Hoje é o dia internacional do veganismo. E esse ano estamos comemorando esse dia logo depois das eleições mais importantes da História recente do Brasil. Sim, o presidente derrotado deixa pra trás um país profundamente destruído e nosso trabalho não terminou com a vitória de Lula. Ele está só começando. Mas sabemos construir também.
Com a possibilidade de sonhar novamente, de sorrir de novo, apesar de toda a luta que temos pela frente, hoje eu escolho ficar mais um pouco com a alegria que encheu meu peito domingo.
E como eu nunca tive tanto orgulho de ser nordestina, nós que compomos a única região onde o ódio, o fascismo e o bolsonarismo não venceram e que garantimos a vitória de domingo, quero comemorar com pastel de caju. Porque o caju é nosso e nada grita “Nordeste” tão alto quanto essa fruta maravilhosa. A massa é feita com jerimum, pois sou potiguar e nós somos conhecidas como “papa-jerimum”. Então esses pasteis são uma homenagem ao meu povo nordestino, com uma piscada de olho pra quem é do nordeste do Nordeste, o RN.
A receita é minha, mas a inspiração veio daquele nordestino lá de Pernambuco, que quer que o povo brasileiro tenha direito à comida boa e de qualidade, três vezes por dia, e que a gente possa escolher o que colocar no prato. Não é sobre fazer churrasco ou comer picanha, é sobre ter acesso pleno à uma alimentação adequada, saudável, suficiente e que respeite nossa cultura alimentar. E somente quando pudermos garantir esse direito ao povo, teremos as bases materiais pra que a exploração animal seja superada. É a condição básica pra conseguir libertação animal.
Pastel de caju (de forno e com massa de jerimum)
Fazer essa massa vai exigir um pouco de tempo da sua parte, mas o resultado é delicioso e vale a pena. Porem, ninguém vai te julgar se você usar uma massa de pastel pronta (comprada em supermercado) e depois fritar seus pasteis. E também pode usar o recheio de carne de caju pra rechear o que quiser (torta, coxinha, empada, sanduíche), ou degustar como “mistura”.
MASSA DE JERIMUM
1 xícara de jerimum cozido (no vapor) e amassado
2 1/2 xícaras de farinha de trigo
3 col. sopa de fubá (usei flocão)
3 col. sopa de óleo (ou azeite)
Sal
RECHEIO DE CARNE DE CAJU
5 cajus
1/2 cebola, picada miúdo
1/2 pimentão, picado miúdo
2 tomates maduros, picados
3 dentes de alho, ralado ou pilado
4 col. sopa de molho de soja (shoyu)
1 punhado de coentro
1 col. de sopa de óleo
Pimenta de cheiro (usei 3 pimentas biquinho – opcional)
Sal e pimenta preta
Comece preparando a carne de caju. Retire as castanhas e corte os cajus em tiras, no sentido do comprimento (cortei cada caju em 12 tiras). Coloque uma peneira em cima de uma vasilha (pra recolher o sumo do caju) e esprema as tiras de caju entre as mãos. Não precisa retirar todo o sumo, um pouco de líquido é necessário pra deixar a carne suculenta e pra tempera-la. Basta espremer um pouco entre as mãos, pra que a carne não fique muito doce. O sumo pode ser guardado em uma garrafa com tampa, na geladeira, pra ser consumido depois. Ou você pode beber tudo na hora.
Junte todos os outros ingredientes do recheio, menos o tomate e o coentro, misture bem e deixe marinando na geladeira por algumas horas. Idealmente de um dia pro outro (ou faça de manhã pra consumir à noite). O tempo marinando é muito importante: o gosto típico do caju vai ficar bem mais suave e o tempero vai ficar muito mais apurado e saboroso.
Depois do tempo marinando, cozinhe a carne de caju. Aqueça um pouco de óleo em um frigideira grande, despeje a carne (junto com todos os temperos e líquido que tiver se formado) e cozinhe em fogo médio-alto, mexendo de vez em quando, até o caju ficar ligeiramente dourado. Nesse momento junte o tomate picado, tampe e deixe cozinhar, dessa vez em fogo baixo, até o tomate se desintegrar. Prove e corrija o sal, se necessário. Desligue o fogo, junte o coentro e deixe esfriar enquanto prepara a massa.
Prepare a massa. Misture o jerimum cozido e amassado com os outros ingredientes e amasse bem com as mãos. Junte colheradas de água até formar uma massa elástica e que não cole nas mãos. Cubra com um pano de prato e deixe descansar 15 minutos. Aqueça o forno.
Na hora de fazer os pasteis, faça uma bola com a massa e corte em 4, depois divida cada parte em 4 (formando 16 porções de massa). Use as mãos pra formar bolas com cada porção (como se estivesse enrolando brigadeiro). Use um rolo pra abrir cada bolinha de massa, transformando em um círculo (não precisa ser perfeito). A massa tem que ser fina, mas não tão fina quanto massa de pastel que será frito.
Coloque um pouco do recheio na parte inferior do círculo de massa e dobre a parte superior por cima. Aperte as bordas entre os dedos pra fechar bem. Repita a operação até acabar a massa. Transfira tudo pra uma placa ou forma grande polvilhada com um pouco de farinha (idealmente de metal, pros pasteis ficarem mais crocantes).
Asse os pastéis (o forno já deve estar bem quente) até ficarem levemente dourados. Eles são melhores quando ainda estão quentinhos, então chame as amigas, a família ou as vizinhas pra comer com você.
Outro dia eu trouxe macaxeira da feira (compro na feira da economia solidária- CECAFES, aqui em Natal, e ela já vem cortada em pedaços e descascada) e, ao invés de já congelar tudo, como fazemos por aqui, deixei um saquinho na geladeira pra fazer bolo de macaxeira no final do dia. Acabei não tendo tempo de fazer o bolo e dois dias depois resolvi cozinhar o saquinho com a macaxeira descascada, que ainda estava na geladeira. Mas quando peguei os pedaços, vi que já estava pubando. Pra quem não conhece esse termo, deixa eu explicar.
Macaxeira pubada, ou carimã, é simplesmente macaxeira fermentada na água. Uma fermentação natural, não precisa acrescentar nenhuma cultura de bactéria ou fungo. Você deixa a macaxeira descascada e cortada dentro de um pote com água, em temperatura ambiente, coberto com um pano (eu coloco a tampa do pote por cima, mas sem fechar) e em alguns dias, dependendo da temperatura da sua cozinha, ela vai fermentar e se transformar em carimã (ou macaxeira pubada, o nome varia dependendo da região). Como saber quando está pronta? A macaxeira deve ficar com uma textura tão mole que pode ser esmagada facilmente entre os dedos. Depois é só descartar a água onde a fermentação aconteceu, que tem um cheiro bem forte, lavar ligeiramente a macaxeira pubada e deixar escorrendo um pouco dentro de um pano (se for usar a puba pra fazer panqueca, que é a receita que vou compartilhar mais na frente, nem precisa fazer isso).
A massa pubada pode ser usada em um número enorme de receitas. Como o meu bolo de carimã com goiabada, mas também pra fazer mingau de carimã. Se quiser um passo-a-passo de como pubar macaxeira, Neide Rigo, que é uma grande professora pra mim, explicou tintin por tintin nesse artigo.
É um processo extremamente simples e quem mora nessa quentura do Nordeste (e, imagino, do Norte), não vai ter dificuldade nenhuma em pubar macaxeira em poucos dias. A prova: depois de ter passado o dia dentro d’água, na feira, e de ter feito a viagem entre a feira e a minha casa, na hora mais quente do dia, a macaxeira começou a pubar sozinha. Prossegui a pubagem na minha cozinha e em cinco dias ela estava pronta pra ser consumida. (Como toda fermentação, o tempo varia de acordo com a temperatura da sua cozinha.)
Carimã faz parte da cultura alimentar do Nordeste e Norte, mas infelizmente está desaparecendo nessa parte do território nordestino de onde venho (RN). Eu mesma só comecei a cozinhar com carimã no ano passado! Escutava as mais velhas falarem de um tal de mingau de carimã e de uma tia-avó era famosa por seu bolo de carimã, mas cresci sem provar essas delícias. Fazia tempos que eu queria incluir esse alimento no meu repertório culinário, mas achava que era difícil fazer em casa. Mas pubar macaxeira não poderia ser mais simples e eu incentivo todo mundo a usar essa técnica que nos foi transmitida pelos povos indígenas. Originalmente, a macaxeira era amarrada em redes e deixada dentro do rio por vários dias, até pubar. E além de honrar a nossa cultura alimentar, macaxeira pubada/carimã tem um sabor delicioso e pode ser usada em receitas doces ou salgadas.
Eu anda fazendo panquecas de carimã quase todos os dias, pra comer no café da manhã e no lanche. Mas tenho planos de explorar o potencial gustativo da carimã em muitas outras receitas. Como tem aquele azedinho típico de alimentos fermentados, desconfio que ela tem o potencial de temperar e dar liga em receitas onde tradicionalmente se usa queijo animal. Estou pensando em usá-la na minha receita de pão de macaxeira (a versão vegetal do pão de queijo), pois acho que vai enriquecer muito o sabor, e também quero tentar uma versão de dadinho de tapioca com carimã. Aguardem.
Mas vamos começar com uma receita simples, rápida e que você pode incrementar de muitas maneiras.
Panqueca de carimã (macaxeira pubada)
As explicações de como pubar a macaxeira estão no texto acima ou, de maneira mais completa e detalhada, nesse artigo de Neide Rigo. Depois de pubar minha macaxeira, deixo em um pote fechado, coberto com água limpa, dentro da geladeira e vou usando durante a semana. Se conserva vários dias na geladeira (durou uma semana inteira aqui em casa, mas talvez se conserve até mais).
Carimã (não precisa ser escorrida no pano, basta tirar da água e apertar um pouco entre as mão pra retirar o excesso de água)
Sal a gosto
Azeite/óleo pra cozinhar
Peque uma quantidade suficiente de carimã, dependendo de quantas panquecas quiser fazer, e retire o pavio dos pedaços. Se tiver comprado massa de carimã pronta, não precisa fazer isso. Amasse a carimã escorrida com um garfo (ela deve estar bem macia e se desmanchar sem esforço) e tempere com sal a gosto. Nesse ponto você pode acrescentar ervas, temperos, verduras picadas…
Espalhe um pouco de óleo/azeite em um frigideira antiaderente, de preferência com o fundo grosso. Coloque um pouco de carimã na frigideira (fria) e espalhe com as costas de uma espátula até formar um círculo de espessura média (pode ser mais fina, pra ficar mais crocante, ou mais espessa, pra ficar mais macia). Leve ao fogo baixo, coberto com um tampa, e deixe cozinhar até as bordas começarem a ficar douradas e a panqueca puder ser virada facilmente. Cheque levantando a borda da panqueca com a espátula. Isso leva de 5 a 10 minutos, dependendo do tamanho e espessura da sua panqueca. A parte superior vai ficar seca, então regue com mais um fio de óleo/azeite e vire pra dourar do outro lado (mais 2-3 minutos).
Você pode degustar sua panqueca pura ou recheada com o que quiser. Na foto acima servi com queijo de castanha fermentado (tem a receita aqui, mas fiz uma versão mais simples, usando um pouco de água de kefir pra fermentar e temperando só com sal) e um resto de vinagrete do almoço.
Ele é a base do café da manhã e jantar do povo nordestino. E pode virar almoço, quando a precisão é grade. Já expliquei, passo a passo, como fazer cuscuz (simples e com leite de coco) nesse post. Cuscuz bom, fofinho e macio, não a versão esturricada que algumas pessoas (mesmo no Nordeste) insistem em preparar. Saber fazer um cuscuz gostoso e honrar nossa cultura alimentar é importante. E hoje vim expandir seu repertório de cuscuz.
Com a insegurança alimentar no Brasil aumentando a cada dia que passa (enquanto escrevo essas linhas, 60% da população se encontra em algum grau de insegurança alimentar), o cuscuz passou a representar uma parte ainda maior da alimentação das pessoas nordestinas. Por isso pensei em compartilhar três receitas simples e baratas à base de cuscuz. Na verdade, à base de flocão, que é a farinha de milho flocada e pré-cozida, a mais usada pra fazer cuscuz aqui. Além de variar a alimentação de quem está comendo cuscuz todo dia, elas mostram as inúmeras possibilidades desse ingrediente tão barato e acessível.
Torço pra que em breve esse projeto político de morte e fome no Brasil, também conhecido como “necropolítica”, chegue ao fim. Nos últimos quatro anos a destruição foi gigante, mas nós, o povo, sabemos construir também. E pra nos dar força, bora comer cuscuz!
Cuscuz com quiabo
Essa é uma versão com quiabo do “cuscuz com coco e verduras” que faço o tempo todo na casa da minha família. Além do sabor, o quiabo enriquece o prato com uma boa dose de cálcio. Comam mais quiabo, meu povo! (Mais receitas de quiabo aqui e aqui )
Prepare um cuscuz com leite de coco, como ensinado nesse post.
Enquanto isso corte o chapéu de alguns quiabos e parta no meio, no sentido do comprimento. Escolha quiabos pequenos e verdes, pois esses são os melhores. Os grandes já estão maduros e cheios de fibras duras. Aqueça um pouco de óleo em uma frigideira e grelhe os quiabos dos dois lados, até ficar com vários pontos dourados/marrom. Tempere com sal. Depois de grelhado, corte o quiabo em pedaços pequenos.
Pique a cebola e o pimentão e refogue por alguns minutos no óleo quente. Junte o alho picado (ou amassado), refogue mais alguns segundos e acrescente o tomate picado. Quando o tomate começar a amolecer, desligue o fogo. Tempere com sal e pimenta preta.
Misture o cuscuz pronto (já abafado com o leite de coco) com as verduras refogadas, mais o quiabo grelhado e picado e o coentro picadinho. Prove e corrija o sal, se necessário.
Farofa de cuscuz com feijão macaça e amendoim
Fazer farofa com restos de cuscuz é um grande clássico da culinária de carestia. Falam muito em “desperdício zero” (ou “zero waste”, na versão gourmetizada), mas a verdade é que a população empobrecida sempre cozinhou (e viveu) assim, por necessidade, muito antes de virar um “lifestyle”. Feijão + milho + amendoim = nossa cultura alimentar juntas num prato. Além de ser uma combinação nutricionalmente completa (leguminosas -feijão, amendoim- com cereal – milho).
Restos de cuscuz (pode ser o simples, com coco ou com quiabo)
Restos de feijão macaça (ou algum feijão que dá caldo ralo, como o fradinho)
Amendoim torrado e picado (usei xerém de amendoim, que é bem quebradinho)
Uso duas medidas de cuscuz pra uma medida de feijão, mais um punhado de amendoim. Mas você pode adaptar as quantidades pro seu gosto. Em seguida é só misturar tudo numa frigideira, esquentar um pouco e chamar de farofa. Como é uma “farofa” bem úmida e nutritiva, também como como prato principal, no jantar.
Se quiser uma farofa mais crocante, use menos feijão, deixe o cuscuz secar um pouco na frigideira (acrescente um pouco de óleo/azeite pra dar uma douradinha) e capriche no amendoim picado.
Panqueca de flocão de milho
Postei uma versão mais elaborada dessa panqueca no começo do ano (panquecas de milho e grão de bico). Essa é a versão simples e mais acessível, que pode ser degustada com recheios salgados ou doces.
Flocão de milho (ou farinha de milho fina)
Água
Sal a gosto
Misture o flocão com água suficiente pra molhar bem a massa (mais água do que você usaria par hidratar a massa do cuscuz), mais sal a gosto. Pra fazer uma panqueca pequena usei 3 colheres de sopa bem cheias de flocão e aproximadamente 6 colheres de sopa de água. Deixe repousar por pelo menos 5 minutos. Isso é importante pra hidratar a massa. Depois do tempo de descanso o flocão deve estar inchado, mais macio e não deve ter água sobrando no fundo.
Espalhe essa massa sobre uma frigideira anti-aderente fria, dando uma forma circular (ou a forma que quiser). Coloque a frigideira no fogo e cubra com uma tampa. Deixe cozinhar em fogo bem baixo até sentir um cheiro de cuscuz cozido e a panqueca se soltar facilmente do fundo. Leva menos de 10 minutos, então fique por perto. Use uma espátula pra virar a panqueca e cozinhar do outro lado por mais 2-3 minutos. Se quiser, espalhe um fio de óleo ou azeite sobre a panqueca antes de virar pra ficar dourada e mais saborosa.
OBS Se sua frigideira não for realmente antiaderente, você vai precisar untá-la com óleo antes de formar a panqueca.
Sirva com o recheio que preferir. Aqui usei abacate (temperado com sal e limão), tomate, rúcula e coentro. Na versão doce fica uma delícia com banana em rodelas, pasta de amendoim e um fio de melado (mel de engenho).
Estou mais uma vez em terras potiguares e mesmo tendo nascido e crescido aqui, ainda me encanto com a abundância de comida vegetal boa que encontramos no meu país, o Nordeste. Aqui tem tanta receita tradicional que é naturalmente vegetal, uma imensidão de frutas e verduras maravilhosas, além do coco, da castanha, do gergelim, que pra mim é o melhor lugar do mundo pra ser vegana. E se você juntar a isso o fato que quase 50% das unidades de agricultura familiar se encontram nessa região e que o veganismo popular é muito forte aqui, a conclusão é a seguinte: temos todas as condições reunidas pra organizar a revolução antiespecista à partir do Nordeste. Mas voltemos à comida.
Antes de começar a postar receitas do meu território, como faço sempre que estou nessa parte do Brasil, pensei em fazer uma lista das que já publiquei aqui e que, não por acaso, são alguns dos meus pratos preferidos. Bora lá.
Café da manhã no Nordeste pra mim é tudo! E como é mais comum comer à noite o que comemos de manhã (comida “de jantar” e “de café da manhã” sempre foi a mesma coisa pra mim ), o que acho bem prático, saber fazer a base dessas refeições é extremamente importante. Sem falar que esses pratos também podem ser degustados no lanche. Tapioca e cuscuz estão para a nordestina como o oxigênio está pras não-nordestinas. Mas tudo começa com leite de coco. Utilizado nas receitas do café/jantar/lanche, nas sobremesas e também pra tomar com café ou fazer vitaminas de frutas.
Os pratos nordestinos de almoço que já publiquei aqui são tradicionais e naturalmente 100% vegetais, embora um pouco esquecidos, como o macaco de feijão macaça, a maxixada e a quiabada. Aliás feijão macaça, quiabo e maxixe são alguns dos símbolos culinários mais fortes no meu território. Outros pratos são tradicionais, mas ligeiramente adaptados, como a farofa d’água (que geralmente é feita com manteiga da terra). Na verdade quase todos os pratos tradicionais são feitos hoje com manteiga e nata de leite de vaca, mas quando puxamos pela memória dos mais antigos, descobrimos que nem sempre foi assim, já que esses ingredientes eram raros e ainda são muito caros.
Tem um dos meus pratos preferidos da vida, o pirão de maxixe, que até entrou no cardápio do restaurante vegano “Papoula Culinária Saudável”, em João pessoa. Eu inventei esse prato num dia que estava com muita vontade de comer pirão, que é tradicionalmente feito com carne ou peixe, mas descobri depois que existem versões de pirão com maxixe, porém sempre misturado com carne de animais. Tem a famosa moqueca de caju, que é, na minha opinião, a melhor moqueca vegetal de todas. Sou suspeita pra falar, pois amo caju, mas teste aí e me diga se ela não é um desbunde. E não podia deixar a fava de fora, ela que é a rainha dos feijões. Essa receita também é minha (ou seja, nunca comi em outro lugar preparada desse jeito), mas o ingrediente principal é tão emblemático do Nordeste, e o sabor é tão maravilhoso, que tenho certeza que um dia ela vai fazer parte do repertório de receitas tradicionais nordestinas.
E os doces? Eu, que não sou uma grande apreciadora de doces, adoro as sobremesas tradicionais do Nordeste. Não as versões colonizadas pela empresa do capeta, aquela que começa com Nes e termina com Tlé, e que convenceu a população brasileira que tem que colocar leite condensado em absolutamente tudo. Escrevi longamente sobre isso e se você ainda não leu meu post sobre o assunto (Sobre leite condensado, queijo e o que o veganismo tem a ver com isso) recomendo muito. Mas saiba que antes dessa colonização das nossas mesas (e paladares), o meu amado leite de coco abundava nas nossas sobremesas. Meu bolo preferido de todos os tempos é o de macaxeira, que também leva coco. Também adoro a versão com carimã, que é como chamamos a macaxeira pubada (fermentada), e goiabada. E, pros dias quentes, que aqui no Nordeste significa “todo dia”, o creme de tapioca com frutas é a coisa mais perfeita do mundo: leve, delicado e cheio de sabor.
À partir da semana que vem vou publicar mais receitas do Nordeste, pra aumentar essa lista. E se você gostaria de aprender a preparar algum prato típico do meu território, ou gostaria de saber mais sobre um ingrediente típico daqui, é só falar.
Lembra da série de entrevistas com pessoas veganas que comecei muitas luas atrás? Hoje voltei com mais uma.
Conheci Féli em 2019, durante uma ação de Extinction Rebellion em Paris: uma ocupação em pleno centro da cidae, que durou uma semana inteira. Eu precisava entrevistar alguma jovem que participava da organização, pra uma matéria que Anne estava fazendo sobre jovens e a luta contra mudanças climáticas. Quando o vi pensei: “Essa pessoa parece ser bacana” e fui lá entrevista-lo. Eu não estava enganada e nos tornamos amigas naquele dia. Féli (pronuncie “Fê-li”, com acento tônico no “i”, ou seja, é uma palavra oxítona) é uma das pessoas mais interessantes e generosas que conheço. Mas o que mais me impressiona é a sabedoria dele, apesar de ser tão jovem.
Ele é francês (metade português), vive numa ocupação em Marselha, uma grande cidade no sul da França, mas estava de passagem pela região parisiense semana passada. Sempre que ele está no meu território, damos um jeito de nos encontrar, colocar as novidades em dia e fazer consultas mútuas (ele me ensina coisas da realidade dele, eu ensino coisas da minha). Dessa vez aproveitei pra entrevista-lo pela segunda vez, só que agora, pro blog. Além de vegano, Féli é anarquista, não-binário e completamente doido por tofu.
O que é veganismo pra você?
É a prática concreta do pensamento revolucionário antiespecista.
Por que você é vegano?
Porque existir num mundo onde humanos torturam e matam tantos, tantos, tantos coabitantes do planeta dói demais. Tinha esse fogo que queimava forte e ocupava um espaço grande em mim. Aí um dia eu aprendi que isso tinha nome, que se chamava “antiespecismo” e que o veganismo era a sua prática. Então chegou um momento em que eu disse: “Essa convicção, que está crescendo dentro de mim, na minha cabeça e no meu coração, precisa existir aqui fora”. Foi então que eu decidi fazer algo a respeito e me tornar vegano.
Você se tornou vegano da noite pro dia ou foi um processo longo? Passou por uma fase vegetariana?
Eu tive uma fase vegetariana antes de me tornar vegano, mas por razões econômicas, não ideológicas. A questão da exploração animal era algo que me revoltava há bastante tempo, no entanto eu não transformava isso numa prática concreta. Nessa época eu ainda estava mergulhado na dissonância cognitiva. Mas cinco anos atrás eu estava morava com um amigo e a gente teve acesso a materiais sobre antiespecismo e veganismo. Então de repente a ficha caiu. Eu entendi o que está por trás de produtos de origem animal, as consequências dessa produção no mundo. E à partir daquele momento tudo que o nosso super cérebro é capaz de criar pra manter a gente na dissonância cognitiva parou de funcionar. Em seguida veio uma vontade forte de agir e a mudança aconteceu facilmente.
Como destruir o especismo?
Ensinando aos humanos e humanas que estão chegando nesse planeta, e as que já estão aqui, novas formas de se relacionar com os seres vivos. Aprender a ter estima pelos seres ao nosso redor é, pra mim, a chave de muitas coisas. Em seguida conhecer o funcionamento do sistema econômico sob o qual vivemos, das estruturas especistas, colonialistas, de todas as relações de dominação em vigor, pra que possamos entender como elas se manifestam no nosso consumo. E com isso poderemos abrir espaços onde humanos e humanas possam criar conexões com os camaradas não-humanos ao nosso redor.
Esse conhecimento já está disponível pra maioria das pessoas, mas elas escolhem ignorá-lo. É muito difícil mudar a relação que temos com o resto do mundo e, sinceramente, acho que pra algumas pessoas isso não mudará nunca. Só nos resta esperar que elas não estejam mais aqui. Mas pras pessoas que estão chegando no planeta agora, isso deve ser uma prioridade. A mudança virá daí.
Você acha que vai ver o fim do especismo durante a sua vida?
Uma parte de mim diz “não”, mas eu acho que vou ver a evolução em direção a um mundo sem especismo. E é isso que conta.
Como falar da luta antiespecista com militantes de esquerda? Cansei de ouvir de camaradas que “é preciso desconstruir todas as formas de dominação!”, mas quando começo a falar da dominação humana sobre animais outros que humanos, essas mesmas pessoas se transforma nas guardiãs do especismo.
Que a pessoa seja de esquerda ou não, é normal se aproveitar do especismo. É fácil achar que podemos continuar a dominar todos os outros seres vivos. É fácil, pra quem é humana, continuar a existir num mundo especista. Mas quando penso especificamente em camaradas da esquerda, acho que é importante continuar produzindo material informativo e construindo espaços onde podemos conectar a luta antiespecista com outras lutas. E, mais uma vez, é importante trabalhar pra desenvolver estima pelo mundo ao nosso redor e todos os seres que o habitam.
Imagine que é o fim da sua vida. Uma longa vida de alegria, luta e festa. Qual seria a sua última refeição?
Posso escolher vários pratos? Pães e pastas pra compartilhar com as pessoas. Tofu com alho selvagem. Um mexidão com arroz, feijão vermelho, tomate e muita cebola. Rolinhos primavera e samossas, ambos recheados com legumes. E mais tofu. De sobremesa eu pediria um bolo com várias camadas. Algo cremoso, gorduroso, crocante, um pouco de tudo. A gente fez todas as revoluções do mundo? (Respondo que sim, já que estamos sonhando. E que, de todo jeito, quando ele estiver velhinho o aquecimento global vai estar tão intenso que provavelmente já estaremos plantando cacau na França.) Então esse bolo seria de chocolate.
Que conselhos você daria às pessoas que querem se tornar veganas? Os três conselhos que, na sua opinião, são os mais importantes.
1- Se aproximar de outras pessoas que sejam veganas por razões antisepecistas e, se possível, se organizar em um grupo ou coletivo com elas. Isso é muito importante.
2- Aprender a se alimentar bem. Isso também é muito importante. Reserve um tempo pra aprender as bases da nutrição, do que o seu corpo precisa e descobrir a imensidão de possibilidades no mundo vegetal. Em seguida se divirta cozinhando e provando novos sabores. Não coma só abobrinha cozida na água! Você não vai conseguir ter sustento desse jeito. E não esqueça de tomar a sua B12! Se informe e veja como é gostoso se alimentar bem.
3- Entenda que, pra algumas pessoas, existem obstáculos pra aderir à pratica vegana que vão além do especismo. O especismo é o obstáculo principal e esmagador, mas no dia-a-dia de muita gente pode ter outras razões que as impedem de ir pro lado vegano da força. É importante não desprezar essas pessoas, não olha-las com superioridade e tentar entender essas razões. Isso é essencial pra poder avançar. Não esqueça que o verdadeiro inimigo é o especismo. A luta é contra ele e aí, nesse caso, não daremos trégua!
Eu estava voltando pra casa no final da manhã quando me deparei com um poster de Ghassan Kanafani na entrada de um dos maiores CoHabs aqui da minha cidade. Há tempos penso em compartilhar um texto dele no blog e vi esse encontro inesperado como um sinal de que eu tinha que fazer isso hoje.
Ghassan Kanafani foi um escritor e militante palestino, expulso de sua terra natal pelas tropas sionistas quando ainda era criança (durante a Nakba, entre 1947-1948), que lutou durante toda a sua vida pela liberdade e autodeterminação do povo palestino, contra o colonialismo e o imperialismo. Kanafani foi assassinado em 1972 pelo Mossad, o serviço secreto israelense, quando tinha apenas 36 anos. Se algum dia você tiver a sorte de encontrar um dos romances dele no seu caminho, não perca essa oportunidade de mergulhar na literatura palestina. Mas o texto que traduzi (do Francês) pra vocês é o começo de um conto, inspirado na sua história pessoal, chamado “A terra das laranjas tristes”. Nesse conto acompanhamos uma criança que é forçada a deixar sua cidade, Jafa, no litoral palestino, e se torna refugiada no Líbano.
Esse conto me fez chorar todas as vezes que o li. Entrevistei várias pessoas que sobreviveram a Nakba, a “catástrofe”, quando as tropas sionistas fizeram uma limpeza étnica da Palestina, pra criar o futuro Estado de Israel, e dois terços da população do país se tornou refugiada. Ouvi-las sempre enchia meu coração de tristeza e revolta, mas, como expliquei acima, esse conto mostra o processo de perder seu lar, sua terra, seu país, tudo que te é caro e se tornar refugiada através dos olhos de uma criança e a tragédia é contada com uma imensa delicadeza. Só lendo pra entender.
A terra das laranjas tristes
Quando partimos de Jafa para Acre, não havia sensação de tragédia. Parecia uma viagem anual para passar o feriado em outra cidade. Nossa estada em Acre não me surpreendeu: talvez, por ser jovem, estivesse até feliz com isso, pois a viagem me fez faltar à escola…
No entanto, na noite do grande ataque à Acre a situação ficou mais clara.
Aquela noite foi difícil para você e para mim.
Foi, penso eu, uma noite cruel, passada entre o silêncio rígido dos homens e as invocações das mulheres. Minha espécie, você e eu, éramos jovens demais para entender o significado de toda essa história. Naquela noite, no entanto, alguns fios da história se acenderam.
De manhã, enquanto os judeus recuavam ameaçando e fumegando, um grande caminhão estacionou em frente à nossa porta.
Coisas leves, principalmente roupas de cama, foram jogadas no caminhão, rápida e histericamente. Eu estava encostado na velha parede da casa e vi sua mãe entrar no caminhão, depois sua tia, depois os pequenos e então seu pai começou a colocar você e seus irmãos no carro, por cima da bagagem.
Então ele me agarrou no canto onde eu estava e, levantando-me acima de sua cabeça, me depositou no compartimento de metal em forma de gaiola acima da cabine do motorista, onde encontrei meu irmão Riad sentado em silêncio.
O veículo deu partida antes que eu pudesse encontrar uma posição confortável. Acre desapareceu aos poucos nas curvas da estrada que subia em direção a Rass El-Naqoura.
O tempo estava um pouco nublado e uma sensação de frio invadiu meu corpo.
Riad, com as costas apoiadas na bagagem e as pernas na beirada do compartimento de metal, estava sentado muito quieto, olhando ao longe.
Eu ia sentado em silêncio, o queixo entre os joelhos e os braços entrelaçados.
Um após o outro, os pomares de laranjeiras desapareceram e o veículo subiu ofegante sobre o chão úmido…
Ao longe, o som de tiros de canhão soava como uma despedida.
Rass El-Naqoura surgiu no horizonte, envolta em uma névoa azulada e o veículo parou de repente.
As mulheres saíram de trás das bagagens, desceram e atravessaram na direção de um vendedor de laranjas, sentado na beira da estrada.
Ao voltarem com as laranjas, o som de seus soluços nos alcançou.
Só então as laranjas ficaram claras para mim: cada uma dessas frutas grandes e saudáveis era algo a ser apreciado.
Seu pai saiu do lado do motorista, pegou uma laranja, olhou para ela em silêncio e começou a chorar como uma criança indefesa.
Em Rass El-Naqoura, nosso veículo se juntou a muitos outros semelhantes.
Os homens começaram a entregar suas armas aos policiais que estavam ali para isso.
Então chegou a nossa vez. Vi pistolas e metralhadoras jogadas sobre uma grande mesa, vi a longa fila de grandes veículos entrando no Líbano, deixando para trás as estradas sinuosas da terra das laranjas e então também chorei amargamente.
Sua mãe ainda olhava silenciosamente para as laranjas e todas as laranjeiras que seu pai havia deixado para os judeus brilhavam nos olhos dele. Como se todas aquelas belas árvores que ele havia comprado uma a uma estivessem refletidas em seu rosto… E em seus olhos, as lágrimas, que ele não conseguiu esconder do policial, brilharam.
Quando, à tarde, chegamos a Saida, tínhamos nos tornamos refugiados.
(Texto traduzido por mim, do Francês. Esse é apenas o início do conto “A terra das laranjas tristes”, de Ghassan Kanafani, publicado em 1963.)
PS Na foto acima vemos, ao lado da imagem de Ghassan Kanafani, cartazes pedindo a liberação de Salah Hamouri, um prisioneiro político franco-palestino. Hamouri é advogado e trabalha na organização de defesa de prisioneiros políticos palestinos Adameer. Vítima da repressão israelense há anos, ele se encontra mais uma vez em “detenção administrativa”. “Detenção administrativa” é algo utilizado frequentemente por Israel contra o povo palestino e significa ser preso ou presa sem acusação formal e sem julgamento, por tempo indeterminado.
Recentemente escutei o episódio “Nordeste: fome, falta e manipulação” do podcast Prato Cheio. Na introdução do episódio podemos ler: “Ser nordestina é carregar consigo, na origem, nos sotaques, uma série de estigmas advindos de um país extremamente classista.” Recomendo muitíssimo esse episódio, que ajuda a entender a construção da xenofobia anti-nordestinas.
Quando eu tinha perfil no Instagram rolava uma conversa recorrente com o pessoal que me seguia por lá sobre sotaques. Foram tantos comentários sobre o meu sotaque, sobre a maneira que eu chamava certos alimentos, que um dia eu escrevi provavelmente a série de stories mais longa que aquela plataforma já viu pra falar desse assunto. E a repercussão foi imensa. Desde que escutei o interessantíssimo episódio sobre o Nordeste fiquei com vontade de trazer aquela conversa pra cá. Felizmente eu achei o rascunho da série de stories sobre sotaques, rescrevi algumas partes e completei outras e o resultado é o que você vai ler a seguir.
Se você não sabe ainda, sou de Natal, RN. Na esquina do Nordeste. Mas acredito que não dá pra acompanhar meu trabalho por mais de alguns minutos sem perceber isso. Seja pela quantidade de coentro nas minhas receitas, ou, se você viu algum vídeo ou escutou uma participação minha em algum podcast (está tudo listado na página Mídia), pelo meu sotaque. E é disso que eu vim conversar com vocês hoje: sotaques. Na verdade, sobre preconceito linguístico e como a cultura nordestina é invisibilizada ou objetificada. Não vai ter coentro, então, galera que odeia essa erva, continue por aqui.
Muitas luas atrás postei a receita da minha releitura de um prato típico nordestino, que a minha mãe fazia pra mim quando eu era criança: caldo da caridade. O ingrediente principal desse prato é caldo de feijão macaça e logo no início do texto eu coloquei entre parênteses “fradinho” pra que as pessoas de outros lugares entendessem de que feijão eu estava falando.
Mesmo assim uma pessoa me perguntou (lá no Instagram) se “macaça” era o nome daquele feijão em Francês.
Fiquei muito surpresa. Francês? Achei que, já que eu estava falando de uma receita nordestina, seria óbvio que a palavra fazia parte do vocabulário nordestino. Eu nunca fui na região Norte (meu sonho) e conheço pouco as tradições culinárias de lá. Mas se estivesse lendo uma receita de lá e topasse numa palavra desconhecida pra mim, deduziria que é algo típico. Se a pessoa escrevendo a receita tivesse dado um sinônimo conhecido pra mim, eu diria “ah, então é assim que chamam X no Norte.”
Pra mim é importante usar o meu vocabulário, principalmente numa receita tão carregada de memória afetiva. Mas tenho plena consciência que não é em todo lugar do Brasil que esse feijão é conhecido como “macaça”, por isso fiz questão de incluir também “fradinho”, que é mais conhecido.
Algumas leitoras nordestinas (ainda no Instagram) até puxaram minha orelha depois, com razão, quando eu respondi “isso não é Francês, não, no Nordeste falamos assim”, pois no estado delas não usam essa palavra. O Nordeste é vasto e longe de ser homogêneo e eu deveria ter dito “na minha parte do Nordeste falamos assim”. Pra minha defesa eu quis dizer que era no Nordeste que essa palavra era usada, mas obviamente não é todo o Nordeste que a usa.
Não culpo as pessoas de outras regiões por não terem familiaridade com os dialetos nordestinos (falarei sobre o que é um dialeto mais na frente). Se nós, do Nordeste, geralmente sabemos que no Sudeste tem algumas diferenças de vocabulário é porque consumimos a mídia vinda de lá e crescemos vendo novelas e noticiários com pessoas que falam um dialeto diferente do nosso. Mas o que achei interessante nesse ocorrido foi uma pessoa de fora do Nordeste ler uma história explicitamente nordestina e ainda assim achar mais plausível que a palavra desconhecida faça parte de uma língua estrangeira do que do vocabulário nordestino.
Sempre escrevi minhas receitas usando as palavras do meu vocabulário: jerimum, macaxeira. E já me perguntaram “O que é jerimum?” algumas vezes. (É “abóbora”, caso você não saiba). No RN falamos jerimum e quem é natural do estado é “papa-jerimum” (o que me agrada mais do que ser chamada de “potiguar”, pois essa palavra significa “comedor de camarão”). Eu nunca teria a ideia de escrever receitas usando palavras que não uso na minha fala. Além de soar falso, não vejo razão pra renegar o meu dialeto e adotar o dominante. Mesmo assim, absolutamente todas as vezes que saí do Nordeste e dei palestras ou cursos em outros lugares do Brasil as pessoas fizeram comentários sobre eu “ter sotaque nordestino”.
Interessante notar a evolução dos comentários. Eu tinha 12 anos quando saí do Nordeste pela primeira vez. Fui visitar parentes no Goiás com a família. Foi quando descobri que eu “tinha sotaque”. Bastava eu abrir a boca pras pessoas goianas (crianças e adultas) rirem e dizer: “Você fala com sotaque do Norte.” Eu não entendia como aquelas pessoas podiam ser tão ruins em geografia e sempre corrigia: “Nordeste. Eu venho do Nordeste. O Norte fica à esquerda.” Mas não tinha jeito, pra elas eu era nortista, tinha sotaque nortista e ponto final.
Já hoje as pessoas de outras regiões não riem mais quando me escutam falar. Elas elogiam! Dizem: “Nossa, que sotaque lindo” ou “Que fofo, esse sotaque”. Então meu sotaque passou de algo risível pra algo objetificado. Eu entendo que as pessoas são sinceras e óbvio que prefiro que achem bonito do que caiam na risada, como faziam quando eu era criança (embora na última vez que estive em Florianópolis o dono de uma lanchonete onde eu estava comendo tirou onda com o meu sotaque, prova que ainda não pararam de rir do sotaque nordestino). Mas sabe o que seria melhor ainda? Nada. Adoraria falar com as pessoas e não ouvir nenhum tipo de comentário sobre a maneira como falo, assim como tenho a educação de nunca fazer comentários sobre o sotaque delas (mesmo achando alguns mais melodiosos que outros, guardo essas opiniões pra mim mesma).
Talvez você não entenda por que estou dizendo que isso é objetificação, então deixa eu explicar. Já aconteceu várias vezes de me falaram (geralmente homens) “Que sotaque gostoso! Fala mais pra eu escutar.” Isso me faz ferver por dentro. Eu não vou entreter ninguém só porque a pessoa decidiu que meu sotaque é “gostoso”. Minha vontade é dizer: “Quer que eu toque rabeca e dance um xaxado também, senhor?” O meu dialeto, longe de ser visto apenas como o sistema linguístico da região onde nasci e parte da minha identidade, se torna um objeto pra entreter ouvidos alheios, quando tudo que eu quero é terminar o meu sanduíche em paz. Ou trocar ideias com as pessoas sem me sentir como algo exótico.
O mais curioso é quando me dizem: “Olha, ela tem sotaque!” Como se o resto do Brasil não tivesse sotaque! O Sudeste, mais precisamente SP e Rio, dominam culturalmente o resto do país, então paulistas e cariocas juram que não tem sotaque. Consideram a maneira como falam “padrão” e tudo que desvia disso é “diferente” (ou, “sotaque”). Já vimos esse processo antes, não é mesmo?
E, cúmulo do absurdo, já teve quem me disse: “Nossa, ela ainda fala Português com sotaque nordestino, mesmo depois de ter morado a metade da vida no estrangeiro.” Oxe! E haveria deu esquecer o meu dialeto? Note que o comentário não é “ela ainda fala Português sem sotaque”, mas “ela ainda fala Português com sotaque nordestino”. A pessoa sai de Natal, vai morar na Europa e era de se esperar que ela voltasse falando Português com sotaque paulista?
A cultura nordestina sempre foi invisibilizada ou caricaturada. E a língua é um instrumento de dominação. E de discriminação. Já ouviu falar em preconceito linguístico? Então senta que lá vem (mais) história.
Eu sou formada em linguística. Vou começar explicando o que é linguística, pois muita gente confunde e acha que sou formada em Letras ou pergunta: “Linguística? Que língua você estudou?”.
Linguística é uma ciência cognitiva, por isso essa disciplina também é conhecida como Ciências da Linguagem (esse era o nome do meu departamento na universidade, inclusive). Não estudei nenhuma língua específica porque a linguística estuda a linguagem.
Linguagem é a faculdade de comunicar. Língua é a forma que essa comunicação adquire dentro de um determinado grupo humano, em determinado espaço geográfico, em um momento temporal preciso e esse sistema tem características específicas. Animais não-humanos comunicam, mas nenhum tem um sistema tão sofisticado como nossas línguas (mas não é motivo pra discrimina-los, viu?). Tem mais coisas aqui, estou simplificando ao máximo. A linguagem é uma habilidade cognitiva, a língua é a manifestação tangível dessa habilidade.
Fiz minha graduação em Aquisição da Linguagem e comecei um mestrado (que nunca terminei) em Linguística Teórica e Descritiva, no campo da sintaxe. Existe uma diferença fundamental entre adquirir uma língua e aprender uma língua. Nós adquirimos nossa língua materna e aprendemos línguas estrangeiras. Crianças que crescem em ambiente bilíngue adquirem duas línguas ao mesmo tempo. Temos uma espécie de aparelho de aquisição de línguas. Aqui entra Noam Chomsky, um dos maiores linguistas de todos os tempos e o autor que mais estudei, pois meu campo de estudo era o mesmo do dele. Vou poupar vocês da aula sobre generativismo e gramática universal, pois quando começo a falar dessas coisas me empolgo e quando dou por mim estou desenhando árvores sintáticas, enquanto as pessoas me olham com cara de paisagem, sem entender por que acho isso tudo tão interessante.
Aprender uma língua estrangeira é passá-la pelo prisma da nossa língua materna e, como era de se imaginar, é um processo muito mais lento e trabalhoso. Pra se ter uma ideia, no pico da aquisição linguística, ou seja, quando estamos adquirindo nossa língua materna, crianças aprendem em média uma palavra nova por hora. O que significa que basta que elas sejam expostas uma única vez à palavra nova pra aprendê-la. Imagina o sonho que seria se a gente aprendesse línguas estrangeiras com essa facilidade!
Também tem pessoas que acham que Linguística tem a ver com gramática e como falei que minha área de pesquisa era sintaxe, a confusão fica ainda maior. Não é exatamente da mesma sintaxe que estou falando aqui, nem da mesma gramática (quando falo da “gramática universal de Chomsky, por exemplo). E, diferença fundamental entre as duas disciplinas, a gramática é prescritiva, enquanto a linguística é descritiva. A gramática é artificial e dita regras, enquanto a linguística observa e descreve, sem dar julgamento de valor. A linguística descreve como falamos, enquanto a gramática diz qual é a maneira “correta” de falar.
Agora vou deixar a coisa mais complexa, mas é uma aula interessante.
Lembra que expliquei, no início do texto, que falaria de dialetos? Sabe qual a diferença entre uma língua e um dialeto? Na faculdade aprendi que “uma língua é um dialeto com um exército e uma marinha.” Ou seja, à partir do momento em que um dialeto é elevado à posição de dialeto oficial de um Estado-nação, ele adquire o status de língua. A língua é um objeto político.
É senso comum achar que “dialeto” é uma língua menos sofisticada, menos desenvolvida. Nesse sentido, dialetos sempre foram usados pra denominar a língua dos subalternos. Não só os dialetos indígenas no Brasil, mas os dialetos dos povos colonizados pelos europeus, inclusive dentro da Europa (são colonizações diferentes e não cabe aqui os detalhes). Até hoje, na França, tem vários dialetos não reconhecidos como “oficiais”, como o Bretão e o Occitano, por exemplo, e por isso são “dialetos” e não “línguas” pro Estado francês (claro que as pessoas que o falam sabem que são línguas da mesma maneira que o Francês é uma língua). Uma excessão é o Basco (falado numa região entre a França e a Espanha), que apesar de não ser a língua oficial de um Estado, tem status de língua. Então o sistema linguístico de um grupo pode ser considerado “dialeto” se ele pertencer ao grupo dominado, enquanto o sistema linguístico do grupo dominante vai ser o dialeto oficial do Estado, logo será chamado de “língua”.
Então você já entendeu que língua e dialeto são nomes diferentes pra mesma realidade linguística: um sistema complexo de sons (ou visual, no caso de Libras) utilizado pra transmitir informações de um cérebro pra outro. Dependendo do contexto, vamos chamar isso de “língua” ou de “dialeto”, porém do ponto de vista da linguística, só existem dialetos. Se língua é um objeto político, o dialeto é um objeto linguístico.
Por isso quando linguistas fazem pesquisas tem que ser sobre um dialeto determinado, pois a maneira como o meu Português se organiza é diferente de outras pessoas que falam Português em outros lugares.
Vou dar um exemplo de sintaxe. No meu dialeto (Natal/RN), substantivos próprios (nomes de pessoas, pra ser específica) não são precedidos de um artigo definido. Já no dialeto de São Paulo, sim. Eu digo: “Roberta veio hoje?” Uma paulista vai dizer: “A Roberta veio hoje?” A estrutura sintática é diferente. Então se eu estiver fazendo uma pesquisa no campo da sintaxe, como o que eu fazia no mestrado, não posso fazer declarações como: “No Português, substantivos próprios relativos a nomes de pessoas são precedidos de um artigo definido: A fulana, O fulano”, pois isso só é verdade em alguns tipos de Português. Ou seja, só é verdade em alguns dialetos.
“Ah, mas a gramática do Português diz que não é correto colocar artigo definido antes de substantivo próprio, a menos que seja pra especificar, como na frase: ‘A Roberta que eu conheci na infância era diferente da Roberta de hoje’, logo a paulista fala errado e a natalense fala certo.”
Vou relembrar que a gramática diz como devemos falar, ela é normativa, mas que a linguística descreve como falamos, logo, é descritiva. Não estudamos a gramática que você encontra nos livros, mas sim a fala das pessoas, que tem sua gramática própria e que nem sempre coincide com a norma da gramática do livro.
Chegou a hora de mencionar outra coisa importante. Eu disse que o objeto de estudo da linguística é o dialeto, certo? Pois deixa eu dizer também que só estudamos o dialeto falado, nunca o escrito. O que nos interessa é o falar das pessoas, não a maneira como elas escrevem.
Então falamos, por exemplo, de “dialeto do interior do RN”, ou “dialeto da cidade de SP” e mesmo aí ainda poderíamos ter grupos menores de dialetos de acordo com os bairros, classe econômica, idade… Então à partir de agora vou escrever “dialeto” sempre que me referir ao que, fora da linguística, chamam de “sotaque”, tá? É preciso guardar essa informação pra entender o resto da argumentação.
Algo sempre me fascinou. Conheço pessoas nordestinas que foram morar em outra região e adotaram o dialeto na nova morada. Acontece até de voltaram pro Nordeste, depois de algum tempo fora, e manterem o novo dialeto. Quem viu Lisbela e o Prisioneiro vai lembrar de Douglas, o rapaz que saiu do interior do Nordeste pra passar umas férias no Rio e voltou falando “carioquês”, o que virou motivo de piada na cidade. É disso que estou falando. E reparem que a situação inversa quase nunca acontece. Eu conheço pessoas que nasceram no Rio, mas moram em Natal desde que eram crianças e hoje, adultas, continuam falando “carioquês”. E é exatamente aqui que entra o preconceito linguístico e a desvalorização da cultura nordestina.
O Nordeste ainda é visto pelo resto do país como um lugar de atraso, de gente ignorante, de seca e de fome. Eu lembro que ainda era criança quando ouvi Lulu Santos dizer, em um programa na tv, que “O Brasil só não vai pra frente por causa do Nordeste.” E o que falar do ódio que os bolsonaristas tem do Nordeste, último bastião antifascista do país? Quem ainda lembra da estudante paulista que, depois da reeleição de Dilma, tweetou: “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado”? Eu lembro.
Por isso não é surpreendente que a pessoa que sai de João Pessoa pra morar, digamos, em São Paulo, adote o dialeto dominante, provavelmente na tentativa de sofrer menos discriminação por ser nordestina ou por já ter internalizada o preconceito contra sua própria região e dialeto. Já a paulista que vai morar em João Pessoa vem da cultura dominante, fala o dialeto dominante e geralmente não sofre discriminação por ser paulista. Então a relação que temos com nosso dialeto está diretamente ligada à maneira como nossa cultura é vista pelo grupo dominante. E muita gente do Nordeste acaba integrando, inconscientemente ou não, a noção de que nossa região, cultura e dialeto são inferiores.
Por isso é tão importante pra mim usar as palavras do meu vocabulário e não “suavizar” o meu dialeto quando estou palestrando ou dando cursos no Sudeste ou Sul. É cansativo ter que ouvir as mesmas coisas, de novo e de novo? É um saco! Porém qual é a alternativa? Mudar a maneira como eu falo pra soar menos “diferente” fora do Nordeste? Jamais! Ninguém deveria precisar fazer isso pra ser levada a sério (sim, porque quando alguém diz que falo de uma maneira lindinha, fofa, etc eu me sinto infantilizada).
Sim, eu tenho sotaque e você também tem. Todas temos. Falamos dialetos diferentes e o meu não é inferior ao seu. Por isso seguirei dizendo “macaxeira”, “jerimum” e “feijão macaça”. Até que as pessoas escutem alguém como eu falar fora do Nordeste e reajam com naturalidade, sem rir nem objetificar o meu dialeto. Se meu dialeto soa exótico aos seus ouvidos isso me informa que você não conhece muitas pessoas nordestinas. Então fica a dica: se abra mais pra nossa cultura. Escute música de nordestinas, veja filmes feitos por e com nordestinas… Talvez, depois de um tempo, nossos dialetos (são vários no Nordeste, não falamos todas da mesma maneira) parem de soar exóticos, fofos, engraçados, gostosos e você consiga lidar com a pessoa na sua frente sem sentir a necessidade de fazer comentários sobre a maneira como ela fala. Nem achar que uma palavra do vocabulário do RN é algo em Francês.
Claro que seguimos livres pra achar mais ou menos bonito diferentes dialetos do Brasil. Eu mesma tenho os meus preferidos e outros nem tanto. Mas, como falei, podemos guardar isso pra nós ou até mesmo fazer um elogio, mas sem o tom que faz com que o elogio se torne algo infantilizante (“ai, que fofo!”) nem objetificante (“ai, que delícia, fala mais!”).
Quando minha conta no Instagram foi desativada (contra a minha vontade), o que mais me chateou foi ter perdido o conteúdo que eu vinha publicando ali há anos. Eu não tenho a maioria das fotos que estava lá, mas o que mais me deixou realmente triste foi perder os textos, que representavam centenas de horas de trabalho. Mas não tinha só texto de trabalho ali. No meio da montanha de informação pra conscientizar sobre antiespecismo, sobre a construção do veganismo popular, receitas, dicas e material pra refletir sobre diversas lutas (feminismo, libertação do povo palestino, combate ao racismo e LGBTfobia…) tinha um pequeno texto extremamente precioso pra mim. Um trecho da última conversa que eu tive com a minha mãe, dois anos atrás.
Chamar de “conversa” vai parecer estranho, pois a mente da minha mãe já estava bem debilitada pelo Alzheimer e nosso diálogo não fazia sentido nenhum. Mas foi tão engraçado, eu ri tanto naquele dia, que corri pra pegar um papel e anotar tudo. Eu não queria perder aquele tesouro.
Foi a última vez que houve uma troca de frases longa entre nós. Depois daquele dia ela passou a falar cada vez menos e nunca dizia mais de uma ou duas frases por vez. Apesar de todos os cuidados da minha família, minha mãe teve Covid recentemente. A doença afetou muito a saúde dela e uma das sequelas foi mergulhá-la no silêncio. Ela já não fala praticamente nada e quando tenta pronunciar alguma palavra, ela sai da boca tão fraquinha que não consegue chegar inteira nos nossos ouvidos.
Isso foi uma porrada grande pra mim. Estou me preparando emocionalmente pra encontrar uma mãe silenciosa daqui a algumas semanas (vou ao Brasil no final do mês). O que mais me dói é pensar que nunca mais vou escutar ela responder “Oi, filha”. Eu gostava de falar “Mãe?” só pra ter o prazer de ouvi-la me chamar de “filha”. Por causa do Alzheimer, hoje minha mãe precisa da nossa ajuda pra tudo. Pra comer, ir ao banheiro, pra tomar banho, pra se vestir. Chega esse momento na vida em que nos tornamos a mãe da nossa mãe. Eu me tornei a responsável, a adulta. Ela se tornou um ser frágil que não sobrevive sem nossos cuidados. Por isso eu apreciava tanto esses momentos em que ela me chamava de filha. Nossa relação voltava a ser o que era. Ela, a mãe. Eu, a filha. Eu reencontrava minha mãe pour um segundo.
Foi então que o universo me enviou um presente. Na semana em que ela parou de falar, descobri o diálogo engraçado, que eu pensava ter perdido pra sempre, em um dos meus cadernos. Não lembrava de ter anotado ali, então foi uma enorme surpresa. Nem consigo explicar a felicidade que senti ao ler aquilo de novo. E pra não correr o risco de perder as palavras dela novamente, vou deixar gravado aqui no blog também.
(Era depois do almoço. Minha mãe me chamou pra dar um cochilo.)
-Deite um pedacinho* aqui comigo.
-Deito, mãe.
-Trouxe o sal?
-Trouxe.
-O sal, não, mulher. O açúcar.
-Trouxe também.
-Achou uma linhazinha aí, minha filha?
-Achei, mãe.
-E tão jogando fora?
-Tem ninguém jogando fora.
-Cadê tu, cabelo de angu?
-Tô aqui, mãe.
-No chão?
-Não, na cama.
-Eu queria era saber como tira cenoura.
-Puxando.
-E ele saiu por essa porta?
-Saiu. Mas volta.
-Tá chovendo muito.
-O que?
-Chovendo, não. Tão fazendo uma brincadeira muito séria, muito boa.
(ela começa a tossir)
-Tá doente, mãe?
-Tô. Mas também já aturei* muito. Chega*, Lavin!
-Quem é Lavin?
-Um rapaz lá de Santana.
-Vai dormir não, né, mãe?
-Agora, não. Só de noite. É raposa.
-Raposa, o que é?
-Um bichinho assim… Do jeito que ele sentir for, ele vai e ferve.
-Mãe?
-Oi, filha.
-Quem não pode com o pote…
-não pega na rudia.*
-…
-Tinha duas cabeças.
-Quem?
-O bode e a bada.
-Né cabra, não?
-Tu quer mastigar, é?
-Cabra? Mãe, pare de contar brebote*!
-Eu vou é plantar uma ruma*! Quem é seu pai?
-Paulo.
-Ah, o meu marido. E você só tem um?
-De pai, só.
(Ela levantou da cama e sentou na rede. Sentei de frente à rede, peguei as mãos dela e beijei. Ela acariciou minha palma direita, depois fechou minha mão e a segurou, fechada, entre as mãos dela, como se estivesse protegendo algo.)
-A senhora colocou o que na minha mão?
-Um punhado de farinha e um pedaço de rapadura.
(e sorriu)
*Pequeno dicionário sertanejo
Minha família é do Sertão potiguar e tem algumas palavras e expressões nessa conversa que nem todo mundo vai entender.
1-“Pedaço” pode ser uma medida física (um pedaço de bolo) ou uma unidade temporal (“Espere um pedaço” / “Fique comigo um pedacinho”). Acredito que, assim como o espaço, o tempo também pode ser dividido em pedaços.
2- Aturar: nesse contexto, é um verbo sinônimo de “durar”. “Já aturei muito!” significa “Já durei muito, já vivi muito”. Mas também significa “suportar” (“Eu não aturo essa pessoa!”)
3- Chega, _____(nome de alguém)!: expressão que significa algo como “Venha ver isso aqui!”. O “chega” que significa “basta!” é pronunciado diferente, de maneira enfática. Já o “chega” que quer dizer “venha ver aqui” é pronunciado “Cheeeega”. Aliás “basta” também tem um significado duplo no dialeto sertanejo;)
4-Rudia: na verdade é a nossa maneira de pronunciar a palavra “rodilha”. Significa uma corda ou, como era mais comum no Sertão, um pano que você coloca arrumado em círculo em cima da cabeça pra carregar algo pesado. No caso aqui, o pote d’água. Minha mãe adorava falar esse ditado, que quer dizer que “se você não dá conta do trabalho, nem comece”. Uma versão moderna e sudestina seria: “Se não sabe brincar, não desce pro play.”
5-Brebote: significa coisa sem sentido. “Falar brebote” = falar besteira.
6- Ruma: sinônimo de “um monte”. Uma ruma de gente. Uma ruma de comida. De acordo com minha irmã mais velha, “ruma” é coletivo de “bosta”. Mas, por extensão, se tornou coletivo de tudo.
Cheguei ontem à noite de uma curta visita ao meu sogro, no interior da França. Ele teve problemas de saúde sérios nos últimos meses e apesar de estar tudo bem agora, estava precisando de apoio emocional. Esse ano está sendo puxado pra mim, em termos de saúde dos pais (incluindo aqui minha mãe, meu pai e meu sogro). Fui lembrada, várias vezes, da fragilidade da vida e dos corpos das pessoas mais velhas da minha família.
Mas agora que o susto com o meu sogro já passou, pudemos curtir alguns dias embaixo dos carvalhos dele (o jardim do meu sogro é um bosque!), colhendo maçãs no quintal e compartilhando refeições ao ar livre, antes que o outono se instale e traga junto o frio.
No dia seguinte à minha chegada ele me pediu uma ratatouille, um prato que ele adora. Como ainda é verão aqui, é a época perfeita pra fazer esse que é um dos únicos pratos da culinária tradicional francesa 100% vegetal. Usei um método diferente, pensando em ganhar tempo, e acabei criando a melhor ratatouille que já fiz. Foi um sucesso tão grande que ele me pediu pra fazer de novo dois dias depois pra que pudesse anotar a “receita”. Coloquei entre aspas porque se trata de um método, não de uma receita. A receita, eu compartilhei aqui em 2010 (ano da criação desse blog). Mas como esse novo método produz um resultado muito superior, vim compartilhar.
Ratatouille (técnica melhorada)
A receita, com medidas, está nesse post. Mas não precisa de medidas exatas, é só uma questão de proporção. Use a mesma quantidade de abobrinha e berinjela, uma quantidade menor, mas igual, de cebola, pimentão e tomate, alho a gosto e tá tudo certo. O pulo do gato é combinar o forno com o fogão pra intensificar os sabores.
Berinjela
Abobrinha
Tomate
Pimentão vermelho (ou amarelo)
Cebola
Alho
Tomilho, louro, sal e pimenta preta
Azeite
Corte a berinjela e a abobrinha em pedaços médios (com casca e sementes, obviamente). Coloque em uma travessa/forma grande (onde caiba tudo) e regue com bastante azeite, tempere com sal e leve ao forno quente até ficar tudo macio e dourado. Isso é muito importante pra garantir o sucesso da receita. O calor seco vai retirar a água dos legumes, concentrar os sabores e a reação de Maillard (o douradinho por fora) deixa tudo ainda mais gostoso.
Enquanto os legumes assam, corte a cebola, o pimentão e o tomate em pedaços médios e pique o alho. Capriche no alho! Em uma panela grande e, idealmente, do fundo grosso, esquente uma boa quantidade de azeite e doure a cebola. Junte o alho e o pimentão, refogue por mais um minuto e acrescente o tomate. Junte o tomilho (desidratado- se for fresco, acrescente no final) e uma folha de louro, tempere com sal e pimenta preta e deixe cozinhar, coberto, até o tomate se desfazer e o molho encorpar ligeiramente.
Quando a berinjela e a abobrinha estiverem bem assadas (vai murchar bastante e liberar espaço na travessa pros outros ingredientes), retire do forno e despeje o refogado de tomate/cebola/pimentão/alho por cima e misture bem. Como os legumes assados estarão mais secos (a água de dentro dos legumes evaporou no forno), eles vão absorver o refogado de tomate e vai ficar tudo incrivelmente saboroso. Mas vamos concentrar ainda mais os sabores colocando a travessa de volta no forno, depois de ter regado tudo com mais um fio de azeite (não tenha medo de usar azeite aqui). Se seu forno tiver a opção “grill” chegou a hora de usá-la. Mas se não tiver, aumente um pouco a temperatura e deixe ali até que a superfície da ratatouille esteja levemente caramelizada.
Deixe esfriar um pouco (dentro do forno) antes de servir. Tradicionalmente ratatouille é servida com arroz, mas você pode servir com o que quiser. Ela se conserva alguns dias na geladeira e fica ainda mais gostosa requentada, no dia seguinte. Restos de ratatouille são um ótimo molho par macarrão e recheio pra sanduíche (com uma camada de hummus – tradicional ou cubano– fica sublime).
Quando eu publiquei o primeiro texto falando sobre como cozinhar pra semana inteira, prometi voltar pra falar de outro método, o que uso quando trabalho como chef a domicílio. Esse dia chegou e vim fazer um relato detalhado de como isso funciona, mas resolvi ir além! Também vou mostrar como aplicar as dicas, usando um cardápio composto por receitas aqui do blog, além de explicar como essa comida se traduz em refeições pra semana inteira, usando poucos ingredientes acessíveis pra complementar. O post é longo, mas vale a pena ler até o final.
Essa é a maneira mais eficaz de cozinhar vários pratos de uma vez, mas requer mais planejamento e sair pra fazer compras. Se você já tiver ido à feira/mercado e quiser preparar o cardápio baseado no que tem em casa, o primeiro método faz mais sentido. Mas pra saber como organizo o trabalho de chef a domicílio, como consigo cozinhar todos os pratos que uma família vai consumir em uma semana em apenas 4 horas (incluindo a limpeza da cozinha!), aqui vai o passo-a-passo.
Faça uma lista com o que você quer comer durante a semana.
-Escolha pratos que você já cozinhou várias vezes e pode fazer sem muito esforço. Assim seu tempo na cozinha vai ser menor e mais agradável.
-Se realmente quiser fazer um prato novo (que vai exigir mais concentração da sua parte), escolha só um, senão a coisa fica complicada demais.
-Pense em receitas com legumes e frutas da estação: é mais barato, mais gostoso e mais ecológico.
-Já disse isso no primeiro post dessa série, mas vou repetir: escolha pratos que você realmente gosta de comer. Passar horas na cozinha e encher a geladeira de comida pronta só faz sentido se você tiver vontade de comer essa comida depois.
Misture pratos completos com componentes que podem entrar em vários pratos.
-Isso tem várias vantagens. Você consegue fazer mais pratos em menos tempo, terá mais liberdade na hora de montar as refeições e vai ter mais variedade de alimentos durante a semana.
-Exemplos de componentes: arroz cozido (ou outro grão), legumes assados, uma pasta pra passar no pão, milho cozido, grão de bico cozido (ou outra leguminosa pra incrementar uma salada, uma sopa, virar bolinho)…
(Pra optimizar o fogão e fazer o máximo de comida ao mesmo tempo, escolha uma mistura de pratos assados e pratos cozidos. Assim dá pra colocar algo no forno e ainda ter as bocas do fogão disponíveis pra preparar outras coisas. E não esqueça que a panela de pressão é a sua maior aliada pra economizar tempo e gás.)
Depois de escolher os pratos/componentes, dê uma volta pela sua cozinha e veja o que já tem na dispensa e se tem frutas/legumes da última feira dormindo na geladeira.
-Incorpore esses vegetais nas receitas que você tinha previsto pra semana.
-Se ligue no desperdício! Se tiver comida precisando ser usada na geladeira, dê prioridade a ela. Adapte as receitas da sua lista inicial, se preciso.
Baseado nos pratos que você quer fazer e no que já tem na sua cozinha, prepare a lista de compras.
-Primeiro eu listo todos os ingredientes necessários pras receitas que vou cozinhar, depois vou eliminando o que já tem em casa. O que sobrou é a lista de compras.
-Já que você vai até o mercado ou feira, provavelmente vai querer fazer todas as compras da semana. Então complete a lista incluindo o que mais precisar pra sua alimentação semanal (e a das pessoas da sua casa).
Beleza, você fez a lista dos pratos que quer preparar essa semana, incorporando as sobras da última feira que estão murchando na geladeira, preparou a lista de compras, foi à feira e trouxe tudo que precisava pra casa. Como proceder agora?
Vou explicar como faço (na casa de clientes e aqui em casa), usando técnicas que aprendi trabalhando em restaurantes. Mais do que seguir à risca o meu passo-a-passo, gostaria que você lesse com atenção e entendesse como a coisa funciona pra ser capaz de desenvolver uma rotina que caiba na sua cozinha, no seu tempo e que respeite suas capacidades. Bora lá.
O guia prático da maratona na cozinha
Atenção! Se for usar leguminosas (feijão, grão de bico) lembre de deixá-las de molho no dia anterior.
Vista o avental, tome um copo d’água e coloque um podcast pra tocar (ou suas músicas preferidas).
1- Escreva os pratos que você vai preparar com os ingredientes que entram em cada um deles e cole em algum lugar visível (na porta da geladeira, na porta do armário). Use como guia pra fazer a “mise en place” e pra ter certeza que não esqueceu nenhum ingrediente.
2- Coloque todos os ingredientes que você vai precisar em cima da mesa (ou outro espaço de trabalho). Depois faça grupos correspondentes às receitas. Se estiver fazendo uma sopa, uma lasanha, um feijão e legumes assados, separe todos os ingredientes da sopa num canto, todos os ingredientes da lasanha em outro… Isso vai facilitar a próxima etapa.
3- Agora que você sabe quantas cebolas vai precisar usar ao todo, quantos dentes de alho, o que vai precisar ser descascado, etc chegou a hora de fazer a famosa “mise en place” (pronuncie “mizãplás”). Isso é um termo francês utilizado na culinária que, traduzido literalmente, quer dizer “colocação no lugar”. Significa preparar tudo que for necessário pra fazer uma receita (picar o alho, picar a cebola, cortar os legumes, etc) e deixar tudo bonitinho, em cumbucas e ao alcance da mão, antes de acender o fogão. Corte, pique, descasque e lave tudo que será utilizado. Cortar tudo junto te faz ganhar muito tempo e na hora de cozinhar vai ser muito mais rápido: é só ir pegando o que foi cortado e jogando na panela.
(Vai bagunçar a organização de ingredientes por receitas que fizemos na etapa anterior? Sim, mas é por isso que tem a lista de receitas com os ingredientes colada na porta do armário, pra te guiar na hora de cozinhar. Os ingredientes que não precisarem ser picados -os grãos, temperos, etc, podem seguir agrupados por receita. Isso te faz ganhar tempo, além de evitar que coisas queimem. Imagine que você está refogando alguma coisa e a receita pede cominho. Aí você para de mexer a panela e vai procurar o cominho dentro do armário, mas tem que tirar tudo da frente porque o danado tá lá no fundo. Enquanto isso a panela tá secando no fogo… Sentiu o drama? Queremos evitar isso.)
4- Chegou a hora de acender o fogão e cozinhar tudo. Essa etapa vai ser detalhada daqui a pouco.
5-Depois de pronta, divida a comida em recipientes com tampa e guarde na geladeira. Você também pode congelar uma parte pra ser degustada na semana seguinte.
6- Já que estamos aqui, aproveite sua maratona na cozinha pra lavar, secar e guardar as folhas pra saladas. E pra completar, faça um molho pra salada, que pode ser guardado na geladeira e usado durante toda a semana. É rapidinho e o combo folhas limpas + molho pronto vai te ajudar a comer mais salada durante a semana.
7- Muito importante: limpe enquanto cozinha. Essa é uma regra de ouro nos restaurantes, mas deve ser aplicada na sua casa também, se não quiser que sua experiência de cozinhar pra semana se torne um caos. Vá lavando a louça conforme for sujando e limpando a superfície de trabalho (bancada, mesa) entre cada receita. Só o chão deve ser limpado apenas no final, por razões óbvias.
Dica bonus (óbvia, mas que precisa ser explicitada pra muita gente): Você controla o fogo, não o contrário!
A comida tá começando a pegar no fundo da panela? Baixe o fogo. A água tá demorando a ferver? Aumente o fogo. Precisa se ausentar da cozinha por uns minutos (pra ir ao banheiro, por exemplo)? Desligue o fogo. Se atrapalhou com tanta comida pra preparar de uma vez e a coisa saiu do controle? Apague o fogo, se sente e respire fundo algumas vezes antes de voltar pro fogão.
Dica bonus 2: Se você não tem muita prática na cozinha, nem uma tarde inteira pra preparar comida pra semana, comece preparando um ou dois pratos em quantidade grande (um feijão pro almoço e uma sopa pro jantar, por exemplo), que você vai comer várias vezes nos dias seguintes. Já quebra um galhão na hora de preparar as refeições mais tarde e mesmo se você não puder preparar mais nada durante a semana, esses dois pratos vão melhorar a qualidade da sua alimentação.
Acender o fogão e cozinhar pra semana: o passo-a-passo
Parece muita informação pra assimilar de uma vez? Deixa eu te mostrar como colocar tudo isso na prática, usando um cardápio-exemplo com receitas aqui do blog. Não é um cardápio completo pra uma semana inteira, pois esse post ficaria quilométrico se eu fizesse isso. Mas alguns pratos são suficiente pra você entender o funcionamento desse método. Depois é só adaptar pra quantidade de comida que você quiser preparar.
(Muitas das fotos que aparecem aqui foram feitas na casa de uma das minhas clientes, em Berlim, muitas luas atrás, e não correspondem às receitas do cardápio que serve de exemplo. Elas servem pra ilustrar esse guia, pois fica mais fácil entender as explicações ao ver as imagens.)
-No dia anterior, deixe o feijão e o grão de bico de molho.
-Comece escorrendo o grão de bico demolhado e levando pra cozinhar (na pressão) com água limpa e sal.
-Limpe a área de trabalho (mesa, bancada ou canto da pia – o lugar onde você for colocar a tábua e cortar seus ingredientes) e retire todos os objetos que possam atrapalha seu trabalho. Prepare a faca e a tábua de cortar. Uma boa faca, bem afiada, reduz consideravelmente o seu tempo na cozinha, além de ser muito mais agradável de manipular. E pra que sua tábua não saia do lugar enquanto você corta, diminuindo o risco de acidentes com a faca, coloque um pano úmido embaixo (como nas fotos abaixo).
-Separe os ingredientes por receita e faça a mise en place. Se não quiser usar essa palavra francesa, porque soa esnobe, eu apoio. Prepare os vegetais: corte as cebolas, o alho, as verduras, descasque a macaxeira (se não estiver comprado descascada) e deixe na água (pra não oxidar)…
-Separe as verduras cortadas de acordo com as quantidades que serão usadas em cada receita. Se você vai usar 1 cebola na sopa e 3 no feijão, coloque 1 cebola picada em uma cumbuca e as 3 cebolas em fatias pro feijão numa outra. Assim você visualiza exatamente a quantidade que vai entrar em cada receita, o que vai facilitar muito o seu trabalho depois. Faça a mesma coisa com o alho e todo ingrediente que entre em vários pratos.
-Transfira oslegumes que serão assados pra uma assadeira/forma/placa, regue com azeite ou óleo, tempere com sal e leve ao forno.
-Nesse ponto o grão de bico já deve ter cozinhado. Desligue o fogo e deixe a pressão sair naturalmente.
-Não esqueça de ir lavando a louça à medida que for sujando e dando uma limpada na área de trabalho.
-Prepare a sopa de jerimum. Refogue o que precisar ser refogado, cubra com água, baixe o fogo e tampe.
-Fique de olho nos legumes que estão assando. A melhor maneira de não esquecer o que está no forno é colocar um alarme no celular.
-Retire o grão de bico cozido da pressão e guarde uma parte pra ser consumida em saladas durante a semana. A outra parte se transformará em hummus. Reserve uma parte do líquido de cozimento (pra usar no hummus).
-Use a panela de pressão onde o grão de bico cozinhou (nem precisa lavar) pra cozinhar o feijão acebolado (cozinhe na água limpa com sal e uma folha de louro).
-Agora a sopa de jerimum deve estar cozida. Finalize com o leite de coco, retire do fogo e deixe esfriar, coberta.
-Não esqueça dos legumes no forno! Desligue quando estiverem quase totalmente assados e deixe dentro do forno pra terminar o cozimento aproveitando o calor até o final (o gás tá caro!)
-Faça o hummus cubano (com o grão de bico e o líquido de cozimento reservado, além dos outros ingredientes da receita, claro). Coloque o hummus pronto em um pote com tampa e lave o liquidificador.
-A sopa deve ter esfriado o suficiente pra ser transferidos pra recipientes com tampa. Começa outra rodada de lavação de louça.
*Interrompemos a programação pra te lembrar de beber água. Deixe um copo cheio ao alcance da vista e beba regularmente durante todo o processo. É importante se hidratar enquanto esquentamos a barriga no fogão.*
-O feijão deve estar bem cozido. Desligue, deixe a pressão sair e finalize (no caso do feijão acebolado, siga a receita pra saber como finalizar). Depois de pronto deixe esfriando, com a tampa atravessada.
-Faça o arroz. Enquanto ele cozinha…
-Retire os legumes assados do forno (que já estava desligado) e coloque em um recipiente com tampa.
-Prepare o molho pra salada. Coloque em um vidro com tampa e deixe na geladeira.
-Chegou a hora de higienizar suas folhas. Deixe tudo prontinho (enrolado num pano de prato, dentro de um recipiente com tampa) pra ser consumido durante a semana.
-O arroz cozinhou? Deixe esfriar e aproveite pra lavar a louça que ainda tá suja e limpar a mesa e bancadas.
-O feijão acebolado já deve estar morno. Guarde em recipientes com tampa (as porções devem ser adaptadas ao tamanho da sua família. Só tem você em casa? Faça porções pra uma pessoa. Tem quatro bocas pra alimentar? Faça porções pra quatro e assim por diante). Lembre que é possível deixar uma parte das porções na geladeira e congelar a outra parte pra consumir no final da semana (ou na semana seguinte).
-Lave a panela de pressão e coloque a macaxeira descascada em pedaços pra cozinhar em bastante água salgada. Cozinha muito mais rápido na pressão: basta contar alguns minutos depois que a panela começar a chiar.
-Agora pode guardar o arroz cozido e limpar o chão da cozinha.
-A macaxeira tá cozida? Guarde junto com a água de cozimento (na hora de esquentar, esquente nessa água). Última panela a ser lavada e no final pode lavar a pia também.
-Parabéns pela vitória, guerreira! Abra uma cerveja ou prepare um chazinho e sente com as pernas pra cima.
Como organizar as refeições
Vou dar exemplos de como essas comidas podem ser combinadas e incrementadas, usando os ingredientes que você já vai ter na dispensa (por ter comprado pra fazer as receitas da lista acima), mais uns extras (batata-doce, chuchu, banana da terra, cenoura, tomate, pepino, banana, mamão, manga, goma pra tapioca ou pão, aveia em flocos, café, farinha de mandioca, macarrão, polpa de tomate e cuscuz) pra se transformar em várias refeições diferentes. Digamos que você cozinhou no domingo. Sua semana pode ser assim:
Segunda
Café da manhã: macaxeira cozida com hummus cubano e café
Almoço: feijão acebolado, arroz, salada (com alface, pepino e manga + o molho pra salada)
Jantar: sopa de jerimum
Terça
Café da manhã: macaxeira cozida com hummus cubano, mamão e café
Almoço: feijão acebolado, arroz, farofa de banana e salada (alface e tomate + molho pra salada)
Jantar: Macarrão com molho de tomate e legumes assados (misture polpa de tomate industrializada com os legumes. Acrescente pimenta preta e orégano.)
*Enquanto come, deixe umas batatas-doce cozinhando no fogo pros dias seguintes. Depois de cozidas, escorra antes de guardar na geladeira (batata-doce, diferente da macaxeira, não se guarda na água, senão ela fica aguada).
Quarta
Café da manhã: batata doce cozida, café, banana e mamão em pedaços com aveia em flocos e pasta de amendoim
Almoço: salada completa com grão de bico cozido, legumes assados, folhas, pepino e cenoura ralada (mais o molho pra salada e um pedaço de pão, se quiser)
Jantar: sopa de jerimum servida com pão
Quinta
Café da manhã: banana da terra cozida (basta colocar na água, com casca e tudo, e deixar ferver por alguns minutos, até a casca começar a rachar) ou tapioca ou pão com hummus cubano e café
Almoço: feijão acebolado, arroz, bolinho de macaxeira (basta amassar a macaxeira cozida, despejar montinhos em uma assadeira, regar com óleo e levar ao forno até dourar), salada (alface e cenoura ralada + molho pra salada) e banana (sou dessas)
Jantar: cuscuz com amassado de grão de bico e tomate
(Não sabe fazer cuscuz? Expliquei direitinho na receita de cuscuz com coco. Siga as instruções, mas use um pouco da água quente do fundo da cuscuzeira pra molhar o cuscuz, ao invés do leite de coco. Enquanto o cuscuz cozido descansa, refogue cebola, alho e tomate no óleo ou azeite, até o tomate se desfazer, junte grão de bico cozido e amasse tudo com um garfo. Tempere com sal, pimenta preta e uma erva -orégano seco ou coentro fresco- se tiver e misture com o cuscuz cozido).
ATENÇÃO! Acabou o feijão da geladeira e só tem congelado agora. Lembre de tirar uma porção do congelador à noite e deixar na geladeira, descongelando, pro almoço do dia seguinte.
Sexta
Café da manhã: o resto do cuscuz com amassado de grão de bico do jantar de ontem e café
Almoço: feijão acebolado, farofa d’água, salada (alface e manga + molho pra salada). Tem 15 minutos sobrando? Faça chuchu refogado (como esse aqui, sem o tucupi) pra incrementar o almoço e já adiantar o jantar.
Jantar: batata-doce cozida (que você cozinhou na terça – corte em rodelas grossas e frite ligeiramente, dos dois lados, em um pouco de óleo/azeite. Fica uma delícia!) e a outra parte do chuchu refogado, mais uma banana picada com pasta de amendoim pra completar.
Se você leu até aqui, obrigada pela atenção. Acho que foi o artigo mais longo que publiquei nos 12 anos de existência desse blog. Por trás dele tem longas horas de trabalho escrevendo e centenas de horas de trabalho em cozinhas profissionais, acumulando conhecimento prático, pra poder compartilhar esse tipo de informação com vocês hoje. Me alegra imenso colocar esse conhecimento à disposição de quem me acompanha aqui. Achou esse tipo de conteúdo útil? Gostaria de sugerir pautas pro blog? Os comentários são todos seus, sua opinião me interessa muito.
No último post compartilhei a receita do caldo bem verde que fiz com a couve da minha horta de quintal. Mas o que não contei foi que a batata daquele caldo também veio da horta, assim como a salada, de tomate com folhas de dente-de-leão (que cresce por todos os lados do jardim), que completou o jantar. Foi a primeira vez na minha vida que fiz uma refeição preparada inteiramente com o que eu mesma plantei. Quase inteiramente, na verdade, já que nem o alho, nem a pimenta preta, nem as azeitonas do azeite foram plantadas por mim. Autonomia alimentar total é difícil. Mas até pouco tempo atrás eu nem sequer imaginava que uma dia eu teria uma horta de quintal, muito menos que eu faria refeições compostas quase que totalmente pelo que eu mesma plantei.
Alguns anos atrás resolvi desenvolver uma prática de agradecimento (pode chamar de oração) sempre que me sento pra comer. Fui inspirada pela minha querida amiga Kiune, que mora num assentamento da reforma agrária no sul da Bahia. Eu estava passando um tempo por lá e um dia ela recebeu o prato de comida que eu tinha acabado de preparar e agradeceu a quem plantou e a quem preparou a comida, depois desejou que não faltasse comida na mesa de ninguém. Achei aquilo tão lindo e importante que resolvi adotar a prática, criando a minha própria prece. Antes da primeira garfada/colherada seguro o prato entre as mãos e digo mentalmente: “Obrigada a quem plantou, colheu e preparou essa comida. Que não falte comida na mesa de ninguém nesse mundo. E que esse alimento me dê forças pra servir a minha comunidade, lutar pelo que é justo e transformar o mundo.” Quando fiz a prece naquela noite me dei conta que pela primeira vez na vida a pessoa que plantou, colheu e preparou os alimentos no meu prato tinha sido eu mesma.
Minha ambição não é plantar absolutamente tudo que como. Como já disse, isso é bem difícil e não acho que seja algo a ser buscado. É bem mais interessante que cada pessoa na comunidade plante coisas diferentes, pra aumentar a diversidade na nossa alimentação. E pretendo continuar comendo azeite das oliveiras do sul da França ou plantadas pelo povo palestino. Mas desde que me mudei pra periferia de Paris, no final de 2019, e comecei a militar nesse território, passei a acreditar que plantar uma parte, mesmo pequena, do que comemos é essencial. Pra nossa resiliência, pra melhorar a qualidade da nossa alimentação, pra diminuir nossa dependência do dinheiro pra comer, pra participar da luta pela preservação de sementes e contra a mudança climática, pra aumentar a biodiversidade e refrescar nossos bairros e cidades. E por tantos outros motivos! Como estreitar os laços com as pessoas da nossa comunidade. Desde que começamos a plantar no quintal passamos a conversar com a vizinha e o vizinho do lado, que também plantam. Trocamos mudas, conselhos e, toda noite, enquanto aguamos nossos vegetais, trocamos dois dedos de prosa por cima da cerca de madeira que separa nossos quintais. As vizinhas são do Bangladesh e, assim como eu, plantam a comida que cresce no seu território natal pra matar a saudade de casa e se reconectar com uma parte de sua identidade através dos vegetais que cultivam.
Passei quatro meses trabalhando em uma mercearia fina no centro de Paris, em um bairro onde só mora gente que tem grana. Essa mercearia vendia também por aplicativo (Uber Eats) e entrei em choque quando descobri esse mundo. Talvez isso surpreenda vocês, mas nunca pedi comida por aplicativo e até começar a trabalhar lá, pensava que só restaurante usava esse serviço. A mercearia onde eu trabalhei vendia chocolate, queijos, salgadinhos, biscoitos, leites, sorvetes (tudo 100% vegetal)… Não tinha verduras nem frutas, só coisas industrializadas. E muita gente pedia (por aplicativo) coisas que em Paris basta descer do seu prédio e caminhar até a esquina pra encontrar. As pessoas pediam sorvetes, chocolates e biscoitos feitos com ingredientes cultivados nos quatro cantos do mundo, preparados em algum lugar longe dos nossos olhos, por pessoas que não conhecemos, embalados e entregues por outras pessoas invisíveis. A fetichização da mercadoria (e o alimento-mercadoria) no seu ponto máximo. Poucos minutos separam a vontade de comer chips de batata e o pacote que aparece como mágica na porta do apartamento daquelas pessoas, com apenas uma etapa no meio: o clique no aplicativo dentro do celular. A magia de esconder dos olhos da consumidora parisiense a exploração dos corpos racializados explorados no processo.
Não acho que só somos capazes de apreciar o que vem com dificuldade, mas como não pensar que aqueles chips de batata serão devorados em segundos, sem nem um pensamento pro mundo de pessoas e lugares envolvidos na sua produção e logo depois serão esquecidos?
As batatas que plantamos aqui, e que estavam no meu prato naquela noite, vieram da horta de uma amiga e camarada que tem um lote nos Jardins Operários a poucos minutos de caminhada da nossa casa. Minhas batatas me conectavam a ela e à luta pra salvar os Jardins, o último pedaço de terra cultivada na cidade, que alimenta a classe trabalhadora e imigrante daqui há mais de cem anos. Tinham o sabor da alegria de ter conseguido fazer nossa horta vingar. Nossa primeira horta. Comemos devagar, Anne e eu, apreciando cada colherada. De vez em quando nos olhávamos, com um sorriso gigante no rosto, e repetíamos o quanto aquilo era gostoso. Talvez nossas batatas não tivessem nada de excepcional, mas elas ficarão gravadas na minha memória e quando penso naquele jantar, ainda me alegro.
Foi uma refeição das mais simples, mas naquela noite alimentei a alma. E podem ter certeza que a refeição me encheu de forças pra mudar o mundo e seguir plantando a revolução.
Essa é uma história em duas partes que mostra como plantar uma horta, mesmo bem pequena, num cantinho do meu quintal, trouxe várias reflexões e transformações na minha vida. A primeira parte está aqui e vem acompanhada da receita de um caldo verde. A segunda aparecerá no próximo post.
Lembram dos Jardins Operários e da luta pra preservar esses lotes, cultivados há mais de 100 anos por operários e operárias da periferia de Paris, quase todas imigrantes, do combo de destruição formado pela especulação imobiliária, gentrificação e Olimpíadas de Paris de 2024? Tem até uma série que fiz junto com os camaradas do podcast Antinomia, da Biblioteca Terra Livre, narrando esse luta que ainda é um dos centros da minha militância aqui na França. Pois bem, um dos operários migrantes que teve seu lote e sua horta destruídas é português. Hugo veio pra França quando era jovem e hoje, com mais de 60 anos, segue trabalhando duro na construção civil pra sustentar a família. Ele foi o operário que mais participou da resistência e a ocupação começou no lote dele, que ele colocou à nossa disposição assim que passamos pra ação direta. Foram quatro meses de ocupação dos jardins, antes da polícia expulsar todo mundo e destruir as cabanas e nossas hortas, e me tocava ver como Hugo e Lucas, outro operário português que cultiva um lote na parte dos jardins que não estava ameaçada (tem um episódio inteiro do podcast com Lucas), faziam questão de se juntar às militantes que ocupavam o jardim no final do dia, mesmo depois de terem passado longas horas trabalhando nos canteiros de obras. Foram muitos jantares compartilhados no lote dele e esses são as melhores lembranças que guardo dos meses de ocupação.
No lote de Hugo, onde ficava o coração da ocupação, tinha muita couve. Dá pra identificar facilmente a origem das e dos operários cultivando cada pedaço de terra pelo tipo de legume plantado ali. Assim que consegue um pedacinho de terra, as imigrantes tentam trazer de volta um pouco de sua terra plantando as coisas que tinham costume de comer em casa. O pessoal da África do Norte (principalmente do Marrocos, Argélia e Tunísia) planta muita fava. As pessoas chinesas plantam bastante couve chinesa e acelga. E a turma portuguesa, como era de se esperar, planta couve. Preparei muitas refeições na ocupação com as couves de Hugo e elas alimentaram nossos corpos em resistência. Um dia ele disse que ia fazer um caldo verde pra nós, mas pra que eu e as pessoas vegetarianas/veganas da ocupação pudéssemos degustá-lo também, ele prometeu fazer sem os animais usados na receita tradicional. Ele preparou um caldeirão de caldo verde, 100% vegetal, e também alimentou muitos corpos em resistência naquele dia.
Isso tudo foi em 2021. Pula pra 2022 e pro nosso projeto de horta no quintal. Quase todas as sementes que plantamos aqui vieram dos Jardins Operários. Tanto dos lotes destruídos quanto dos lotes que ainda existem e que seguem alimentando trabalhadoras e trabalhadores imigrantes da periferia. E era muito importante que na minha horta tivesse couve, pois é um dos meus vegetais preferidos. As sementes vieram das couves de Hugo, do lote que já não existe mais. Foi o primeiro vegetal que ficou pronto pra ser colhido na nossa horta, que também tem tomates, batatas, ervilhas, favas, beterraba, jerimum… Mas as couves foram as primeiras a nos alimentar e seguem nos nutrindo há dois meses. Duas ou três vezes por semana colho um punhado de folhas e como maravilhada com a generosidade dessa planta.
Uns dias atrás Hugo passou aqui por casa, junto com Lucas. Nossa descarga está com um problema de vazamento e pedimos ajuda pra ele, que em pouco tempo estava aqui pra ver qual era o problema. Nossa amizade hoje vai além do jardim e é a segunda vez que ele vem na nossa casa consertar algo que não conseguimos resolver sozinhas, pois exige conhecimento específico. Ele nunca cobra a ajuda e quando a gente insiste ele diz: “Compre uma garrafa de vinho pra mim e tá ótimo!”.
Alguns dias depois do episódio da descarga (ainda estou devendo o vinho a Hugo!) eu estava sentada no chão da sala com Anne, olhando pra couve na nossa horta e pensando em como eu ia prepará-la pro almoço. Naquele momento me dei conta de algo. Boa parte da minha militância antiespecista consiste em chamar a atenção das pessoas no Brasil sobre a que ponto nossa alimentação foi colonizada e convidá-las a resistir através da valorização da nossa cultura alimentar. Muito se fala da importância de descolonizar a mente, mas isso não vai acontecer enquanto não tivermos descolonizado o estômago. Mas acontece que a couve que eu estava admirando na minha horta, um vegetal tão associado à culinária portuguesa, logo, do colonizador, tinha adquirido outro significado pra mim no contexto atual onde me encontro. Ela tinha chegado até a mim através de um português que não representa mais o colonizador. Aqui, na periferia de Paris, somos, ele e eu, imigrantes. E trabalhadores pobres sobrevivendo em empregos que francês não quer fazer. E tanto ele quanto eu buscamos, no plantio da horta, nas couves, uma maneira de sentir um pouco da nossa casa mais perto. A couve é o elo que nos une aos nossos territórios respectivos, embora eles estejam em continentes diferentes. E diante da couve, da tentativa de reencontrar um pouco de nós nessa terra estrangeira hostil, onde não somos tratados como o povo local, nos tornamos iguais. Não colonizada e colonizador, mas duas existências que se encontram na solidariedade forte que se cria entre pessoas marginalizadas. Procurando o sabor de casa, o sabor do pertencimento, num prato de couve.
Caldo bem verde
Sim, é a versão vegetal da famosa receita portuguesa. Sobre quantidades: adapte pro seu gosto. Eu uso mais couve do que batata e por isso chamo o meu caldo verde de “bem verde”. Você pode fazer o contrário ou usar metade-metade. Capricho no alho, porque é o que vai perfumar o caldo e sou generosa com a pimenta e o limão.
Couve
Batata
Alho
Azeite
Sal e pimenta preta
Limão (opcional)
Descasque (ou não) as batatas e corte em pedaços grandes. Retire os talos das folhas de couve, pique os talos bem miúdo. Coloque as folhas empilhadas, enrole tudo bem apertado, formando um grande charuto, e corte o mais fino possível (uma faca grande e bem afiada é essencial). Pique ou amasse o alho.
Aqueça um pouco de azeite numa panela adaptada à quantidade de caldo que você estiver fazendo. Doure o alho e os talos da couve por alguns segundos. Junte as batatas e cubra tudo com água suficiente pra cozinhar as batatas com bastante sobra, afinal isso é um caldo, mas não exagere (sempre é possível acrescentar mais água depois). Salgue, cubra a panela e deixe cozinhar em fogo alto até as batatas começarem a se desfazer. Nesse momento junte a couve, baixe o fogo e deixe cozinhar mais alguns minutos (a couve cozinha rápido, principalmente se tiver sido cortada bem fina). Se tiver pouca água nesse ponto, junte mais um pouco, mas eu confesso que gosto do meu caldo com pouco líquido.
Quando a couve tiver murchado e a cor estiver mais escura, tá pronto. Tempere com bastante pimenta preta (melhor se for moída na hora), prove e corrija o sal. Use as costas de uma colher pra amassar grosseiramente as batatas. O objetivo não é fazer um purê, apenas engrossar um pouco o caldo. Esprema um pouco de limão por cima e sirva regado com azeite (seja generosa).
Escutei inúmeras vezes, geralmente da boca de chefs-celebridades, que a melhor maneira de cozinhar, ou “a maneira certa de cozinhar”, seria escolher os melhores ingredientes possíveis, ultra frescos, orgânicos, de estação, cultivados ali pertinho e transformá-los o mínimo possível. O papel do ou da cozinheira seria “respeitar a integridade dos ingredientes”, submetendo-os a um pouco de calor (grelhar rapidinho), juntando o mínimo de temperos e servindo imediatamente.
Não sou a única cozinheira a ter uma visão totalmente diferente da coisa. Sim, se você tiver um tomate ultra maduro e fresquinho, é uma delícia degustá-lo sem muita firula, só com sal e azeite, por exemplo. Mas declarar que isso é a “melhor maneira de cozinhar” é puro esnobismo culinário. Por isso mesmo não me surpreende que o pessoal que compra os livros de receitas desses chefs (sim, geralmente homens) e segue essas instruções seja a mesma turma que tem dinheiro e cozinha como hobbie. Isso cria uma demarcação nítida entre a maneira que a elite cozinha (por prazer, de maneira esporádica) da maniera como pessoas empobrecidas cozinham (por necessidade, diariamente). A culinária popular foi construída em cima dos esforços em transformar ingredientes que não eram os mais nobres nem os mais frescos em algo saboroso e nutritivo. É assim que a maior parte do mundo sempre cozinhou, pois quem não tem dinheiro nem acesso aos “melhores ingredientes” tem que se virar com os ingredientes de segunda ou terceira categoria e fazer o possível pra transformá-los em comida pra toda a família.
Eu tenho um amor imenso por esse tipo de culinária, a culinária popular e muitas das minhas receitas preferidas vieram diretamente dessa tradição. Pra mim a medida do talento de uma boa cozinheira é justamente essa: conseguir fazer um prato saboroso e nutritivo com poucos recursos e ingredientes que já não estão tão bons. E a receita de hoje é uma perfeita ilustração disso.
Anne passou a pegar as folhas (de diferentes tipos de alface) que são descartadas numa loja de orgânicos aqui perto e na feira do bairro. A gente usar pra cobrir a horta, assim as lesmas tem comida em abundância e não comem os vegetais que plantamos ali. Aprendemos com a amiga que nos ensinou a fazer horta. E quase sempre encontramos alguns vegetais misturados com as folhas de alface que salvamos do lixo da feira, que também foram descartados por não estarem mais no nível de qualidade necessário pra serem vendidos. Eu corto as partes machucadas, retiro a casca, se ela estiver muito marrom e eles viram uma refeição extra na semana. Nosso orçamento está bem apertado e um prato de comida a mais é sempre bem-vindo.
Pra melhorar o sabor do prato e aumentar o valor nutricional, juntei pasta de amendoim (barata, nutritiva e cheia de proteína) e um pouco de leite de coco (industrializado, porque estou na França). Essa é a base do molho desse ensopado senegalês e a mistura de amendoim com tomate é bem popular na culinária do Oeste da África. Completei com umas folhas de couve da horta e as últimas folhinhas e flores do coentro que tentei plantar, mas não vingou.
Se você nunca usou pasta de amendoim em pratos salgados e achou a mistura meio duvidosa, peço que prove primeiro antes de formar sua opinião. É escandalosamente gostoso e uma maneira simples e acessível de acrescentar uma dose extra de proteína a qualquer mistura de legumes. Numa conjuntura de fome e carestia, esse tipo de conhecimento pode fazer muita diferença.
Legumes da xepa com amendoim e coco
Qualquer combinação de legume dá certo. Os ingredientes do molho (pasta de amendoim + tomate + leite de coco) são importantes pra dar sabor, mas os dois essenciais são o amendoim e o tomate. Então dá pra fazer sem leite de coco, embora fique mais gostoso com ele. Nesse caso substituia o leite de coco água.
Opcional: pitadas de cúrcuma, cominho e pimenta calabresa
Coentro
Limão
Refogue o alho picado em um pouco de óleo. Junte os legumes (aqui usei um talo de brócolis, cenouras, abobrinhas, repolho e cebola, mais folhas de couve da horta), tempere com sal e refogue mais uns minutos. Junte os temperos, se estiver usando e os tomates. Deixe cozinhar em fogo baixo, coberto, até tudo ficar bem macio e os tomates se desintegrarem. Junte um bocadinho de água, se necessário.
Acrescente uma colherada generosa de pasta de amendoim (ou várias, dependendo da quantidade de legumes) e cubra tudo com leite de coco fresco (ou industrializado, mas nesse caso use metade leite de coco e metade água). Se não tiver leite de coco, junte água suficiente pra que a pasta de amendoim se transforme em um caldo encorpado. Deixe ferver, prove e corrija o sal. Desligue e junte o coentro e um pouco de suco de limão. Sirva com arroz, cuscuz ou pão.
Agora que já posso contar as semanas que faltam pra terminar o trabalho na mercearia nos dedos de uma mão, sinto que posso começar a falar sobre essa experiência aqui.
No início de abril iniciei um contrato de quatro meses como vendedora em uma mercearia fina e totalmente vegetal. Eu já era cliente ali há anos e sempre simpatizei com a dona da mercearia. Então quando minha situação financeira chegou num ponto crítico e eu comecei a procurar bicos pra complementar a renda (desde que criei a campanha de financiamento no Apoia-se, em 2020, essa tem sido a minha única fonte de renda), o anúncio dessa mercearia vegetal procurando vendedora me pareceu exatamente o que eu precisava no momento. Ter um salário fixo, mesmo por um período de apenas quatro meses, está me ajudando a desafogar um pouco e ter tranquilidade financeira, embora passageira. Mas, e isso não vai surpreender a galera que bate ponto todos os dias, isso vem com muitos custos.
Apesar da carga de trabalho semanal na França ser de 35 horas, trabalho onze horas por dia, com uma pausa de uma hora no meio (aceito todas as horas extras, porque preciso do dinheiro). Gasto quase duas horas diárias com deslocamento. Trabalho nos fins de semana. Nos meus dias de folga estou tão cansada que mal consigo recuperar a força que me foi sugada durante a semana e não consigo fazer mais nada. Parei de participar das atividades do meu coletivo e os posts semanais aqui viraram quinzenais. Fora que a vida pessoal foi freada bruscamente. Ver as amigas, dar apoio às pessoas na minha comunidade e até ligar pra minha família ficou muito mais difícil, pois minha energia, mesmo nos dias em que não trabalho, parece que não consegue se restaurar. Agora as coisas mais simples, como responder o áudio que a amiga enviou há duas semanas, muitas vezes representam algo que vai além das minhas forças.
Tenho muito o que contar sobre as descobertas que fiz trabalhando na mercearia. O que pude observar do “mercado vegano” e das pessoas veganas em Paris, mas, principalmente, sobre as condições de trabalho e exploração da mão de obra imigrante aqui na Europa (Uber Eats, tô olhando pra você!). Pra minha grande surpresa, esse trabalho se tornou uma pesquisa de campo. Quem diria que fazer um bico de vendedora, impulsionada pela insegurança financeira na qual me encontro, forneceria material que daria pra se transformar em uma tese em sociologia e outra em psicologia!
Também ganhei novos amigos refugiados (os entregadores de aplicativos) e novas redes de solidariedade estão se tecendo entre nós, mas isso tudo fica pra outro dia. Só quando terminar meu contrato e eu tiver descansado por algumas semanas conseguirei voltar aqui e escrever sobre isso.
Como eu disse, não estou me referindo a nada que saia do ordinário, infelizmente. Quem trabalha longas horas, fazendo um trabalho físico e pega transporte público todos os dias conhece muito bem essa toada. A toada da trabalhadora explorada e esgotada.
Mas talvez você, me lendo agora, não tenha vivido experiências de trabalho similares. Talvez você nem faça parte da classe trabalhadora. Então deixa eu abrir uma pequena janela no meu cotidiano pra te dar uma ideia do que estou falando. Vou contar como foi o meu último dia trabalhado, que embora tenha sido particularmente difícil, não foi muito diferente de todos os outros.
O último dia da minha semana de trabalho (que inclui o fim de semana) é sempre o mais difícil porque traz acumulado o cansaço dos dias anteriores. Nesse ponto eu já levanto da cama cansada e me dou conta que as oito horas de sono já não são suficiente pra descansar o corpo: a sola dos pés doem quando eles encontram o chão do quarto.
Todo dia eu faço tudo sempre igual, como canta Chico Buarque. Levanto, tomo banho, faço o café, como e caminho até o metrô. A repetição às vezes me desorienta e parece que estou num daqueles filmes em que a pessoa vive sempre o mesmo dia, presa num looping temporal.
Felizmente não teve muitas entregas de mercadoria naquele dia. Na véspera tínhamos recebido oito entregas grandes e passei horas e horas carregando caixas. Passo boa parte do dia levantando peso, desembalando e embalando coisas, subindo e descendo escada (o depósito fica no subsolo, sem elevador de carga), colocando mercadorias nas prateleiras… Só sento quando vou ao banheiro ou quando paro pra comer. A mercearia também vende por aplicativo (Uber Eats), então muita gente que antes se deslocava pra fazer suas compras, agora pede pelo aplicativo. Isso aumentou muito o nosso trabalho de vendedora, pois além de cuidar das clientes que estão presentes na loja, também temos que preparar as comandas das clientes que pedem pelo aplicativo, correndo contra o tempo quando a loja está cheia e muitas comandas chegam de uma vez (temos apenas 20 minutos pra preparar uma comanda). Hoje uma parte considerável das nossas vendas se faz via Uber Eats e é por isso que acabei me aproximando dos entregadores (todos refugiados).
Depois de 10 horas em pé, de muito sobe e desce de escada, várias comandas preparadas e algumas interações delicadas com clientes obtusas (felizmente nesse dia não tive que lidar com comportamentos sexistas de clientes homens), fui pegar o metrô de volta pra casa, feliz por estar, enfim, de folga. Mas a alegria da trabalhadora não vem assim tão facilmente.
Preciso pegar dois metrôs pra chegar em casa, com uma baldeação em uma estação bem grande, e a linha que chega até a minha periferia é (surpresa!) uma das piores da grande Paris. Os trens são tão velhos e barulhentos que já desisti de escutar podcasts ou música no caminho do trabalho, pois ou coloco o volume dos fones no máximo e corro o risco de estourar os tímpanos ou não consigo escutar nadinha. Tem sempre problemas técnicos que fazem com que eles atrasem ou parem entre duas estações. Acho uma graça quando o condutor do metrô anuncia no alto falante: “Senhoras e senhores, ocorreu um problema técnico e o trem vai estacionar alguns minutos. Peço que esperem”, como se a gente tivesse a possibilidade de abrir a porta do metrô, entranhado nos subsolos da malha metroviária, e continuar a viagem andando! Algumas linhas de metrô em Paris tem ar-condicionado, mas claro que a minha linha não tem. E, pra completar, é uma linha que está sempre, sempre lotada, pois transporta a galera migrante periférica que trabalha em Paris (presente!). E é muita gente.
Na hora de fazer a baldeação percebi que a plataforma estava ainda mais cheia do que o de costume e que o próximo trem estava atrasado. Falta de sorte minha, passei a ter dores de cabeças agudas há alguns dias e a mistura de cansaço e fome fizeram com que a minha cabeça, que estava doendo num nível suportável até então, passasse a latejar. Mas eu teria que coloca-la, latejando ou não, dentro do próximo metrô. Não sei como consegui entrar no vagão, mas juro que nunca peguei um transporte tão cheio. E parece que mesmo depois que o negócio lota total, mais gente ainda consegue se enfiar dentro. Transporte público ri na cara da lei da física que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço.
Então imagina aí. Lá estava eu, exausta da longa semana de trabalho, no final de mais um dia de batente, em pé durante todo o trajeto de volta pra casa, tão apertada que você pensa “se eu respirar fundo, eu arroto!” e que torna risível o instinto de se segurar nas barras de ferro (como vai cair se não tem espaço no chão, minha filha?) quando… uma briga entre dois homens explode do meu lado. Você não sabe quem começou, mas uma coisa é certa: vai sobrar porrada pro seu lado porque não dá pra fugir. Gritaria, empurra-empurra, Jesus-Maria-José! vou-voltar-pra-casa-com-um-olho-roxo-era-só-o-que-me-faltava! Até que um jovem bota moral nos cabras que estavam brigado (por espaço, obviamente!) e a nossa parte do vagão dá um suspiro de alívio. Tá todo mundo bem? Tá todo mundo bem. Obrigada, jovem que botou moral. Mas não é que menos de trinta segundos depois outra briga explode, na outra ponta do vagão?
Nesse ponto minha dor de cabeça tinha piorado muito, a fome roncava alto e me deu vontade de chorar porque parecia que eu não ia chegar nunca mais em casa. Mas nada que não pudesse ficar pior. Pane de eletricidade no metrô, circulação interrompida por alguns minutos, calor dos infernos (mas não baixa a máscara que a Covid tá voltando com tudo!) e, sendo a trabalhadora uma mulher, você achava que ela ia conseguir chegar em casa sem ser vítima ou presenciar uma situação de violência sexista? Quem achou que sim, é homem.
Apesar do vagão estar menos lotado, pois já estávamos chegando no final da linha, um homem começou a invadir o espaço da mulher do meu lado, jogando o seu corpo sobre o dela. Ela reage e pede pra ele se afastar, diz que agora tem espaço ao redor dele, o vagão inteiro finge não ouvir, o homem se recusa a sair de cima da mulher, eu vou pro lado da mulher e tento protege-la, outro homem se aproxima… pra defender o cara assediando ela! Não satisfeito ele começa a insultar a mulher que estava sofrendo a agressão (minha nossa senhora do perpétuo socorro, tira nós desse vagão!). Finalmente chegamos no terminal, o trem ainda cheio, e eu acompanhei a moça até a saída pra garantir que ela estava bem.
Fiz os 10 minutos de caminhada que separam o terminal do metrô da minha casa quase me arrastando e cheguei em casa “só o durex”, como dizia um colega gaúcho. Fisicamente exausta, emocionalmente chacoalhada, faminta e com a cabeça a ponto de explodir. Mas foi só um dia comum na vida da trabalhadora mulher, migrante e que mora na periferia.
Outro dia eu encontrei esse texto, que escrevi há uns dois anos pra postar no meu perfil no Instagram, hoje defunto. Está mais atual do que nunca e veja que eu estava tentando fazer a minha raiva caber nos poucos caracteres permitidos nas legendas do Instagram…
Nosso sistema político e econômico é estruturalmente injusto: ele foi criado pra ser assim. Não é um erro de cálculo que pode ser consertado com uma versão “consciente” ou “verde”. Exploração (humana, não-humana e da terra) está no DNA do capitalismo. Desigualdade social é a condição pra que ele exista, beneficiando o 1% enquanto os outros 99% são esmagados. Na sua lógica irracional de expansão infinita e lucro acima de tudo/todos o capitalismo destrói as condições pra que a vida, como conhecemos hoje, continue existindo. Sair do capitalismo é uma questão de sobrevivência.
Diante dessa urgência sentir raiva é uma reação natural. Desconfio de quem demoniza a raiva e prega o “vamos amar a todos em qualquer circunstância / você é a única responsável pelo que sente, então escolha sentimentos bons”. Esse discurso serve dois propósitos. 1- Controlar a narrativa e taxar de radical, enraivado e irracional quem milita por uma mudança sistêmica e não se contenta com migalhas na forma de reformas superficiais. Só eles, que fecham com o capital e vendem seus princípios, tem uma postura “sensata”. Nós somos, na melhor das hipóteses, ingênuas, na pior, impedimos o suposto avanço que eles estão negociando por nós. 2- Suprimir nossa revolta e nos manter dóceis e obedientes, sendo exploradas e massacradas enquanto internamente cultivamos o amor e a compaixão pelos nossos opressores. Assim o sistema injusto se mantém protegido.
Só quem se beneficia da desigualdade social não tem motivos pra estar com raiva. Não, eu não mando coraçãozinho pra quem explora trabalhadores até que eles caiam de exaustão, enquanto sua fortuna se multiplica. Não faço parceria com quem abre fogo contra camponeses e grila território indígena pra expandir seu latifúndio. Não dialogo com quem mata milhões de animais por ano. Pra essas pessoas só tenho um recado: estamos em guerra.
E a minha raiva não vem de uma suposta falta de evolução espiritual ou de estratégia. Ela vem do amor. Amor pelo povo, tão sofrido. Pelos animais, assassinados aos bilhões todo ano. Amor pela natureza, que grita socorro. Amor pela justiça.
Com amor, revolta e ira, sigo na luta.
(Tradução pro cartaz na foto acima: “Fichado, com raiva, sem grana, mas fascista, não! Estamos aqui.” Veja que em francês essas palavras são bem próximas.)
Eu acredito que as pessoas cozinham errado com casca de banana. Sabe esse negócio de usar casca de banana na culinária (“carne de casca de banana”, como algumas pessoas falam)? A ideia de reduzir o desperdício é ótima. A vontade de expandir a categoria de “carnes vegetais” também. Pra quem ainda tem apego pela ideia de “mistura”, parece ser uma opção extremamente acessível, afinal se trata de transformar algo que iria pro lixo em prato principal. Mas é exatamente aqui que a coisa desanda, na minha opinião.
Sou a favor de usar todas as partes comestíveis dos vegetais. Mas quando essas partes comestíveis não são muito apetitosas, como é o caso da casca da banana, devemos colocar isso em prática de maneira inteligente. A lição aqui é algo que vi minha mãe fazer durante toda a minha infância: usar um ingrediente barato pra aumentar o volume do prato. O erro, ao meu ver, é achar que “carne de casca de banana” pode ser o ingrediente principal, ou que pode ser usada sozinha como recheios. Seria incrível se a casca da banana fosse, além de barata (na verdade, gratuita, já que ela acabaria no lixo), deliciosa. Mas sejamos honestas aqui: ela não é e vai precisar da ajuda de vários outros ingredientes pra se tornar interessante.
Estamos atravessando tempos difíceis e a fome está batendo na porte de milhões de pessoas no Brasil. Saber usar a totalidade dos vegetais, da casca à semente, é uma competência que precisa ser adquirida. E isso significa aprender que em muitos casos as partes que costumam ser descartadas dos vegetais são tão deliciosas, ou mais, do que a parte que costumamos comer (o talo do brócolis, as folhas da couve-flor…), e que podem inclusive ser consumidas sozinhas e apreciadas pelo seu sabor. Enquanto que em outros casos devemos aceitar que a maior contribuição da parte que seria descartada será a de “aumentar o pouco” (casca de banana, presente!).
Tudo isso pra dizer que na última vez que estive em Natal fiz uma macarronada que tinha casca de banana como um dos ingredientes e ficou supimpa. “A casca de banana deixou a receita supimpa?”, a pessoa que ainda acredita no potencial gustativo da casca de banana pergunta. Não e afirmo, sem medo de fazer inimizades no campo das empolgadas da “carne de casca”, que a receita teria ficado igualmente supimpa sem ela. A contribuição dela foi, como expliquei acima, aumentar o pouco. No caso, o pouco era a berinjela.
Comecei falando de receitas pra enfrentar tempos de carestia e sei que alguns olhos vão revirar ao ver que tem castanha na receita, um ingrediente caro. Berinjela também não é o legume mais acessível em todos os lugares do Brasil. Sem falar que visto o preço do gás, usar o forno se tornou algo impensável pra muita gente no momento. Mas se você não puder fazer esse prato do jeitinho que eu explico aqui, espero que pelo menos a receita te ensine a preparar casca de banana e sirva de inspiração pra futuras comidas que sairão do sua cozinha.
Macarronada com berinjela e casca de banana
Essa é mais uma daquelas receitas sem medidas, porque cozinha de panela e do dia-a-dia não precisa de medidas exatas pra dar certo. Use seu paladar, e o que estiver disponível, como guia que não tem erro. Pode usar casca de banana madura ou verde, caso você tenha cozinhado banana verde pra fazer biomassa, por exemplo.
Casca de banana (qualquer banana – usei casca de banana da terra que eu tinha cozinhado pro café da manhã), picada miúdo
Cubra as castanhas de caju com água quente e deixe descansando enquanto prepara a receita.
Em uma panela pequena, despeje óleo (ou azeite) suficiente pra cobrir o fundo e frite a casca até ficar marrom-dourado. Tempere com bastante molho de soja e páprica defumada, se tiver, e reserve.
Em outra panela, maior, refogue a cebola em um pouco de óleo. Junte o alho e a berinjela, tempere com sal, refogue mais alguns segundos, baixe o fogo e deixe cozinhar, coberto, até a berinjela ficar macia. Não precisa acrescentar água, basta manter o fogo baixo, a panela coberta e mexer com uma colher de pau de vez em quando. Junte o tomate picado em quantidade (aproximadamente quatro vezes o volume da berinjela), junte mais um pouco de sal e deixe cozinhar, sempre coberto, até o tomate se desintegrar e se tornar um molho espesso. Junte a casca da banana frita, a pimenta preta e o orégano, prove e corrija o sal, se necessário. Capriche no tempero e deixe os sabores bem intensos, pois ainda vamos acrescentar creme de castanha e macarrão aqui.
Ferva uma quantidade grande de água salgada pra cozinhar o macarrão e enquanto espera ela ferver, finalize o molho.
Bata as castanhas (que ficaram descansando na água fervente) no liquidificador com água suficiente (a mesma) pra formar um creme ralo. Comece com pouca água e vá acrescentando mais até atingir a consistência de um leite espesso. Esse creme de castanha engrossa no calor, então não se preocupe se parecer ralo demais agora. Despeje o creme de castanha no molho de tomate-berinjela-casca de banana, misture bem e corrija o sal (vai precisar de mais depois de acrescentar as castanhas). A proporção de creme de castanha pra molho de tomate fica por sua conta, mas eu diria que o creme deve representar mais ou menos um terço do volume total.
Cozinhe o macarrão, mas escorra antes de ficar completamente cozido (80%, eu diria), já que ele ainda vai pro forno e vai continuar o cozimento lá. Misture o macarrão com o molho, coloque numa forma e leve ao forno quente pra terminar de cozinhar e gratinar um pouco (coloque no modo “grill”, se seu forno tiver essa opção).
Retire do forno e deixe descansar alguns minutos antes de servir.
A minha linguagem do amor primária é “palavras de afirmação” (eu convido todo mundo na minha vida a fazer o teste e te incentivo a fazê-lo também). Mas a segunda é “atos de serviço” e é aqui que entra a minha maneira preferida de mostrar amor por alguém: cozinhando. Eu cozinho quando quero levar reconforto pra alguém sofrendo de males do corpo ou da alma, pra aliviar a dor de um pé na bunda, pra alegrar alguém no final de um dia longo e exaustivo, pra conquistar o coração da mulher que decidiu habitar os meus pensamentos… E ontem passei a tarde cozinhando pra uma camarada de coletivo que torceu o tornozelo e está acamada há dias.
Quando a busca por pertencimento passa por ervas selvagens ou a história de refugiadas palestinas conectando-se às suas terras ancestrais por meio de um xícara de chá de ervas.
Para refugiados e refugiadas palestinas, o chá de ervas representa mais, muito mais, do que uma mistura de plantas e água quente. Elas bebem o “Balad”, a terra ancestral da qual foram expulsas. Elas bebem as lembranças da infância, as canções e as histórias das gerações que vieram antes delas. Elas bebem as colinas e vales proibidos que aparecem nos olhos úmidos de suas avós. E no caso de Sidra* e sua família, também bebem o suor, a ansiedade e o sorriso cauteloso de um camponês que atravessa muros, fronteiras e o poder colonial que entrincheira o povo palestino para trazer-lhes um pedaço daquela terra proibida, presente em um punhado de ervas.
É domingo e eu não vou tomar muito o tempo de vocês.
Sabe meu grãomelete fermentado? Quando estou no Brasil e quero variar os prazeres, ou comer algo diferente no lanche, mas que seja prático e rápido, misturo um pouco de fubá na massa já fermentada, deixo hidratando um momento (ou, melhor ainda, de um dia pro outro) e faço panquecas de milho e grão de bico. Dá pra comer pura, acompanhada de um recheio salgado ou doce, e é uma delícia.
Se vocé não sabe o que é grãomelete, é como chamo o “omelete” feito com farinha de grão de bico e água. As instruções de como fazer essa receita coringa da culinária vegetal, e do por que e como fermentar seu grãomelete, estão nesse post.
Ontem foi o aniversário de 74 anos da Nakba (“catástrofe” em Árabe), a triste data que lembra o momento em que 2/3 da população palestina foi expulsa de suas terras e se tornou refugiada. Quando a maior parte da Palestina histórica foi ocupada e colonizada. Mas eu não queria falar sobre isso hoje. Gostaria de trazer um post dos arquivos Papacapim que é muito pessoal e fala sobre Jerusalém, a minha cidade preferida no mundo. A que me fez me apaixonar pela Palestina, sua comida, seu povo e sua cultura. O lugar onde, quando meus pés tocam a terra, minhas narinas sentem o cheiro do pão com gergelim assado dentro dos muros da cidade antiga, e meus olhos encontram as pedras douradas das construções históricas, meu coração se sente em casa.