse caso, eu tenho um presente pra você.
Tem uma receita que guardo pra essa época do ano, minha receita preferida de macarrão. Eu a descobri anos atrás, em um blog que não existe mais. A versão original usava animais, mas foi fácil adaptar. O ingrediente principal aqui é o tomate, que entra cru na receita. Sim, um molho de tomate cru. Por isso espero o verão chegar com seus tomates suculentos e saborosos. Essa receita também pede abacates maduros no ponto. Pode parecer estranho colocar abacate em uma receita de macarrão, mas peço que confie que vai dar muito certo. É uma mistura mágica, tomate, abacate e manjericão, realçados pour um tico de tofu defumado (usado aqui como tempero). Tão deliciosa que vale a pena esperar o ano inteiro por ela.
Macarrão com tomate cru e abacate
O tomate é a estrela aqui, então só faça esse prato se tiver tomates verdadeiramente maduros (incrivelmente vermelhos, pesados, macios e recheados de suco) e, idealmente, orgânicos. O tofu defumado leva o sabor desse prato pras alturas, mas na falta dele, tofu comum quebra o galho. Nesse caso, fumaça em pó (em lojas de temperos) acrescenta a profundidade de sabor característica de alimentos defumados.
Macarrão da sua preferência
Tomates maduros (os melhores e mais saborosos que encontrar)
Abacate (no ponto)
Tofu defumado (ou tofu comum + fumaça em pó, se encontrar)
Manjericão fresco
Azeite
Molho de soja (shoyu)
Sal e pimenta preta
Os tomates e abacate devem estar em temperatura ambiente, então se eles estavam na geladeira, retire algumas horas antes de começar a cozinhar.
O molho fica pronto em minutos, então pode começar colocando a água pra cozinhar o macarrão no fogo (não esqueça de salgar a água).
Enquanto espera ela ferver corte o tofu defumado em cubos pequenos (não precisa usar muito, só o suficiente pra dar sabor) e, numa frigideira, frite em um pouco de azeite até ficar levemente dourado. Tempere com shoyu (molho de soja) e reserve. Se estiver usando tofu comum, frite do mesmo jeito, mas tempere com uma mistura de shoyu e fumaça em pó (se a sua for salgada, cuidado pra não exagerar no shoyu e deixar o tofu salgado demais!). Reserve.
Coloque o macarrão na água fervente e, enquanto ele cozinha, corte os tomates em pedaços pequenos e transfira pra um recipiente grande (onde você for servir o macarrão). Use bastante tomate. Junte pedaços médios de abacate (a proporção deve ser um pouco menos de abacate do que de tomate), tempere tudo com sal e pimenta preta (seja generosa com a pimenta) e regue generosamente com azeite. Por último junte os cubos de tofu e o manjericão (se usar folhas grandes, rasque com as mãos. Se as folhas forem pequenas, pode deixar inteiras).
Escorra o macarrão cozido e despeje por cima da mistura tomate/abacate/tofu/manjericão. Misture bem, prove, junte mais sal/pimenta, se necessário, e sirva imediatamente.
Eu prefiro esse prato quente, mas ele também pode ser servido frio/gelado, como uma salada de macarrão.
Desde o ano passado falo que vou compartilhar essa receita… Acontece que, como digo sempre, comida de panela é de Humanas, mas bolo é de Exatas. O que significa que a alquimia delicada entre os ingredientes e, principalmente, as proporções, exigem precisão. E eu ainda não estava 100% segura com a minha receita.
Durante os testes, às vezes dava muito certo, às vezes ficava muito gorduroso, outras vezes não ficava doce o suficiente. Os bolos-testes sempre eram comidos, e apreciados, mas eu queria chegar numa fórmula estável antes de compartilhar a receita com vocês. Foi uma das receitas que mais exigiu testes na minha cozinha: comecei em 2021 e só agora, em março de 2023, cheguei onde queria. Pois é, vocês não imaginam o investimento de tempo e ingredientes que entra no desenvolvimento de receitas. Sem falar na quantidade de louça suja que esse trabalho gera! Mas finalmente vou poder compartilhar a versão final, perfeitinha, com vocês.
“Mas que danado de bolo trabalhoso é esse, mulher?”, vocês devem estar perguntando. Talvez o que vou dizer agora surpreenda quem não é íntima da cozinha, mas geralmente são as receitas mais simples que dão mais trabalho. A boa notícia é que agora que a receita está no ponto, vai ser muito fácil pra vocês prepará-la em casa. É um bolo humilde, singelo, mas que representa muito pra mim em termos de sabor e de memória afetiva.
Quem é de Natal (minha cidade) conhece o famosíssimo “Bolo da Moça”. Em outros lugares do Nordeste (e acho que do Norte também) ele é conhecido por outros nomes, mas a receita é basicamente a mesma: uma quantidade grande de ovos e um arroubo de laticínios (leite condensado + leite de vaca + manteiga). Como ele leva pouca farinha, o resultado final é entre o bolo e o pudim, denso e quase cremoso. Se a gente quiser ser malvada com esse bolo podemos dizer que parece um bolo “solado” (um bolo que não cresceu). Eu gostava desse bolo, por ter essa textura tão peculiar, mas lembro que o cheiro forte de ovo sempre me incomodou. Sem falar que ele é exageradamente doce.
Pesquisei a origem desse bolo e parece que é uma adaptação do “Bolo de Leite” português, que leva muitos ovos e muito leite de vaca líquido. Só que na versão brasileira ele era feito com leite de coco. Claro que aquela multinacional que explora vacas em números estratosféricos e que colonizou quase todas as nossas sobremesas não ia deixar de colonizar mais essa receita! Assim o leite de coco foi substituído por leite condensado. Muitas pessoas acreditam que vem daí o nome do bolo (“da moça”, como a moça da lata).
Se levei você a pensar que vou propor aqui uma versão vegetal do Bolo da Moça, não é bem isso. Minha ideia inicial era fazer um bolo de jerimum (abóbora), mas como logo nos primeiros testes ele ficou com a textura densa e cremosa do Bolo da Moça, não pude não pensar nele. Não era minha intenção “veganizar” esse bolo tão popular na culinária do meu estado, mas acabei desenvolvendo um bolo que é maravilhoso por si só, mas que também pode ser lido como uma evolução duplamente descolonizada da receita especista.
Já passei muita raiva com o “raio gourmetizador”, aquela tendência de transformar nossas receitas típicas em algo mais caro e mais pretensioso, mas não necessariamente mais gostoso. Basicamente adicionando Nutela e leite Ninho em tudo (mais uma vez, entupindo tudo de laticínios! Eu ouvi colonialismo alimentar novamente?). Minha alegria hoje é ver o quanto a culinária vegetal não só retira nossa alimentação do padrão especista, parando de ver animais e suas secreções como “ingredientes” e valorizando o que vem da terra (e, por tabela, quem está na terra plantando), mas também tem o poder de descolonizar a maneira como cozinhamos.
Voltemos pro bolo. Essa receita é uma base que pode ser adaptada em várias direções. Os ingredientes são acessíveis pra quem está em qualquer lugar do território, basta fazer algumas alterações em função do que você encontra na sua cidade. E é um bolo perfeito pra quem não tem costume de fazer bolos: como ele não vai crescer nem ficar fofinho, não tem como você “solar” o seu bolo. Ele também é o primeiro bolo de liquidificador que publico aqui e que coisa maravilhosa é fazer bolo desse jeito! Tão simples, tão rápido, pouca louça suja depois…
O sabor do jerimum vai ser mais ou menos presente dependendo do tipo de jerimum utilizado. Idem pra cor alaranjada do bolo. Em Natal eu uso jerimum de leite (meu preferido) ou jerimum caboclo, que são cultivados no RN. Aqui na França já fiz com abóboras do tipo butternut e moranga. Aconselho assar o jerimum pra que ele fique mais concentrado, quase caramelizado, mas se não puder, cozinhe no vapor que também dá certo. Só não cozinhe na água, pois ele vai ficar encharcado, atrapalhando a textura do bolo, e deixando o sabor um pouco aguado.
Quem acompanha o meu trabalho sabe que não sou uma grande apreciadora de doces. Mas esse bolo acabou se tornando muito especial pra mim. Imagina a alegria dessa potiguar ao criar um bolo tão cremoso e delicioso quanto o outro lá, mas sem exploração animal e honrando o nosso vegetal mais amado? Se você ainda não sabe, quem nasce no Rio Grande do Norte é chamada de “papa-jerimum”. Mas mesmo pra quem é de outros estados, não deixe de experimentar esse bolo. A cremosidade e a delicadeza dele vão te conquistar.
Bolo cremoso de jerimum (abóbora)
Aviso: esse bolo está mais perto de um pudim/flan do que dos bolos fofinhos e entupidos de recheios que costumamos ver em padarias. Mas o sabor quase caramelizado e a textura cremosa são um carinho pras papilas. Use o leite vegetal que mais gostar. Em Natal, uso leite de coco fresco e confesso que é o meu preferido (apesar de deixar o bolo um tico mais gorduroso). Aqui na França uso leite de soja e também fica muito bom (a soja, rica em proteína, carameliza até melhor). Um óleo vegetal neutro é ideal (girassol, por exemplo), mas já fiz com óleo de coco e ficou bom, embora o sabor de coco domine tudo (nem todo mundo na minha família aprovou). Pra perfumar o bolo você pode usar canela, uma mistura de especiarias, extrato de baunilha ou, pra ficar deliciosamente brasileiro, cumaru ralado na hora. Mas é opcional. Essa receita faz um bolo pequeno e isso é intencional: assim ele assa de maneira homogênea e atinge a textura ideal (cremosa, mas no ponto de corte). Ainda nutro a ideia de fazer uma versão sem trigo, usando fécula de mandioca ou amido de milho, mas essa versão vai ter que esperar mais um pouco. Dependendo do tipo de leite (se usar leite industrializado adoçado) e do jerimum, você vai precisar de mais ou menos açúcar. Uso 1/2 xícara quando faço esse bolo aqui em casa, porque gosto de bolos com pouco açúcar. Mas quando cozinho pra outras pessoas, uso 2/3 de xícara (o bolo fica doce, mas sem exagero).
*A medida na receita é uma xícara, mas você não precisa ter uma xícara medidora em casa. Use um copo pequeno ou qualquer caneca pequena que tiver no armário como medida, basta respeitar as proporções (Ex: 2 copos de jerimum, 1 copo de farinha, 1/3 de copo de leite etc).*
2 xícaras de jerimum (abóbora), assado ou cozido no vapor
1 xícara de farinha de trigo
2/3 de xícara de leite vegetal (de coco fresco ou de soja)
1/3 de xícara de óleo vegetal (de sabor neutro)
2/3 de xícara de açúcar (leia explicações sobre o açúcar acima)
Opcional (escolha um):
–Canela
–Mistura de especiarias (canela + cravo + noz moscada)
–Cumaru (ralado na hora)
–Extrato (ou essência) de baunilha
Comece assando o seu jerimum. Corte-o pela metade, se for bem pequeno, ou em pedaços médios, se for grande e leve ao forno médio pra assar até ficar bem macio. O tempo de cozimento vai depender do tipo de jerimum e do tamanho dos pedaços, então espete com um garfo pra verificar.
Quando estiver bem macio retire do forno e use uma colher pra retirar as sementes e separar a polpa da casca. Dependendo do jerimum (abóbora de pescoço ou moranga), eu como com casca, mas descarte essa parte se a sua for muito dura. Meça duas xícaras de jerimum assado (aperte bem na hora de medir) e bata no liquidificador com o leite vegetal, o óleo, o açúcar e a canela, se estiver usando (ou a baunilha, ou o cumaru), até ficar bem cremoso. Por último acrescente a farinha de trigo e bata mais alguns segundos, na velocidade baixa, só até ficar bem misturado.
Despeje a massa em uma forma pequena (se tiver uma forma de pudim, aquelas com o furo no meio, melhor ainda), previamente untada (com óleo) e enfarinhada, e leve ao forno baixo-médio (180 graus). Não precisa pré-aquecer, já que esse bolo não vai crescer, mas se você assou o seu jerimum, seu forno ainda estará quentinho. O tempo de cozimento vai depender do seu forno, então você vai ter que abrir a porta e verificar algumas vezes (mais uma vez, esse bolo não cresce, então pode abrir a porta do forno sem medo de estragar tudo). O bolo está pronto quando ficar levemente inchado (um pouco como um suflê), as bordas começam a se soltar da forma e a parte de cima ficar bem corada (marrom), como na foto abaixo. No meu forno levou exatos 42 minutos (cronometrei).
Não faça o teste do palito aqui, pois esse bolo sai do forno ainda bem mole. Ele vai ficar firme depois de frio. Por isso tem que esperar ele esfriar completamente antes de degustá-lo.
Rende um bolo pequeno. Se conserva em temperatura ambiente (se colocar na geladeira, a textura muda e fica mais densa).
Quem leu meu último post sabe que falei de pratos completos como uma maneira de sair da estrutra culinária especista (carne animal + vegetais como acompanhamentos). Apesar de ser a maneira que cozinho no dia-a-dia há muitos anos, porque é mais prático, rápido e suja menos louça, além de reciclar os restos da geladeira, percebi que tem poucas receitas de pratos completos aqui no blog. Vim engrossar a lista com mais uma e não é qualquer uma, não! Hoje vou compartilhar a receita do famoso rubacão de Fran.
Conheci Fran através de uma amiga de Recife, Camila, que é uma das leitoras mais antigas do blog. E além de ser uma pessoa maravilhosa, Fran é cozinheira e vegana. Ela cresceu entre o Norte e o Nordeste, mas a família dela é da Paraíba. E na Paraíba tem o quê? Rubacão.
Se você nunca ouviu falar nesse prato emblemático da Paraíba, deixa eu começar dizendo que ele é bem controverso. Algumas pessoas pensam que “rubacão” é sinônimo de “baião de dois”, mas são pratos distintos, apesar de parecidos. Enquanto o baião de dois é composto por arroz, feijão verde, carnes e, opcionalmente, queijo, o rubacão tem tudo isso mais uma dose obscena de nata. Ou seja, dá pra resumir dizendo que é um baião de dois cremoso. Mas aí tem gente que coloca nata no seu baião de dois e a coisa fica confusa.
Outra informação importante sobre o rubacão: ele é feito com arroz da terra (arroz vermelho), um arroz típico da Paraíba. Esse é o meu arroz preferido e além de ter um sabor maravilhoso, ele é muito rico em amido e adquire uma textura ultra cremosa depois de cozido. É por essa razão que, no RN, sempre preparamos arroz da terra no leite (de vaca ou de coco).
E como se faz um prato tão especista, com tantos pedaços de animais e suas secreções, em versão vegetal (“vegana”)? Fran tem o segredo.
A cremosidade, que seria dada pela nata, fica por conta de uma mistura de leite de coco e de amendoim (ambos frescos). Como ela defuma o coco antes de fazer o leite, o prato tem um gostinho defumado que, na cozinha especista, é trazido por algumas carnes de animais. E, falando em carne, na versão vegetal tem cogumelos que, pra mim, é a verdadeira carne da terra, tanto pela textura quanto pelo sabor intenso. O resto segue igual: feijão verde, arroz da terra, coentro, cebola, alho…
Fran usa feijão verde, o que é tradicional no rubacão, mas ouso sugerir (que a deusa tape as oiças de Fran pra ela não ouvir isso!) que com feijão macaça fica ainda melhor. Pra quem não tem acesso a feijão macaça nem ao feijão verde (que é o feijão macaça colhido antes de amadurecer), o fradinho pode ser usado aqui também.
Rubacão é um dos meus pratos preferidos e uma riqueza da culinária nordestina. É uma receita elaborada, o que contradiz a declaração que fiz no início desse post (“pratos completas são mais simples e sujam menos louça”). Mas entenda que se trata de um prato pra comemorar ocasiões especiais. Como cada passo dado em direção ao fim do especismo e da supremacia humana.
O rubacão de Fran
Use uma proporção de 2/3 de feijão verde pra 1/3 de arroz cru. Ou, se tiver usando feijão macaça, que é seco, use 1 parte de feijão cru pra 1 parte de arroz cru. A diferença é que feijão verde não aumenta quase nada depois de cozido, contrariamente ao feijão macaça (que dobra de volume). No final queremos aproximadamente a mesma quantidade de feijão e de arroz cozidos. O resto vai sem medidas exatas, basta usar um pouco de bom senso culinário e se deixar guiar pelos seus gostos.
Feijão verde (ou macaça ou fradinho)
Arroz da terra (vermelho)
Amendoim cru
Coco seco
Cogumelo shimeji fresco
Cogumelo shitake seco
Cebola
Tomate
Coentro
Alho
Óleo
Sal e pimenta preta
Na véspera:
– Coloque o amendoim (descascado, mas com a película) de molho em bastante água fria. Ele deve ficar de molho por pelo menos 12 horas.
-Coloque o feijão macaça, ou fradinho, de molho (Não precisa fazer isso se estiver usando feijão verde).
-Coloque o arroz da terra de molho (Fran não faz isso, mas eu acho importante pro arroz cozinhar mais rápido e de maneira mais homogênea).
No dia seguinte:
Escorra a água da demolha e bata o amendoim com água limpa. Use aproximadamente 1 medida de amendoim (escorrido) pra 2 medidas de água. Deixe o liquidificador funcionando até a mistura ficar bem macia. Coe o leite de amendoim (idealmente usando um voal, mas pode usar uma peneira de metal fina, se não tiver) e leve ao fogo até ferver (essencial, pois esse amendoim aí tá cru!). Você vai perceber que o leite vai engrossar, o que é normal (e desejável). Reserve.
Faça o leite de coco como ensinei aqui. Se quiser fazer como Fran, coloque o coco seco (depois de ter feito um furo pra retirar a água – procure o olho do coco) diretamente na chama do fogão até ele ficar levemente chamuscado. Isso vai perfumar o coco e seu leite vai ficar com um gostinho de defumado. Depois é só seguir as instruções da receita de leite de coco.
Escorra o feijão macaça (ou fradinho) e cozinhe na pressão com um pouco de sal. Se estiver usando feijão verde, cozinhe em bastante água salgada, mas em uma panela comum (feijão verde é fresco cozinha muito mais rápido que feijão seco).
Em outra panela, cozinhe o arroz da terra (pode ser na água do molho) com um pouco de sal até ficar macio.
Ferva um pouco de água e jogue por cima do cogumelo shitake seco (o suficiente pra cobrir tudo). Deixe hidratar, coberto, por pelo menos 20 minutos. Não precisa usar muito shitake, um punhado já é suficiente pra perfumar uma panela de rubacão.
Enquanto o feijão cozinha e o shitake hidrata, prepare os outros ingredientes. Pique a cebola, o tomate (em quantidades iguais) e o alho e reserve em recipientes separados. Corte (ou rasque) o shimeji em pedaços grandes. Escorra o shitake que estava de molho (reserve o caldo) e corte em pedaços miúdos.
Agora você tem todos os elementos do rubacão (feijão cozido, arroz cozido, leite de amendoim, leite de coco, shitake hidratado e verduras picadas) e só falta juntar tudo e finalizar.
Em uma panela grande e, idealmente, com o fundo grosso, refogue o cogumelo shimeji em um pouco de óleo até ficar bem dourado. Retire da panela e reserve.
Na mesma panela (não precisa lavar), junte um pouco mais de óleo e refogue a cebola. Quando estiver começando a dourar, junte o alho e refogue por mais alguns segundos. Acrescente o tomate e deixe cozinhar no fogo alto, mexendo de vez em quando, até se tornar um molho espesso.
Despeje o arroz cozido, o feijão cozido, o shimeji salteado, o shitake hidratado e o caldo do shitake nessa panela, sobre o molho de ceboa/tomate e misture bem. Junte partes iguais de leite de amendoim e de coco, tempere com sal e pimenta preta a gosto e cozinhe em fogo baixo, até tudo ficar borbulhante e bem espesso. Se preciso, vá acrescentando mais leite de coco e de amendoim aos poucos. O rubacão deve ficar bem cremoso, como um risoto. Prove e corrija o sal/pimenta, se necessário.
Por último junte bastante coentro picado, mexa uma última vez, apague o fogo e deixe descansar, coberto, por uns 15 minutos antes de servir. O sabor fica ainda mais apurado depois do descanso.
No final de novembro eu estive em Porto Alegre e tive o prazer de fazer uma atividade junto com Bruna Crioula e a cozinha solidária do MTST. O evento fez parte da Jornada do Veganismo Popular, que durou todo o mês e aconteceu em várias cidades do país. Naquele encontro descobri que a cozinha solidária do MTST de Porto Alegre serve unicamente refeições 100% vegetais. O responsável pela cozinha explicou que não era uma decisão política: simplesmente não tinha orçamento pra colocar carne no cardápio. Como antiespecista e militante pelo veganismo popular, vou te dizer que isso é político, sim, como tudo que diz respeito ao acesso à comida (ou à falta dela) e quem consideramos como comida. Mas a conversa de hoje não é sobre isso, é sobre outra coisa que descobri naquele dia, relacionada à primeira. Como, por questões econômicas, não dava pra colocar carne no cardápio, o pessoal da cozinha solidária explicou que serve “carne de soja” (proteína texturizada de soja -PTS) todos os dias pra preencher o vazio deixado pela carne animal.
Mas será que precisamos de carne de soja se quisermos parar de comer, e servir, animais?
Na segunda parte do post sobre o paradigma da mistura gostaria de tratar do aspecto prático: como preparar refeições 100% vegetais e sem algo que “ocupe o lugar da carne” no prato. E concluir com uma reflexão que vai muito além da cozinha e tem um imenso potencial transformador.
Feijão macaça (branco), arroz, jerimum com coco, rúcula e tomate.
Construir uma estrutura alimentar antiespecista: valorizar o vegetal
É comum pensar que se você quer parar de consumir animais, precisa descobrir o que colocar no lugar da carne. Na verdade o que você realmente precisa fazer é repensar a estrutura da nossa refeição principal, o almoço. Ao invés de partir do animal (o protagonista da refeição) e escolher os acompanhamentos (vegetais) em função disso, você vai ter que imaginar um novo padrão de almoço sem essa hierarquia. Diga adeus a estrutura elemento principal + acompanhamentos e passe a ver cada componente do prato como igualmente importante.
Pode parecer que isso é mais trabalhoso do que comprar um “hambúrguer vegano”, ou um “falso frango”, ou até a ultra popular proteína (carne) de soja, e deixar todo o resto como antes. Mas garanto que embora necessite um pequeno tempo de adaptação no início, logo essa maneira de cozinhar e compor seus cardápios vai se tornar a coisa mais natural do mundo e não vai mais exigir nem um pingo de trabalho mental, nem físico, extra da sua parte. Vai ser tão simples como quando você cozinhava da antiga maneira, a maneira especista. Garanto.
Esquerda: feijão preto, arroz da terra (vermelho), purê de jerimum, couve refogada, rúcula com abacaxi. Direita: feijão macaça (marrom), arroz da terra, bolinho de macaxeira no forno, carne de caju misturada com um resto de chuchu refogado, rúcula com manga.
E como colocar isso em prática? Não tem nada de complicado, nem de caro, você vai ganhar em autonomia (adeus dependência do agroalimentar!), não vai gastar dinheiro com ultraprocessados e suas refeições se tornarão muito mais saborosas e nutritivas.
Pra facilitar a compreensão, vou começar fazendo um resumo das duas sugestões principais e depois entro nos detalhes. Minha intenção, como sempre, é promover autonomia alimentar, melhorar a saúde do povo e enfraquecer o sistema especista e capitalista. Prontas? Bora lá.
Tenho duas sugestões de modelo pra te ajudar a criar uma refeição vegetal completa que não precisa de algo pra representar a “mistura”.
1- Feijão + Arroz + Verdura cozida + Verdura crua
(Variações: Farofa/Farinha de mandioca no lugar do arroz. Ou macarrão. Ou cuscuz de milho.)
Nada novo por aqui, já que essa “fórmula” reflete a maneira como a maior parte das pessoas (no Brasil) se alimenta no dia-a-dia, mas continue lendo pra entender o detalhe que faz toda a diferença. Lembrando que, do ponto de vista nutricional, juntar esses 4 elementos (leguminosa + cereal + vegetal cozido + vegetal cru) é o ideal. Mas eu diria que essa combinação também é perfeita pra criar diversidade de sabor e textura e tornar o prato interessante do ponto de vista gustativo.
Apesar de combinar os mesmos elementos da primeira fórmula, pratos completos, onde os ingredientes são misturados e acompanhados de um molho saboroso, são um “modelo” visualmente alternativo, onde é mais difícil ter a impressão de que tem um lugar vazio ali, que precisa ser preenchido com uma “mistura” vegetal. Também é uma maneira mais rápida de cozinhar e que suja menos louça.
Agora vamos entrar nos detalhes pra entender o que precisa acontecer pra que esses “modelos” funcionem.
Esquerda: feijão preto, arroz com cenoura ralada, couve refogada, folhas com abacaxi. Direita: arroz, pirão de maxixe, feijão preto, banana, folhas com abacaxi.
Feijão + Arroz + Verdura cozida + Verdura crua
O segredo aqui é saber preparar cada elemento da melhor maneira possível, pra que cada um deles tenha sabor sozinho e, misturados no prato, os sabores se intensifiquem e se complementem, oferecendo satisfação pras papilas. Como fazer isso? Vou começar aprofundando cada elemento separadamente, depois colocarei tudo junto no final. Ou seja, eu escrevo como cozinho.
Aprenda a preparar feijão (gostoso)
O ponto de partida é saber fazer um feijão gostoso. Cereais e verduras/frutas são igualmente importantes pra nutrir nosso corpo, mas geralmente comemos esses outros grupos de alimentos nas outras refeições, enquanto o feijão só aparece no prato, quando aparece, na hora do almoço. Por isso ele é essencial aqui. Tudo bem se você não comer feijão um dia ou outro, mas procure ter mais almoços com feijão do que sem ele.
Aqui entra o primeiro detalhe que vai fazer toda a diferença. Pra se livrar do paradigma da mistura e, por tabela, da maneira especista de estruturar a alimentação, seu feijão tem que ser gostoso ao ponto de você sentir prazer ao comê-lo puro. Infelizmente muita gente não sabe fazer feijão, muito menos um feijão gostoso. Por isso o artifício de usar pedaços de animais (charque, bacon), ou temperos artificiais, pra “dar gosto” ao feijão.
Ele é o alimento mais importante da alimentação do nosso povo, a proteína do proletariado e o que sobra no prato quando a carestia leva todo o resto. Devemos muita coisa ao feijão. Então vamos tratá-lo com o respeito e a gratidão que ele merece e aprender a fazer o melhor feijão do bairro. Quiçá da cidade! Experimente as receitas sugeridas abaixo, adapte ao seu paladar até descobrir como fazer um feijão perfeito pra você. E, se puder, compre o melhor feijão que encontrar (sem veneno, da reforma agrária) e varie os tipos. Tem tantas variedades de feijão cultivadas no Brasil que seria um crime não aproveitar! E não esqueça das favas!
Assim como no caso do feijão, saber fazer um arroz gostoso, ou farofa (ou os dois) faz parte dos conhecimentos culinários de base. A dupla “feijão com arroz/farinha” faz parte da nossa cultura alimentar e, embora não seja obrigatória pra se livrar do paradigma da mistura, é essencial pra muita gente. Eu como feijão com verduras na maior parte do tempo (como cereais nas outras refeições), mas entendo que a maior parte das pessoas só se sente satisfeita quando almoça feijão com arroz.
Não tem tutorial pra fazer arroz aqui no blog, porque faço parte do pequeno grupo de pessoas que não faz questão nenhuma de comer arroz no almoço. Mas de farofa, meu bem, eu entendo.
Dica pro1: farofa é a categoria de prato perfeita pra reaproveitar todos os restos de refeições anteriores podendo se tornar um elemento que agrega muito sabor à refeição com esforço mínimo, ao mesmo tempo que você evita desperdício e cozinha de maneira econômica.
Dica pro2: colocar verduras pra cozinhar junto com o arroz é uma maneira de simplificar suas refeições, além de incrementar o sabor. Aliás, essa dica também vale pro feijão.
*Um feijão gostoso junto com um arroz com verduras (cenoura ralada, beterraba ralada, talos de couve, brócolis, vagem…ou tudo junto) já é uma refeição completa, que exige pouco trabalho e poucos ingredientes. Junte uma fruta de sobremesa, se puder, e é só alegria!*
Feijão preto, purê de batata (no leite de coco), arroz, abobrinha refogada com tomate, folhas com abacaxi.
Verdura cozida
É aqui que muita gente, sem intimidade com a culinária vegetal, comete os maiores erros. Eu olho pra um chuchu ou pra um repolho branco, dois dos legumes mais acessíveis e, infelizmente, desprezados, e vejo mil possibilidades. Um refogado/ensopado de legume é, pra mim, o elemento de sabor mais intenso na refeição. Feijão e arroz/farinha alimentam e satisfazem, mas um refogado de legume é o veículo perfeito pros temperos e molhos que antes iam parar nas carnes animais. E apesar de comer o mesmo feijão com arroz todos os dias (que você pode preparar uma vez por semana e congelar), variando as verduras refogadas/ensopadas você vai ter a impressão de comer um prato diferente a cada dia com esforço adicional mínimo.
Prefiro falar de “verdura crua”, ao invés de “salada”, porque muita gente tem uma ideia limitada, e fixa, do que é salada. Geralmente essa palavra é associada a alface + tomate (podendo ter também pepino, cebola e/ou cenoura). O perigo aqui é pensar que se não tiver todos esses ingredientes associados à ideia de “salada”, então não podemos acrescentar um elemento cru à refeição. E comer verduras cruas não é só uma questão de saúde, é riqueza pro paladar!
Pode ser só um punhado de rúcula, uma mistura de folhas verdes (rúcula + alface), folhas com frutas, ou apenas cenoura ou beterraba crua ralada. Como eu falei mais acima, além de ser importante, nutricionalmente falando, esse elemento cru realça muito o sabor da refeição e traz contraste de textura (importante pra alegrar o paladar).
Dica pro1: incluir uma fruta crua é o pulo do gato pra fazer as melhores saladas do mundo. Acredite. Deve ser a mistura da acidez (realça sabores) com o contraste doce-salgado que deixa tudo tão gostoso. Abacaxi e manga são minhas frutas preferidas pra comer com o almoço. Mamão e banana vêm em segundo lugar. Muitas vezes a “verdura crua” do meu almoço é simplesmente uma banana e nem tenho palavras pra dizer o quanto amo feijão com farofa e banana!
Dica pro2: um bom molho pra salada pode transformar até um simples punhado de pepino em algo delicioso. Recomendo o molho tradicional pra saladas cruas francês (receita da minha cunhada;) Também expliquei a fórmula pra criar molhos pra salada sempre deliciosos nesse post.
Esquerda: feijão macaça (marrom), arroz da terra no coco, alface, pepino e manga. Direita: fava marrom, brócolis no vapor e batata doce cozida.
Esquerda: arroz com vagem, feijão macaça (branco), banana, beterraba cozida, couve-flor no forno, folhas. Direita: feijão preto, arroz, beterraba cozida, couve refogada, folhas com abacaxi e manga.
Esquerda: feijão macaça (branco), farofa de banana e couve, arroz à grega, jerimum com coco, folhas com abacax. Direita: chuchu refogado, arroz, farofa, feijão macaça (branco), folhas.
Esquerda: rubacão (um tipo de baião de dois), farofa, banana da terra frita, carne de caju, quiabo grelhado, alface com mamão. Direita: feijão macaça (marrom), quiabo grelhado, farofa, carne de caju, alface com manga.
“Certo, mas você tem paladar de vegana (comedora de planta)! Eu não consigo achar um prato de feijão com arroz e repolho refogado gostoso. Falta sabor aí e eu vou, sim, sentir falta da mistura.” Nesse caso a minha resposta é que talvez pra você a segunda sugestão de “fórmula” seja mais interessante:
Algumas pessoas não conseguem (ainda) olhar pra um prato de feijão com arroz/farofa e verdura e ver uma refeição completa. Acredito que é porque seu paladar foi moldado dentro do especismo (que vê um pedaço de animal, e suas secreções, como exemplo máximo de sabor), e de uma alimentação limitada, mas também porque, visualmente, elas estão tão acostumadas com o esquema feijão/arroz/pedaço de animal, por isso esperam ver algo similar num prato 100% vegetal.
Então essa dica não só te faz sair dessa expectativa visual, como é uma maneira mais prática de cozinhar. E falei que cozinhar assim suja menos panelas? Pois é. E sobre a parte “salada”, as dicas no parágrafo “verdura crua” acima se aplicam igualmente aqui.
Se a sustância vem do feijão, à partir dele basta saber preparar um bom arroz (ou farofa) e tratar os legumes com a atenção e o cuidado que, na culinária especista, são reservados aos pedaços de animais. Cada elemento do prato é gostoso individualmente e, combinados, formam uma refeição rica e que satisfaz o paladar.
Resumindo: você pode substituir a carne por aprender a cozinhar vegetais.
Quando não tem verduras nem frutas na cozinha
Claro que falar de diversidade alimentar pressupõe que você tem acesso a todos esses alimentos, mas saiba que mesmo em tempos de carestia e insegurança alimentar generalizada, essas dicas podem ser aplicadas dentro das suas possibilidades.
Só tem feijão com farinha pra comer? A importância de saber dar gosto ao feijão, sem recorrer a pedaços de animais (que, de todo jeito, está fora do orçamento de quem se encontra em situação de insegurança alimentar) é ainda maior. Em termos de verdura, só deu pra trazer um pedaço de repolho da feira? Saber prepará-lo da maneira mais saborosa possível é crucial. Só tem restos de alimentos dos dias anteriores na geladeira? Poder transformá-los em uma farofa deliciosa ou em prato completo vai fazer toda a diferença. E se você ganhou umas mangas da vizinha, não é legal saber que elas podem ser combinadas com o feijão preto do almoço e melhorar o sabor da refeição?
E já que estamos falando de insegurança alimentar, é importante saber que ao invés de gastar o pouco de dinheiro na carteira comprando salsicha (ou outro ultraprocessado animal que acaba aparecendo na mesa da população que não tem dinheiro pra comprar carne animal), é muito mais saboroso e nutritivo comprar feijão, um punhado de verduras e transformá-los em várias coisas diferentes, melhorando a qualidade da alimentação da sua família sem gastar mais.
Voltando ao causo que abriu esse texto, expliquei pro companheiro do MTST que não só ele não precisava incluir obrigatoriamente a carne de soja no cardápio da cozinha solidária, como dava pra usar as verduras doadas ao projeto pelo MST pra aumentar o sabor das refeições sem gastar um tostão a mais. Veja que ao valorizar cada elemento vegetal do seu prato estaremos, num mesmo movimento, valorizando quem plantou esses vegetais. Promover vegetais ao papel de protagonistas da alimentação é o primeiro passo pra dar todo o reconhecimento e valorização que agricultoras e agricultores merecem.
Esquerda: repolho no leite de coco (ensopado marinho), macaco (bolinho de feijão macaça e farinha), macaxeira frita, banana da terra frita. Direita: feijão macaça (branco), couve refogada, jerimum no coco, alface e abacaxi.
Esquerda: feijão preto, banana da terra frita, ensopado marinho, arroz, folhas com abacaxi. Direita: fava com tomate, arroz, chuchu refogado, ensopado marinho, folhas, pepino e abacaxi.
Achar que é preciso uma “mistura” vegetal pra substituir a carne é seguir reproduzindo a estrutura especista que hierarquiza o alimento vegetal em posição inferior aos corpos (e secreções) animais consumidos pela espécie humana. É seguir vendo um prato de feijão, arroz e verduras como incompleto. E, como eu não me canso de repetir, quem ganha quando vemos a ausência de carne animal no prato como uma lacuna que deve ser preenchida com outra coisa? Os produtores de soja e as grandes empresas do agroalimentar, que enxergam ali uma imensa oportunidade de lucro (hamburguers e linguiças “veganas”). Acompanhada, obviamente, de toda a exploração e destruição impostas por esse tipo de “oportunidade”. Sem falar nas pseudo-soluções tecnológicas, como carne de laboratório.
Pode parecer insignificante, mas sair do paradigma da mistura, animal mas também vegetal (quando essa mistura vegetal representa hambúrgueres e outros ultraprocessados feitos por empresas que lucram com a exploração especista, humana e ambiental), é a chave pra começar a repensar a atual organização social baseada em dominação (capitalismo especista) e construir uma alternativa a isso que seja realmente justa pra todos os seres.
Em 2020 escrevi um post aqui chamado “O conceito de mistura”. Mais de dois anos depois, continuo concordando com as palavras desse texto e acabei indo ainda mais longe na reflexão. Por isso voltei hoje com um post em duas partes pra aprofundar a questão e também mostrar, com exemplos concretos, o que seria uma maneira de cozinhar e compor pratos livres do paradigma da mistura.
Feijão macaça, farofa de cuscuz, quiabada, couve refogada e salada de folhas e manga
Vou começar copiando aqui o texto de 2020, porque é preciso ler essa parte pra poder entender o que vai seguir.
Uma das perguntas que escuto com mais frequência é: “Como substituir a carne?” Geralmente feita por pessoas que estão pensando em diminuir ou parar de comer animais, ela diz respeito ao aspecto nutricional da refeição. O que a pessoa está perguntando, na verdade, é: “O que preciso comer no lugar da carne pra ter acesso aos nutrientes que antes eu conseguia através dela?”
Esquerda: feijão preto, arroz com cenoura, berinjela de dona Laura e salada de folhas, tomate e cenoura ralada. Direita: feijão preto, arroz com cenoura, pirão de maxixe, couve refogada e salada de folhas e manga.
Mas pra além da questão nutricional, isso também está relacionado a um conceito que herdamos da culinária que vê animais como comida, o conceito de mistura. E é sobre isso que gostaria de escrever hoje.
O conceito de mistura (carne de um animal, visto como o componente principal do prato) tem três camadas: nutricional, de status e gastronômica. Vou tratar da nutrição primeiro e das outras em seguida.
Do ponto de vista nutricional carne não é essencial. Vários povos do mundo vivem sem comer animais, além de nós, veganas, e se isso não é evidência suficiente pra você, a ciência já provou que não precisamos comer animais nem o que seus corpos produzem (ovos, leite) pra viver, nem pra ter saúde. Logo, você pode substituir a carne por…nada. Ela não precisa ser substituída.
O tradicional pf segue completo sem a carne (feijão + arroz + salada). Feijão é a melhor fonte de proteína que conhecemos, sem os inconvenientes da carne animal, e é uma excelente fonte de ferro. Se você não tem o costume de comer leguminosa todos os dias, essa é a única adaptação que você precisa fazer pra excluir a carne de animais do cardápio (imaginando que o resto da sua alimentação já é variada, com cereais, frutas, verduras e sementes). Lembrando que leguminosas são o grupo do feijão, lentilha, grão de bico, ervilha e fava. Não sabe como prepará-las? Tem várias receitas aqui, só clicar na página “Receitas”.
Esquerda: feijão macaça, arroz com cúrcuma, banana da terra frita, salada de folhas, pepino, manga, abacaxi e mamão, salada de batata de Lila e quiabo refogado. Direita: Bobó de grão de bico, farofa, salada de folhas, tomate, pepino e cenoura ralada, arroz com cenoura e abobrinha refogada.
Esquerda: Feijoada, farofa de banana, mudjadara (arroz com lentilha), quiabada, salada de folhas, tomate cereja, pepino e mamão. Direita: feijão preto, arroz com cenoura, couve refogada, purê de jerimum, farofa de banana com couve, salada de alface, tomate, pepino, cenoura ralada e mamão.
Mas se não precisa substituir a carne por nada (mais uma vez, imaginando que você tem uma alimentação variada, que é a recomendação pra todas as pessoas, veganas ou não), por que pessoas não-veganas, e até veganas, olham pra um prato de feijão+arroz+verduras e acham que está faltando algo? Aqui entra a questão de status.
Na escala de valor da sociedade em que vivemos, comida vegetal ocupa uma posição inferior quando comparada à comida animal. Fomos treinadas a ver pedaços de animais e seus derivados como “mais nutritivos”, mas também com “mais status”. É a comida da elite e isso acaba se tornando o modelo que desejamos seguir.
Mas tem uma pergunta muito importante por trás disso. Quem ganha com o protagonismo de produtos animais na alimentação? E quem ganha quando a estrela do nosso prato passa a ser o vegetal (fresco)? Respostas: a agropecuária e a agricultura familiar, respectivamente. Aqui começamos a entender os interesses financeiros por trás do mito de que carne é essencial e da fabricação dos nossos desejos alimentares carnistas.
E esse mito/manipulação tem uma versão vegana. Entram em cena salsicha, hambúrguer e agora até frango… vegetal, feitos pelas gigantes do agroalimentar. Isso não é apontamento de dedo pra quem gosta desses ultraprocessados, é um convite pra uma reflexão mais profunda.
Ninguém precisa de “carne vegetal” pra retirar animais e seus derivados do prato. A existência desses produtos, longe de ser uma vitória pro movimento vegano, busca nos manter dependentes da indústria. É isso que está em jogo quando a maior produtora de carne de vaca do mundo lança um hambúrguer “vegano”. E tem mais. Isso perpetua outro mito, o de que é caro e difícil ser vegana. Mas tem mais uma consequência que se relaciona com o assunto de hoje. Produtos que imitam animais reforçam o mito de que feijão com arroz e verdura não formam um prato completo.
E pra entender a última camada desse folhado, precisamos também entender o conceito de mistura do ponto de vista do sabor.
Esquerda: Feijão preto, farofa de beterraba, moqueca de caju, salada de alface, tomate, pepino, manga e beterraba crua ralada, arroz com cenoura. Direita: feijão macaça, repolho ensopado e arroz com cenoura.
Esquerda: feijão macaça, banana, quiabada, farofa rica (banana e couve) e salada de folhas e manga. Direita: fava, banana, purê de jerimum, macaxeira cozida e salada de alface, repolho roxo cru, pepino e tomate.
Esquerda: feijão macaça (marrom), banana da terra frita, salada de rúcula, pepino, tomate e manga e arroz da terra no leite de coco. Direita: fava com tomate, farofa e jerimum no leite de coco.
A culinária que vê animais como comida estrutura o prato ao redor do animal morto. É ele que vai receber o melhor tipo de cozimento, o molho caprichado, os temperos especiais. Junta-se a isso o fato que animais são ricos em proteína e possuem o sabor “umami”. Essa palavra japonesa, que pode ser traduzida como “delicioso”, faz referência ao quinto sabor básico (junto com doce, salgado, ácido e amargo). Carne de animais também tem gordura, um componente chave pra realçar o sabor. Muitas moléculas de sabor são lipossolúveis, ou seja, se dissolvem, e se tornam perceptíveis pras nossas papilas, apenas em contato com gordura.
Nesse tipo de culinária, o animal é o prato principal, o vegetal é acompanhamento. Por isso vegetais não trazem a mesma carga de sabor, pois estão sempre em segundo plano. E ainda assim pedaços de animais e seus derivados são usados pra realçá-los. Basta pensar na função da manteiga, creme, queijo e bacon em muitas receitas de vegetais. Assim somos induzidas a achar o sabor de vegetais inferior. Retirar o animal do cardápio, mas manter esse padrão de culinária, faz com que o prato vegetal não ofereça a mesma satisfação, pois o elemento que carregava todo o sabor sumiu.
Essa maneira de cozinhar precisa ser superada. Ela cria necessidades falsas (como os ultraprocessados “veganos” que imitam vaca, frango… pra ocupar o lugar da mistura) e nos impede de apreciar o sabor dos vegetais pelo que eles realmente são. Se libertar do conceito de “mistura” (seja um animal ou algo que imite um produto animal) é o primeiro passo numa importante mudança de paradigma. É passar a valorizar o vegetal e quem planta o vegetal. E é ver valor no vegetal pelo que ele é, não pelo que ele tenta imitar. Como diz meu compa de panela e luta Ruan Felix, “nessa revolução lentilhas serão lentilhas”.
Feijão macaça (branco), pirão de maxixe, jerimum cozido e salada de alface e abacaxi
Culinária vegetal não precisa e, na minha opinião, não deve, ser uma culinária de imitação. São tantos sabores, texturas e possibilidades no reino vegetal que seria uma pena se contentar em simplesmente reproduzir pratos com animais em versão vegetal. Vegetais só parecem coadjuvantes pra quem nunca os convidou pra ser a vedete da alimentação. Preparando certo eles viram a estrela do prato e enquanto você se delicia com a comida vegetal bem preparada, o conceito de “mistura” vai parar de fazer sentido: está tudo saboroso ali e você não sente mais falta de nada.
Olha isso… Prometi um bolo de jerimum (receita na qual estou trabalhando há quase um ano!), e apareço aqui mais uma vez com outra coisa.
Ontem, enquanto me deliciava com minha receita preferida com jerimum, me dei conta que nunca tinha postado a danada aqui. Até vasculhei os arquivos do blog pra ter certeza, pois me parecia malvadeza demais não ter falado desse jerimum antes. Como deixei isso acontecer?
Essa receita é extremamente simples mas não deixe isso te enganar: o resultado final é delicioso. Outro dia uma pessoa, que já foi cozinheiro profissional, me disse: “Comida vegana é muito complicada.” Baseado em que ele disse isso? No preconceito com a culinária vegetal, naturalmente. Pratos como esse estão aqui pra mostrar que a comida da terra não precisa de muito enfeite pra ficar boa, nem de horas de trabalho árduo na cozinha, nem de ingredientes caros e difíceis de encontrar.
Sirvo esse prato como acompanhamento, no almoço (fica perfeito com feijão macaça/fradinho, como na foto acima) mas também adoro comê-lo como recheio de tapioca (com couve refogada por cima fica supimpa!), e junto com cuscuz (deixa eu dizer que cuscuz com feijão macaça e esse jerimum é uma combinação tão linda quanto nutritiva e saborosa).
Jerimum (abóbora) com coco
Como toda receita com poucos ingredientes, a qualidade deles faz toda a diferença no produto final. Usei jerimum de leite orgânico (meu preferido), que é denso (não é aguado), cremoso e tem um sabor bem doce sem ser enjoativo. A casca dele, depois de cozinha, é macia, então muitas vezes nem descasco. Leite de coco é sempre melhor caseiro. E se coentro não é a sua praia, deixe de fora, ou use salsinha.
Jerimum (abóbora), da sua preferência, em cubos médios (com ou sem casca, como quiser)
O ideal é usar uma panela mais larga que funda, de um material pesado (uso uma panela de ferro que está há anos na família) e que tenha tampa.
Aqueça o óleo/azeite e doure a cebola. Junte o alho e refogue por mais 30 segundos. Acrescente os cubos de jerimum, a pimenta de cheiro (se estiver usando), salgue generosamente e mexa com uma colher de pau. Baixe o fogo e tampe. Deixe cozinhar, sem acrescentar água (o jerimum vai soltar água durante o cozimento, que se transformará em vapor), mexendo de vez em quando. Se começar a queimar é porque seu fogo ainda está alto e/ou sua panela tem o fundo muito fino. Se não puder baixar mais, junte um tiquinho de água, só o suficiente pra não grudar.
Quando o jerimum estiver ligeiramente dourado e quase totalmente cozido (isso leva poucos minutos, já que é um legume que cozinha rápido) acrescente leite de coco suficiente pra cobrir tudo e passar só um pouquinho do nível do jerimum. Tampe e deixe cozinhar, sempre em fogo baixo, até o jerimum amolecer totalmente. Uma parte vai virar purê, principalmente se você descascou o jerimum, e tá tudo bem. Prove e corrija o sal, se necessário.
Desligue o fogo e acrescente o coentro picado. Gosto de colocar bastante coentro, mas no dia que fiz a foto, só tinha uns galhinhos na geladeira. Também espremo um pouco de limão no meu jerimum, pra realçar a doçura dele, mas nem todo mundo gosta.
PS Se quiser fazer o melhor purê de jerimum da vida, é só amassar tudo depois de pronto.
Todo mundo (ou quase) conhece e adora hummus, a pasta de grão de bico (“hummus” é grão de bico em Árabe) com tahina (pasta de gergelim). Esse prato árabe, que provavelmente nasceu no Egito e logo se espalhou pela Palestina, Síria, Jordânia e Líbano, é realmente uma das receitas mais maravilhosas que já inventaram, tanto do ponto de vista gastronômico quanto nutricional, e faz parte da alimentação de base dos povos daquela região.
Mas tem lugares por aqui, nessa vasta Pindorama, onde grão de bico é difícil de encontrar e tahina é algo que ninguém nunca viu. E mesmo quando tem tahina no mercado, como é o caso de Natal, minha cidade, ela custa um rim. Por isso há tempos venho pensando em criar receitas de pastas que usem ingredientes locais e baratos, encontrados por todos os lugares, inspirado na combinação mágica leguminosa + oleaginosa.
Como meu país é o Nordeste, faz sentido usar o feijão mais cultivado, e mais consumido, aqui: o feijão macaça (de corda ou fradinho, dependendo da região). Pra nós aqui no RN tem diferença entre o feijão macaça (mais arroxeado) e o fradinho (mais claro, que algumas pessoas aqui chamam de “feijão branco”), mas vi que são variedades diferentes da mesma família e o sabor é praticamente idêntico. E pra acompanhar esse feijão tão popular, que também acontece de ser o mais barato por essas bandas, escolhi o amendoim. Além de ser nativo do território conhecido como Brasil, amendoim é muito mais barato, comparado com oleaginosas. Na verdade amendoim é uma leguminosa, ou seja, é um tipo de feijão. Mas como é muito mais rico em gorduras do que qualquer outra leguminosa, e dá uma pasta cremosa, ele entrou aqui cumprindo o função da tahina no hummus. Sem contar que amendoim é uma ótima fonte de proteína (pergunte ao povo da maromba), deixando a pasta ficou ainda mais nutritiva.
“Ah, mas fica com gosto de amendoim?”. Óbvio, e isso não é um problema! Se você detesta amendoim, sugiro que procure outra receita. Clique na página “receitas” e escolha uma das muitas pastas e patês que já postei aqui. Porém posso sugerir que você teste uma dessas receitas e tente aprender a gostar do bichinho? Você tem tudo a ganhar.
Usar ingredientes locais e baratos, que respeitem nossa cultura alimentar, é importante pra mim. Mas tem que ser muito gostoso também. Então tenho a satisfação de anunciar que servi essas pastas pra minha família e elas foram aprovadas por todas.
A primeira que criei leva só feijão macaça (fradinho), pasta de amendoim, coentro, alho, limão e sal. Ouso declarar que a combinação feijão macaça + amendoim é tão perfeita quanto o clássico árabe grão de bico + gergelim. A segunda pasta fez ainda mais sucesso aqui em casa, graças ao acréscimo de jerimum (abóbora) cozido. Sabia que as nativas do RN somos chamadas de “papa-jerimum”? Essa pasta, que ainda leva um pouco de leite de coco, é o meu território em versão cremosa. Desde que fiz essas pastas ando comendo com tudo: dentro da tapioca, acompanhando macaxeira cozida, cuscuz…
Pelas caridades, não vá imaginar que estou dizendo pra cancelar o hummus! Minha intenção com esse blog sempre foi mostrar a imensa diversidade da comida vegetal e mostrar como a culinária da terra transborda possibilidades. As duas receitas abaixo ilustram isso perfeitamente e são uma opção mais acessível no nosso território. Já falei que elas são deliciosas também?
PS Lembra do hummus cubano que minha irmã me ensinou? Se ainda não fez, saiba que amendoim e grão de bico também dão muito certo juntos. E se amendoim for a sua praia, esse creme fermentado de amendoim é a versão vegetal, descolonizada e muito melhor do requeijão.
Pasta de feijão macaça e amendoim
A ordem dos ingredientes é do usado em maior quantidade pra menor quantidade, assim você tem uma noção das proporções mas as quantidades ficam ao gosto da freguesa. Vá colocando um pouco disso, outro tanto daquilo e provando pra saber se está do seu agrado. Confie no seu paladar.
Feijão macaça/fradinho cozido (reserve um pouco do líquido de cozimento)
Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)
Coentro
Alho
Óleo (usei de babaçu, mas qualquer um serve)
Suco de limão
Sal e pimenta preta
Frite o alho picado/amassado em um pouco de óleo (fique de olho pra não queimar). Bata todos os ingredientes no liquidificador, acrescentando colheradas do caldo do feijão, até conseguir uma textura cremosa e densa. Se passou do ponto e ficou líquido demais, junte mais feijão e pasta de amendoim. Prove e corrija os temperos (mais limão? mais sal?), se necessário.
Creme de feijão macaça com jerimum e amendoim
Nessa receita usei uma sobra de jerimum (abóbora) cozinhada com leite de coco (caseiro) e ficou um espetáculo. Pra conseguir um resultado parecido, você pode simplesmente usar um pouco de leite de coco (caseiro) na receita. Mas na falta de leite de coco, basta bater os ingredientes com o caldo do feijão, como na receita acima. Usei a mesma quantidade de feijão e jerimum aqui e a pasta ficou bem suave e cremosa.
Feijão macaça/fradinho cozido (reserve um pouco do líquido de cozimento)
Jerimum/Abóbora, cozida no vapor (com ou sem casca)
Frite o alho picado/amassado em um pouco de óleo (fique de olho pra não queimar). Bata o feijão, o jerimum, a pasta de amendoim, o alho frito, o suco de limão, o sal e a pimenta preta no liquidificador, acrescentando colheradas de leite de coco (caseiro) ou do caldo do feijão até tudo se transformar em um creme homogêneo. Prove e corrija o tempero, se necessário. Servi polvilhado com páprica doce defumada, pra ficar bonito ,e ficou ainda mais gostoso.
No início do ano tivemos a Xepa Ativismo convidou a UVA e os irmãos por trás do projeto Vegano Periférico pra fazer um grande evento em São Paulo celebrando o Veganismo Popular. Uma espécie de festival artístico-político-gastronômico. Meses depois a ideia inicial tinha sido modificada muitas vezes e nasceu a I Jornada do Veganismo Popular, que tinha como tema “Veganismo Popular contra o fim do mundo: construir a libertação animal e combater a fome”. Começou com uma live dia 1/11, pra comemorar o dia internacional do veganismo, e durou todo o mês de novembro. Foi um evento descentralizado e os coletivos que compões a UVA e quiseram participar organizaram eventos em suas cidades de maneira independente.
Além de ter participado da live no dia 1/11, que contou com convidadas muito especiais pra mim (assistam!), tentei acompanhar o trabalho dos coletivos e participar do maior número de eventos que pude. O resultado foi um mês inteiro na estrada, oito cidades diferentes, encontros que me marcaram profundamente, conversas que renderam muita reflexão e me fizeram avançar nas teorias que desenvolvo há anos, muitas descobertas gastronômicas e ter visto uma parte do Brasil que ainda era desconhecida pra mim. E também peguei Covid!
Ainda estou em Natal, me recuperando do cansaço pós viagem e pós Covid (Jesus me abane! não tenho energia pra nada!) e cumprindo minha tarefa principal esse mês: cuidar da minha mãe. Tenho muito o que contar sobre a viagem e, principalmente, sobre os encontros, mas por ora queria compartilhar algumas fotos dos eventos com os coletivos locais. Pela ordem cronológica, aqui estão: Fortaleza, São Paulo, Belém, São Luís, Salvador, Porto Alegre e Recife (Natal fica pra outro dia 😉
Em quase todas as cidades por onde passei tive a honra de dividir o microfone com militantes, praticamente todas mulheres, muito importantes pra construção dessa luta. Minha voz se somou a outras vozes e juntas, nos fortalecemos. Gostaria que todas essas pessoas aparecessem aqui mas infelizmente não tenho foto com todo mundo, só com Ana Felicien e Gisiane Ferreira, em Belém, com Ellen Monielle, em Recife, e com Bruna Crioula, em Porto Alegre.
Essa é a primeira parte de uma série de posts sobre a Jornada do Veganismo Popular, então fiquem no aguardo que vem muita coisa interessante pela frente. Aproveito pra agradecer mais uma vez as pessoas que apoiam o meu trabalho (através do Apoia-se), e que fizeram com que esse tour político fosse possível (do ponto de vista financeiro). Muita gente acredita que, por não ter mais Instagram, parei de militar. A verdade é que continuo militando no terreno, como sempre fiz. Na verdade desde que saí das redes sociais, nunca militei tanto!
Agora com licença que vou tentar fazer um bolo de jerimum (próximo post 😉 antes que minha mãe acorda do cochilo da tarde.