Estou escrevendo essas linhas diretamente de Rio Branco, no Acre. Cheguei ontem à noite e essa é a primeira etapa de uma longa viagem que vai durar 50 dias e nos levar, Anne e eu, do Acre ao Rio Grande do Norte, passando pelo Amazonas, Pará e Maranhão. Contarei mais sobre esse projeto no final da jornada, mas antes de começar esse trabalho apareci aqui pra compartilhar alguns escritos recentes que nós, da União Vegana de Ativismo (UVA) escrevemos. O incômodo que pessoas antiespecistas sentiram nos últimos meses é gigante. Enquanto os movimentos sociais e pessoal de esquerda, num sentido mais abrangente, não para de repetir – com razão- que o agro é fogo, praticamente ninguém (além da galera vegana) fala sobre a relação entre o consumo de animais e os incêndios que estão destruindo com nossos biomas. Por isso levantamos essas questões sempre que pudemos, porque nossa consciência política e ambiental não deveria parar de funcionar quando sentamos pra comer.
Vou reproduzir os textos aqui, mas vai ter o link pro lugar onde foi publicado originalmente no final de cada um.
O agro é fogo – e já não tem mais como esconder isso. As queimadas são intencionais, e a pecuária é a principal responsável pelos incêndios florestais, de maneira direta e indireta.
A questão agora é: Como apagar o incêndio?
Comece apagando o churrasco!
Sabemos que 97% do desmatamento nos últimos 5 anos, no Brasil, foi causado pela agropecuária. Sabemos que a maior utilização da terra no país é PASTO – já temos o equivalente ao estado do Amazonas em pasto! O Brasil se tornou o maior produtor de carne bovina no mundo e o número de vacas já ultrapassou o número de humanos. E quem come tanta carne?
75% da carne bovina produzida no Brasil em 2021 foi consumida no nosso prato (ABIEC). O consumo de carne de vaca no país, em 2023, foi de 39kg/pessoa, enquanto o consumo de carne de frango foi de 46 kg/pessoa. Lembrando que a soja é a principal proteína nas rações das aves. Em termos de desastre ambiental e social, comer carne de vaca ou de frango é mais do mesmo.
Citando Luiz Marques, autor do livro O decênio decisivo:
“Somos os principais responsáveis pela destruição do patrimônio natural, do clima e da biodiversidade de nosso país. Podemos manter a floresta e tudo o que ela proporciona ou podemos manter a dieta carnívora. Mas não podemos manter os dois. É simples assim.” (post original no perfil da UVA)
Estamos presenciando agora uma enxurrada de manchetes como “O Agro é fogo” ou “O Agro é destruição”. A maioria dessas notícias não personaliza a discussão, tratando o agronegócio como uma entidade sem rosto, algo que todos reconhecem, mas poucos compreendem a fundo. Por esse motivo, achamos importante trazer algumas informações sobre o assunto.
Ao falar de agronegócio, é essencial “dar nome aos bois”. Para discutir o agro, precisamos falar sobre a agropecuária. Neste momento, enquanto você é sufocado pela fumaça das queimadas, não dá para ignorar as mazelas de um sistema agrícola predatório, que transforma a criação em larga escala de animais no bife que chega ao prato. Não há como combater o agronegócio sem refletir, com urgência, as bases de um sistema alimentar falido, tanto no Brasil quanto globalmente.
Sabemos que 97% do desmatamento nos últimos 5 anos, no Brasil, foi causado pela agropecuária. Sabemos que a maior utilização da terra no país é PASTO – já temos o equivalente ao estado do Amazonas em pasto! O Brasil se tornou o maior produtor de carne bovina no mundo e o número de vacas já ultrapassou o número de humanos. A monocultura da soja que devasta nosso cerrado e outras regiões do país, é quase em sua totalidade utilizado para consumo de animais que serão mortos e não para consumo direto das pessoas.
Diante dessa realidade, não podemos deixar de considerar que “ quando a carne é a protagonista do prato, o agro é o protagonista do campo”. Mas quando a alimentação tem como protagonistas vegetais frescos, a agricultura familiar é colocada no centro. Alimentação vegetal é resistência contra um sistema que causa fome, miséria, concentração fundiária, genocídio indígena e ameaça a saúde do planeta.
Você pode não se importar com as relações de opressão dos animais humanos para com os animais não humanos, mas se você tem preocupações ambientais e preza pelo senso de comunidade, pode enxergar uma realidade bem indigesta pela frente: é insustentável consumir animais nessa quantidade atual. Não estamos trazendo uma imposição ou obrigação em ser vegana, mas pense em considerar o veganismo como um ato político de transformação social, como um movimento social de lutas anti-opressão, que pode também contribuir para uma sociedade sustentável.
Citando Luiz Marques, autor do livro O decênio decisivo:
“Somos os principais responsáveis pela destruição do patrimônio natural, do clima e da biodiversidade de nosso país. Podemos manter a floresta e tudo o que ela proporciona ou podemos manter a dieta carnívora. Mas não podemos manter os dois. É simples assim.”
Quem come como o colonizador, pensa como o colonizador?
Perdi a conta de quantas vezes contei essa história. Foi há muitos anos e eu estava visitando minha família, no Sertão do Rio Grande do Norte. Era a primeira vez que eu ia lá depois de ter me tornado vegana. A tia que me hospedou estava preocupada, repetindo que agora não sabia mais o que fazer pra eu comer. “Tia, a senhora não precisa se aperrear, não. Eu como tapioca, cuscuz, inhame, feijão, arroz, farinha, batata doce, macaxeira, todas as verduras e frutas. Tudo que eu sempre comi com a senhora, só que sem carne nem queijo” – respondi.
Quando ela me chamou pra comer, encontrei uma mesa farta. Tinha feijão verde, de uma roça ali pertinho, arroz, batata doce, macaxeira, verduras cozidas e salada crua. Enchi o prato e antes de sentar pra comer, minha tia se aproximou, olhou aquele monte de comida colorida na minha mão, suspirou e disse: “Minha fia não achou nada pra comer, não foi?”
Aquela observação me deixou chocada. Onde eu via fartura, minha tia via vazio.
Repare que ela estava segurando um prato quase idêntico ao meu, com uma única diferença: no dela tinha um pedaço de frango. Um frango que ela tinha comprado congelado, no supermercado mais próximo. Aos olhos da minha tia, aquilo, sim, era comida.
Essa história é uma perfeita ilustração de como valorizamos muito mais carne (seja ela de vaca, galinha ou qualquer outro animal) do que vegetais. O conceito de “fartura” está, quase sempre, associado a uma mesa, ou geladeira, cheia de carnes e laticínios. Mas qual o impacto dessa crença na sociedade e nas nossas vidas?
Vamos começar fazendo algumas perguntas simples sobre a origem da comida que comemos. Quem produz a quase totalidade da carne no país? Resposta: o agro, seja diretamente, através da pecuária, seja indiretamente, através da soja e do milho que são transformados em ração pros animais de abate. Agora vamos aprofundar um pouco mais a nossa pesquisa.
Quem trouxe as vacas, galinhas, ovelhas, cabras e porcos pra esse território conhecido como Brasil? Pouca gente reflete sobre isso, mas esses animais não são nativos: eles foram trazidos pra cá pelos invasores europeus. Por um lado, porque era a comida que os colonizadores tinham costume de comer e, por outro lado, pra servir de ferramenta de expansão territorial. Foi “passando a boiada” que as terras foram, e ainda são, colonizadas, até que nos tornamos o segundo maior produtor de carne de gado e de frango do mundo! E se engana quem acha que a maior parte da carne e frango produzidos no Brasil é exportada. De acordo com a ABIEC, atualmente 75% da carne de gado produzida no Brasil é consumida dentro do país e quase 70% do frango brasileiro vai parar no nosso prato. A carne desses animais, que não fazia parte da dieta dos povos originários antes da invasão, ocupa hoje um espaço central no nosso prato: enquanto o consumo anual de carne, frango, porco e cabra é de quase 100kg por pessoa, comemos menos de 50kg de verduras por pessoa, anualmente (FAO).
O que eu vou dizer agora provavelmente vai gerar antipatia pro meu lado, mas aceito correr esse risco. Quando a gente escolhe comer como o colonizador, a gente acaba apoiando o projeto de colonização, que na sua encarnação mais recente atende pelo nome de agronegócio. Valorizar carne e frango acima de qualquer outro alimento reforça o poder do agro. É por isso que uma das palavras de ordem da UVA (União Vegana de Ativismo) é: “Quando a carne é a protagonista no prato, o agro é protagonista no campo.”
Na outra ponta dessa mesa está a agricultura familiar, responsável por dois terços da produção de frutas, verduras e legumes no país. Acho que agora já temos mais elementos pra responder a pergunta que fiz alguns parágrafos acima.
Quem sai fortalecido quando acreditamos que “fartura” é obrigatoriamente uma grande quantidade de carne, queijo e ultraprocessados (os pacotinhos e potinhos fabricados pela indústria)? Quem perde quando acreditamos que vegetais, e alimentos frescos em geral, são inferiores – tanto em sabor, quanto em status social?
E tem mais! 57 mil pessoas morrem anualmente no Brasil por causa do consumo de ultraprocessados. O consumo de carnes, principalmente as vermelhas e os embutidos (como mortadela e salsicha) está adoecendo a população, principalmente as classes populares. Aumentar nosso consumo de vegetais é essencial pra evitar o nutricídio da população mais vulnerável, mas estamos caminhando na direção oposta. A última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE mostrou que 90% das pessoas no país não comem frutas e verduras em quantidade suficiente, alimentos essenciais pra manutenção da saúde…
Quando não valorizamos a comida que vem da terra, desvalorizamos também quem plantou aquela comida. O mais triste é ouvir isso da boca de quem vive da terra. Quem nunca ouviu um agricultor falar: “Planto, mas não como” ? Precisamos mudar essa mentalidade.
Enquanto lutamos pra construir o mundo no qual queremos viver, com abundância pra todas e todos, já podemos começar a sentir o gostinho dele na mesa, ao decidir que “fartura” de verdade é comida que nasce na terra, de origem agroecológica.
Se quisermos derrubar o agro, precisaremos boicotar seus produtos. Não dá pra continuar repetindo que queremos o agro fora do campo enquanto enchemos o prato com a carne que eles produzem. Pra descolonizar a alimentação, precisamos nos recusar a comer como o colonizador.
Tem uma categoria de vídeos muito popular na internet chamada “o que como em um dia”. Me fascina ver o que outras pessoas veganas comem, pois a variedade de alimentos vegetais é quase infinita e me inspira ver pratos de outros lugares. Só que quando você começa a ver muitos vídeos “o que como em um dia” acaba descobrindo que os pratos estão cada vez mais parecidos e, o que mais me dá desgosto, que a galera anda obcecada com o consumo de proteínas. E se antes eu via isso entre pessoas que comem animais, agora eu vejo cada vez mais veganas caindo na armadilha da proteinomania.
Não vou falar por que acho isso uma armadilha hoje, mas fiquei com vontade de compartilhar o que aparece no meu prato no dia-a-dia, pois nem todo mundo está “medindo seus macronutrientes”, consumindo proteína concentrada em pó (de origem animal ou vegetal) todos os dias nem comendo os mesmos pré e pós treinos da moda. E como acho que um dia só não é representativo da maneira como nos alimentamos, resolvi compartilhar uma semana inteira de refeições. Acho que pra saber realmente como a gente se alimenta, teria que ser um mês inteiro, pois pelo menos pra mim pode ter bastante variação de uma semana pra outra, dependendo da quantidade de trabalho que tenho, se estou viajando ou em casa, se estou em Natal ou em Paris… Mas no final das contas, a semana que documentei aqui foi bem próxima do que seria uma semana típica na minha vida, atualmente, nesse época do ano (procure sempre comprar vegetais da estação).
Quarta-feira
Café da manhã: tapioca com hummus, tomate e manjericão fresco, banana da terra cozida, hummus + café. Almoço: feijão macaça, arroz da terra no leite de coco, couve refogada e jerimum com coco + pepino, beterraba crua ralada e melão. Lanche: batata doce cozida, hummus com jerimum e grude com melado + café. Jantar:cuscuz no leite de coco e carne de caju guisada. Ceia: aveia dormida com chia e leite de coco, banana (congelada), maracujá e 1 castanha do Pará.
Eu como maracujá assim, mastigando e engolindo as sementes (às vezes diretamente da casca) e adoro colocar rodelas de banana congelada na minha aveia (ela não fica totalmente dura). Eu janto cedo (por volta das 19h), e às vezes sinto fome antes de dormir e como algo leve. Não sou adepta de jejum nem de deitar com a barriga roncando. Aliás, seguindo o toque de uma amiga nutricionista e vegana, observei que quando deito com fome tenho pesadelos com mais frequência.
Quinta-feira
Café da manhã 1: tapioca com hummus com jerimum e couve refogada + café. Café da manhã 2: batata doce cozida, hummus, meio mamão papaia com 1 castanha do Pará + café. Almoço: feijão macaça, arroz da terra no leite de coco, farofa de carne de caju, chuchu refogado e banana da terra grelhada + salada de folhas (alface lisa, alface americana, alface roxa e rúcula), pepino e abacaxi. Lanche da tarde: arepa de carimã (mandioca puba) misturada com hummus (na massa), tomate e manjericão fresco, café com leite de coco (sempre caseiro) e goiaba. Jantar: cará cozido, tofu mexido e caju. Ceia: meio mamão papaya com aveia dormida com chia e leite de coco.
Nas quintas vou à feira, então tomo café cedo, vou pra feira, carrego peso embaixo do sol e quando volto pra casa já estou faminta novamente. Por isso nas quintas tomo dois cafés da manhã. Eu nunca adoço meu café (nem com açúcar, nem com adoçante – gosto amargo). Leite de coco aqui em casa é sempre fresco, ou seja, caseiro, feito com o coco seco que compro na feira. Também compro carimã na feira. Carimã é a macaxeira (mandioca) fermentada na água por 15 dias, um ingrediente típico da cultura alimentar indígena, que já foi mais popular aqui no Nordeste, mas que hoje pouca gente conhece. Sou apaixonada por carimã e desde que descobri que podia comprar na feira, diretamente do produtor, nunca mais faltou na minha geladeira. Cará, pra quem não sabe, é bem parecido com inhame. Compro sempre cará porque é bem mais barato que inhame e tem praticamente o mesmo sabor.
Sexta-feira
Café da manhã: tapioca com hummus com jerimum, meio mamão papaya com 1 castanha do Pará + café. Lanches da manhã: meio copo de lama de coco (polpa de coco verde) e 1 grude com mel de engenho (melado). Almoço:fava com tomate, resto da farofa de carne de caju, farinha e beterraba cozida no vapor + salada de folhas, pepino e abacaxi. Lanche 1: batata doce cozida, hummus com jerimum e café. Lanche 2 (compartilhado com a família): pipoca (de panela). Lanche 3: vitamina de banana com leite de soja, pasta de amendoim e cacau. Jantar: macaxeira cozida, tofu mexido e antepasto de berinjela. Ceia: lama de coco e goiaba.
Tapioca, pra mim, é essencial pra começar o dia feliz. Grude é uma iguaria do meu território, feita com goma (a que usamos pra fazer tapioca), coco seco ralado e sal. Não sei fazer, então quando alguém traz grude pra casa (vende em alguns lugares específicos da cidade – e esse é bem pequenininho) eu faço a festa. Gosto muito de comer com um fio de mel de engenho, contrastando com o sal do grude. Fica uma delícia! No almoço procuro comer uma salada crua com alguma fruta e gosto das minhas saladas sem tempero nenhum (nem molho nem azeite). Os leites que consumo no dia-a-dia são de coco ou castanha, feitos por mim. Não gosto de leite de soja, mas nesse dia era o que tinha pronto na geladeira (de caixa, sem açúcar) e foi o que usei.
Sábado
Café da manhã: tapioca com hummus com jerimum e tofu mexido, meio mamão papaya com aveia dormida (aveia, chia e leite vegetal) e 1 castanha do Pará + café. Almoço: fava, macarrão com molho de tomate (caseiro) e grão de bico, batata doce e beterraba cozidas + banana e mexerica. Lanche: banana. Jantar: cará cozido, grude, queijo de castanha fermentado, café + salada de frutas (banana, mamão, abacaxi e laranja).
Aos sábados dou aula o dia inteiro, em um cursinho popular em um bairro bem afastado de onde moro. Dou aula das 9h às 16h, mas como preciso pegar dois ônibus pra ir e dois pra voltar, saio de casa por volta das 7h e chego em casa depois das 18h. Por isso o café da manhã tem que ser reforçado e levo a minha marmita pro almoço, que é compartilhado com as outras professoras e alunas. Eu não gosto de macarrão, mas sempre faço uma porção grande pra compartilhar com as alunas, que adoram. Também compartilhei a fava, que eu tinha feito no dia anterior. Quando chego em casa, depois de um dia cansativo e 2 horas dentro de um ônibus, geralmente sinto mais enjoo do que fome, por isso o jantar foi leve. Esses pratos são bem pequenos, do tamanho “sobremesa” e as cumbucas que uso também são pequenas.
Domingo
Café da manhã: duas tapiocas com queijo de castanha fermentado e tomate, mamão + café. Almoço: feijão macaça misturado com farinha, arroz com cenoura e espinafre com creme de castanha e grão de bico + salada de folhas, pepino e abacaxi. Jantar: pizza com massa de fermentação lenta, tomate seco e rúcula. Ceia: mamão com abacate, linhaça moída e 1 castanha do Pará.
Minha sobrinha, que também é vegana, estava desejando uma pizza, então fiz algo que não faço quase nunca: pedi uma e comi um pouco com ela. Eu não gosto muito de pizza, mas como essa massa era de fermentação lenta, achei saborosa. Porém o queijo vegetal era industrializado e não gostei nem um pouco do sabor. Eu tento comer uma castanha do Pará por dia pra garantir a dose diária de selênio. Adoro o sabor, então se fosse mais barata aqui em Natal, eu comeria uma quantidade maior.
Segunda
Café da manhã: uma tapioca com queijo de castanha fermentado e outra com abacate amassado com limão e coentro + café. Lanche da manhã: mamão com 1 castanha do Pará. Almoço: feijão carioca com quiabo grelhado, farofa de cenoura + salada de folhas, pepino, beterraba crua ralada e abacaxi. Lanche: arepa de carimã (mandioca puba) com queijo de castanha fermentado (na massa), com guacamole (abacate amassado com limão e coentro), café e um docinho de tâmara com castanha de caju, pasta de amendoim e cacau (feito pela minha irmã). Jantar: sopa de feijão carioca, beterraba, berinjela e coentro + batata doce cozida. Ceia: mexerica e caju.
O que chamo de “arepa” são panquecas salgadas com carimã e algum outro ingrediente pra dar liga (às vezes hummus, às vezes queijo de castanha, mas vezes batata doce cozida e amassada, às vezes feijão amassado). Não sou muito fã de doces e raramente como açúcar. Por questão de gosto, mesmo. Quando como algo doce, geralmente é adoçado com frutas frescas ou secas, e mesmo assim como só um pedacinho. Esse doce que minha irmã faz é uma delícia e gosto de comer antes de me exercitar, pra me dar mais energia. Atualmente faço natação uma ou duas vezes por semana (nem sempre dá pra ir duas vezes) e faço sessões curtas de calistenia no meu quintal nos outros dias.
Terça
Café da manhã: tapioca com queijo de castanha fermentado e tofu mexido, mamão com 1 castanha do Pará + café. Almoço: feijão macaça branco, farofa de cebola e purê de jerimum + salada de alface, pepino e beterraba crua ralada. Lanche 1: pão de fermentação natural com queijo de castanha fermentado, vitamina de abacate e banana (congelada) com leite de coco (caseiro). Lanche 2: pão de fermentação natural com queijo de castanha fermentado, café e um docinho de tâmara, castanha de caju, pasta de amendoim e cacau. Jantar: cuscuz no leite de coco, tofu mexido e uma goiaba.
Terça é dia de natação das 18h as 19h, então faço um lanche mais reforçado (ou dois lanches menores) e janto mais tarde, quando volto da natação. Eu só gosto de pão de fermentação natural, então como raramente, só quando minha irmã faz ou compra (como foi o caso ontem). E, sinceramente, prefiro tapioca, batata doce ou macaxeira.
Então aqui está tudo o que comi em uma semana (do 21 ao 27 de agosto). E como contexto importa, preciso dizer que sou nordestina, vegana, moro atualmente em Natal (RN), compro todas as verduras, frutas, tubérculos, goma (pra tapioca), feijão e alguns cereais (arroz da terra, milho pra canjica e pipoca) na feira livre do meu bairro e cozinho todos os dias, em todas as refeições. E, como disse, tenho um paladar que não gosta de doces, mas também não gosto muito de massas (pão, macarrão, pizza), nem de frituras.
Talvez seja importante concluir esse post dizendo que nunca me consultei com uma nutricionista, e não faço nenhum tipo de regime, nem pra perder peso, nem pra ganhar massa. Como essas coisas porque gosto, mesmo, e porque me sinto muito bem e feliz com a maneira como me alimento.
Veja como são as coisas. Oito anos atrás eu postei um creme de castanha (pra passar na tapioca ou no pão), que chamei de “requeiju”. A receita levava missô, vinagre, levedura de cerveja e até polvilho. Desde então meu estilo culinário evoluiu e minhas receitas foram ficando mais simples e, na falta de uma palavra melhor, verdadeiras. Não que tivesse algo de falso nas receitas antigas, mas quanto mais meu tempo de vegana aumenta, mais me convenço de que o futuro não é apenas vegetal. Ele é vegetal, ancestral e autêntico. O que significa, pra mim, que a comida capaz de alimentar nosso futuro vem da terra (vegetal), é, na sua maior parte, nativa do território que os nossos pés pisam (ancestral) e respeita a integridade do alimento (nem é ultraprocessada nem ultracomplicada). Então deixa eu voltar pra evolução das minhas receitas.
Depois da versão elaborada que citei acima, comecei a fazer uma versão de queijo de castanha fermentado com kefir. Apenas 3 ingredientes: castanhas, água de kefir e sal. Postei essa receita aqui no blog no início do ano. É uma delícia e muito simples de fazer, mas vinha com uma complicação: pouca gente tem grãos de kefir de água em casa. Isso deixava minha receita inacessível pra maior parte das pessoas.
Até que umas semanas atrás minha irmã me contou que estava fermentando o queijo de castanha no café dela (o Libre) usando… nada. Isso se chama “fermentação selvagem”, que é quando você deixa um alimento ser fermentado naturalmente pelas bactérias que vivem no ar. Dá certo, pode confiar. E desde então é assim que faço queijo de castanha cremoso. Já atualizei a receita, incluindo a fermentação selvagem, e você pode ter acesso clicando aqui.
Fermentação selvagem é um aprendizado filosófico. Você tem que confiar em seres invisíveis, acreditando que eles estão ali na sua cozinha e que vão querer entrar no seu creme de castanha e transforma-lo em queijo. E tem que confiar que apenas os seres benignos vão entrar ali, e pra isso você vai ter que superar algo bem recente na história da humanidade, que é a desconfiança e até medo de toda comida que não sai de um pacote com uma data de validade impressa. Quando eu trabalhava numa queijaria vegetal em Berlim e postava (no meu finado perfil do Instagram) fotos do processo de fermentação, chovia perguntas sobre como saber a diferença entre “fermentado” e “estragado”. No processo de fermentação você vai precisar aprender a confiar no seu nariz e vai, tenho certeza, resgatar (ou conquistar) sua intuição culinária. Aquilo que pessoas que cozinham com frequência tem e parece um super-poder pra quem vive longe da cozinha: saber (olhando, cheirando e provando), entre outras coisas, quando uma comida está estragada.
Então uma receita tão simples quanto esse queijo de castanha fermentado tem o potencial de te convencer que o futuro é vegetal (pois não precisamos de exploração animal pra ter prazer na mesa) e te ensinar a confiar no alimento, nos seres invisíveis com quem dividimos esse planeta e em você mesma.
Termino com o meu lanche de hoje, que incarna lindamente minha filosofia na cozinha, coerente com minha ética antiespecista (e a luta decolonial e anticapitalista) e que mostra, mais uma vez, como minhas receitas seguem evoluindo.
Fiz um panqueca misturando carimã (macaxeira fermentada, também conhecida como “puba” ou “mandioca puba”) e cuscuz no leite de coco (um resto do jantar de ontem). Assei na frigideira, até ficar cozida e levemente dourada dos dois lados. Servi com creme fermentado de amendoim, que também foi atualizado hoje (está mais simples e mais rápido, sempre delicioso) e coentro. Macaxeira, milho e amendoim reunidos no mesmo prato. Três ingredientes dos nossos territórios, representantes fortes da nossa cultura alimentar. Um alimento fermentado tradicional, a carimã, junto com um alimento fermentado recente (mas pensado por um cozinheiro da Amazônia), que honra a comida da nossa terra e ajuda a descolonizar nossas práticas alimentares (xô, requeijão!). Se ficou gostoso? Ficou delicioso!
Se você leu o último post, já descobriu meu método pra comprar comida fresca na feira (frutas, verduras, temperos) e alimentar uma casa com muitas bocas. Agora vou falar sobre o que acontece quando volto da feira e como organizo as refeições da semana.
1- Higienizar os vegetais e guardar
Assim que chego da feira começo o processo de limpar e guardar os vegetais. Coloco as folhas (alface, rúcula, couve) e as ervas/temperos (cebolinha, coentro, manjericão) em uma bacia com água e algumas gotas de hipoclorito. Deixo de molho por meia hora, enquanto guardo o resto dos vegetais.
Como aqui em Natal faz muito calor, principalmente nessa época do ano, guardo muita coisa na geladeira. Dedico a maior gaveta da geladeira pras verduras (abobrinha, jerimum, quiabo, berinjela, tomate, batata…) e as frutas maduras vão pra uma gaveta menor. As frutas que não estão maduras vão pra fruteira, assim como os tubérculos (batata-doce e cará), a cebola e o alho.
A macaxeira, apesar de também ser um tubérculo, vai direto pro congelador, pois compro ela já descascada e cortada em pedaços, em sacos de 1kg. Quando queremos comer macaxeira, não precisa descongelar. Colocamos ela congelada na água e levamos ao fogo. Metade da goma fresca também vai pro congelador. A outra metade vai pra água (a maneira certa de guardar goma fresca) e começará a ser consumida no dia seguinte. Também aproveito pra colocar feijão de molho pro dia seguinte.
Depois que as folhas ficaram meia hora na água, a gente enxágua, escorre e armazena num recipiente plástico grande e com tampa, enroladas em panos de prato limpos. Assim elas ficam frescas por vários dias e quando queremos fazer salada, é só abrir e pegar. É prático e economiza o tempo de preparação das refeições durante a semana. Guardar as categorias de vegetais no mesmo lugar também ajuda a reduzir o desperdício: não corremos o risco de achar uma ou outra verdura apodrecendo no fundo da geladeira, escondida atrás de outras coisas.
Resumindo:
–Geladeira: folhas e ervas frescas (lavadas) dentro de uma vasilha de plástico fechada, enrolada em um pano de prato limpo + Verduras (gaveta) + Frutas maduras (gaveta)
– Fruteira: tubérculos, frutas verdes, limão, cebola e alho
–Congelador: macaxeira (descascada), goma e frutas maduras demais (porções pequenas, pra fazer vitamina ou suco)
2- Fazer um cardápio
Como sei o que tem na geladeira, o que precisa ser preparado logo, o que aguenta ainda alguns dias, vou cozinhando seguindo essa ordem. Mas recentemente resolvi fazer um cardápio (começando na quinta, que é o dia da feira do meu bairro) pois, durante a semana, a maior parte do almoço é feita pela cuidadora da minha mãe, e isso dá mais autonomia pra ela. E o pessoal da casa estava com o hábito de me perguntar, no início da noite, “O que tem pro jantar?”. Às vezes eu estava fazendo algo e tinha que parar e pensar: “O que vou fazer pro jantar? O que comemos ontem, pra não repetir hoje?” Eu estava ficando chateada com isso. Agora todo mundo sabe o que é o jantar todo dia, não precisa mais me incomodar com perguntas, e quem não gostar do cardápio pode já começar a fazer outra coisa assim que a noite cai.
Também faço isso na minha casa, mesmo sabendo o que quero preparar todos os dias, pra facilitar o repasse. Nos dias em que Anne cozinha, ela sabe o que cozinhar (sempre seguindo a lógica do que está maduro/precisa ser consumido primeiro) sem precisar me perguntar. Mesmo se você mora sozinha, escrever um cardápio simples ajuda em vários sentidos. Além de reduzir o desperdício, tem dias que a gente está cansada demais pra criar um prato com o que tem na geladeira e precisa ser cozinhado naquela noite, aí acabamos comendo algo pronto e/ou deixando alguns vegetais estragarem.
O cardápio que fiz aqui é muito simples e segue o padrão alimentar da nossa casa (falei sobre isso no último post). Na verdade é mais um lembrete da ordem em que devemos comer os vegetais do que um cardápio com receitas. Mas eu acho que ter uma estrutura simples, que corresponda ao seu padrão alimentar, acaba reduzindo o tempo que você passa cozinhando.
Se o objetivo for diversificar a sua alimentação, ou deixá-la mais vegetal, dê uma olhada na página Receitas aqui do blog pra ter ideias de receitas pra incorporar no seu dia-a-dia. Mas antes de escolher uma lista de receitas diferentes pra testar a cada semana, uma dica importante: simplifique, não complique. Talvez incorporar uma salada crua com vários ingredientes ao seu almoço atual e comer uma fruta no lanche sejam os primeiros passos a serem tomados. Com certeza são os mais simples e que exigem menos esforços.
3- Preparações de base pra semana
Tem coisas que a gente pode preparar com antecedência e comer durante a semana inteira. Como sempre, vai depender do seu padrão alimentar, mas acho que quase todo mundo come feijão todo dia (se não come, deveria comer!). É possível fazer feijão, e arroz, pra semana e congelar porções que correspondam ao consumo diário da sua casa. E se você gosta de jantar sopa com frequência, pode fazer a mesma coisa.
Incluo aqui coisas que levam algumas etapas pra serem preparadas. Como colocar feijão e/ou grão de bico de molho, colocar castanha de caju de molho (pra fazer leite como expliquei aqui), misturar farinha de grão de bico com água e deixar fermentar pra fazer grãomelete (receita aqui). São coisas que você faz uma vez e pode consumir durante toda a semana.
4- Preparar pastas/patês
Dando continuidade ao ponto 3, considero que pastas (pra passar na tapioca, no pão ou acompanhar cuscuz e tubérculos cozidos) é uma preparação de base pra semana. Principalmente numa casa onde tem pessoas veganas, ou seja, que não acompanham seus cafés da manhã e lanches do trio manteiga/requeijão/queijo.
Escolho uma ou duas pastas, preparo em quantidade e durante o resto da semana tem acompanhamento pronto pros cafés da manhã, lanches e jantares da família. Precisa de um pouco de organização e tempo, mas é bem menos complicado do que imaginam. E muito mais saudável, barato e saboroso do que comprar uma pastinha pronta (ultraprocessada ou artesanal, animal ou vegetal).
Hummus pra semana, mais duas porções de grão de bico cozido que foram congeladas e entrarão em outros pratos na semana seguinte.
Tem muitas receitas de pastas no blog, só clicar aqui pra ver. Mas já deixo algumas sugestões. Pra quem está no Nordeste, esse queijo cremoso de castanha é melhor que requeijão. Outra opção no mesmo estilo é o creme fermentado de amendoim. Pra quem tem uma loja de produtos árabes por perto, hummus é o clássico que não dá pra enjoar nunca. Pra quem não tem acesso a tahina (pasta de gergelim) de qualidade, mas gosta da ideia de hummus, esse hummus cubano é perfeito. E ainda mais acessível pra nós, no Brasil, é a minha pasta de feijão macaça (ou fradinho) com amendoim. Baratinha, nutritiva e deliciosa.
Termino com a opção mais simples de todas, que nem precisa preparar com antecedência, pois fica pronta em segundos: abacate (maduro) amassado, temperado com sal e limão. Se puder acrescentar um fio de azeite e alguma erva (fresca ou seca), fica melhor ainda.
5- Dividir tarefas
Alimentação é responsabilidade de todo mundo. Se você mora sozinha a história é diferente, mas se divide a casa com uma ou várias pessoas, as tarefas relacionadas a alimentação devem ser divididas. Apesar de ser a pessoa responsável por fazer a feira na casa da minha mãe, tem a participação de outras pessoas nas diferentes etapas que envolvem comprar e preparar a comida, além das tarefas de limpeza na cozinha.
Uma das minhas irmãs me levava pra feira e ajudava a carregar tudo. Agora que o horário de trabalho dela mudou, é um irmão (que não mora com a gente) que está fazendo isso. Minha irmã caçula se responsabiliza por comprar uma parte da comida de mercearia da casa. Nossa irmã mais velha compra a outra parte. A cuidadora da minha mãe divide a tarefa de higienizar e guardar os vegetais comigo, além de preparar a base do almoço (feijão e arroz) durante a semana. Eu cozinho as verduras do almoço, além de fazer sopa ou cozinhar tubérculos pro jantar. Antes de almoçar, separo a marmita da minha prima, que é técnica em enfermagem e trabalha numa UBS, pra ela levar no dia seguinte. Quando essa mesma prima faz cuscuz pro jantar, ela faz em quantidade pra sobrar pro nosso próximo café da manhã (e o dela). Se ela fizer uma feijoada (vegetal) no sábado pra levar nas marmitas dela da semana, ela faz bastante pra gente almoçar feijoada no domingo. Minha irmã mais velha geralmente cozinha pra gente nos fins de semana. Durante a semana, a irmã do meio geralmente lava a louça do jantar e, às vezes, a do almoço também. Já a prima lava a louça nos fins de semana. E por aí vai. Semana passada até meu irmão caçula e meu pai, que não moram na casa com a gente, participaram. Meu irmão descascou uma ruma de coco seco que ele trouxe pra gente (nem lembro de onde) e no dia seguinte meu pai rapou tudo. Depois congelei o coco em porções pequenas pra fazer leite durante as próximas semanas.
Montanha de coco seco ralado à esquerda / Preparando a aveia dormida pro nosso café da manhã no dia seguinte
Não é uma divisão perfeitamente igualitária e algumas pessoas têm muito mais responsabilidades do que outras na nossa casa. Mas achei importante contar como fazemos na minha família justamente por isso. Não poder ter uma divisão de tarefas perfeita não é desculpa pra não contribuir com o que está ao alcance de cada uma hoje. Qualquer responsabilidade que você tomar pra si, mesmo que pareça pequena (digamos, lavar apenas a louça do jantar aos sábados, ou preparar o almoço do domingo), alivia um pouco a carga da pessoa que, no momento, faz tudo sozinha na sua casa. Todo mundo tem que comer, não é? Então deixa eu repetir mais uma vez: ALIMENTAÇÃO É RESPONSABILIDADE DE TODO MUNDO.
Espero que essas dicas tenham sido úteis. Fazia tempo que eu não escrevia um post nesse estilo, mas agora deu vontade de escrever outros. Talvez até propor cursos sobre organização e divisão de tarefas alimentares dentro de uma casa, quem sabe…
Vim passar uma temporada de um ano no Brasil, por razões familiares, e estou morando na casa da minha mãe. Aqui somos seis mulheres: minha mãe, minhas três irmãs, uma prima e eu. Mas durante a semana tem uma sétima mulher, a cuidadora da minha mãe, que toma café e almoça com a gente. E à noite frequentemente tem uma sobrinha, que dorme com a minha mãe quatro noites por semana e toma café com a gente no dia seguinte. Dividimos as contas da casa entre nós seis e a parte que me toca é a “comida de feira”: verduras, frutas, coco seco, goma fresca e farinha. Minha irmã mais velha se encarrega de comprar a “comida de mercearia”: feijão, arroz, fubá, óleo, café… Outra irmã se encarrega de comprar castanhas (de caju e do Pará) e sementes (chia, linhaça).
Adoro ir à feira, então é uma missão semanal que, apesar de cansativa, me deixa feliz. Geralmente vou acompanhada de outra irmã, que tem carro e me ajuda a carregar tudo, e frequentamos a feira do meu bairro, que acontece todas as quintas. Nessa feira tem uma mistura de comida trazida da CEASA de Natal com produção de pequenas agricultoras, que cultivam e vendem seus próprios alimentos ali (principalmente ervas e folhas) e comida vinda de sítios das redondezas (principalmente frutas). A farinha de mandioca e a goma fresca vêm de Brejinho, um município que fica a menos de 60 km de Natal e que tem fama de produzir a melhor farinha do estado, vinda da agricultura familiar.
Tem semanas em que vamos à CECAFES (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária), que fica um pouco mais distante da nossa casa, mas que tem a vantagem de ter produtos de ótima qualidade, sem veneno, por um preço muito justo, vindos de pequenos sítios e assentamentos da reforma agrária. Por essas razões, se eu pudesse escolher, compraria sempre na CECAFES. Porém a diferença nos preços, apesar de não ser enorme, acaba pesando no meu bolso no final do mês. (Os vegetais da foto acima vieram da feira do bairro, os da foto abaixo vieram da CECAFES).
Das seis mulheres que moram aqui, mais a sétima que come conosco durante a semana, apenas duas são veganas: minha irmã caçula e eu. Felizmente na nossa casa todo mundo dá muito valor aos vegetais e faz questão de comer frutas todos os dias. Nossos almoços, pelo menos durante a semana, são 100% vegetais. Também não entra leite de vaca aqui em casa e queijo é algo bem raro. Os únicos produtos de origem animal que sempre tem na geladeira são ovo e manteiga. E os únicos ultraprocessados que aparecem na cozinha aqui são leite de soja de caixinha (duas irmãs adoram), molho de tomate pronto e proteína texturizada de soja. Eu não gosto de nenhum dos três, mas fico feliz em ver que 95% da alimentação na casa é integral (no sentido “alimentos inteiros e naturais”).
Depois de meses comprando, armazenando e preparando comida numa casa com muitas pessoas, pensei em vir aqui explicar como me organizo pra dar conta da tarefa. Talvez você precise de dicas pra organizar melhor as compras da semana. Talvez queira incluir mais vegetais na alimentação da sua família e não saiba por onde começar. Talvez você esteja curiosa pra ver, na prática, como é a alimentação 100% vegetal de uma família nordestina, que mora numa capital. Uma família que, apesar de não ter muitos recursos materiais, tem condições de escolher o que come e valoriza a cultura alimentar do seu território.
Planejar a feira
Não faço lista de compras por duas razões. Primeiro, porque já estou bem acostumada com as coisas que preciso comprar toda semana, além das quantidades necessárias pra fazer comida até o próximo dia de feira. E a segunda razão é que a oferta, a qualidade e o preço dos vegetais podem variar de uma semana pra outra. Então se essa semana a couve tá feia, não compro. O tomate subiu muito de preço? Não levo pra casa dessa vez. Encontrei fruta-pão (algo raríssimo)? Então ele vai substituir o cará essa semana. Não ter uma lista me torna mais flexível e adaptável.
Uma dica muito importante na hora de planejar as compras de vegetais da semana é conhecer bem os hábitos e as necessidades da sua família. Você e/ou as pessoas que moram com você almoçam em casa? Gostam de jantar a mesma comida do almoço? Preferem jantar algo mais leve, como uma sopa? Precisam de vários lanches na semana que possam ser facilmente transportados? Também é importante conhecer os gostos das habitantes da casa. Se só uma pessoa gosta de, digamos, caju, não faz sentido comprar vários quilos de uma vez.
Aqui na casa da minha mãe todo mundo toma café da manhã (umas comem em casa, outras levam de casa pra comer no trabalho). Tapioca e mamão não podem faltar na primeira refeição do dia. A estrutura básica do nosso almoço é: feijão + arroz/farinha + verdura cozida, então compro 3 ou 4 verduras “de cozinhar” toda semana. Todo mundo gosta de salada crua, então capricho nas folhas. Não temos o hábito de almoçar com suco, mas adoramos comer frutas junto com o almoço. Também gostamos de lanchar frutas, logo trago da feira toda a fruta que meu orçamento me permite. O jantar, pra gente, é um tubérculo cozido (macaxeira, cará, inhame ou batata doce) ou cuscuz. Uma vez por semana faço sopa. Então ao invés de comprar primeiro e pensar no que vou fazer depois, faço o caminho inverso: trago da feira o que é necessário pra mantermos nosso padrão alimentar, que é alinhado com a cultura alimentar do nosso território.
Quando você tiver entendido quais vegetais precisa pra atender as necessidades e o estilo de vida das pessoas que moram com você (ou as suas, se morar sozinha), vai ficar muito mais fácil saber o que comprar na feira, sem lista. E se o objetivo for aumentar a quantidade de vegetais que você(s) come(m), vai ficar mais fácil visualizar as áreas que podem ser melhoradas. Talvez vocês estejam comendo pouca fruta. Talvez precise incrementar a salada crua do almoço. Talvez fazer uma sopa de legumes pro jantar seja o caminho. Veja o que faz sentido na sua rotina, respeitando seus gostos (a ideia da sopa só vai funcionar se você gostar de sopa, obviamente).
Tudo fica muito mais simples (e automático) quando fazer feira e cozinhar se tornam rotina pra você. Mas deixa eu te ajudar contando como faço aqui em casa, pois é sempre mais fácil entender um sistema quando ele é exemplificado com a prática.
-Verduras pra salada (alface, rúcula, pepino, tomate)
-Verduras pra cozinhar (escolho 3 ou 4: couve, repolho, chuchu, batata, banana da terra, beterraba, cenoura, quiabo, maxixe, jiló, jerimum, batata doce…)
–Tubérculos pro jantar (1 porção de macaxeira, 1 porção de cará ou inhame, 2 porções de batata doce)
-Frutas pro café da manhã, almoço e lanches (banana, mamão, abacaxi + as que estiverem na safra)
Tenho essas cinco categorias na mente, que são as que correspondem às necessidades da minha família, e vou comprando por blocos, assim não esqueço nada, mesmo sem lista, e posso adaptar as compras da semana de acordo com os preços e as ofertas do dia.
Sobre quantidades. A experiência me fez ter noção de quanto era necessário toda semana. Se faltava banana antes da próxima feira, eu recalibrava a quantidade de palmas compradas semanalmente. Se a alface estava estragando antes de ser comida, era porque eu tinha comprado demais e na semana seguinte, comprava menos.
Dica importante: antes de sair pra feira, olho o que ainda tem na geladeira, congelador e fruteira. Às vezes ainda tem goma ou macaxeira congelada e não vai precisar comprar essa semana. Às vezes ainda tem alho, mas não é suficiente pra semana toda e vou ter que completar. E por aí vai.
Evitando desperdícios com frutas e verduras
Talvez seja óbvio pra quem tem o hábito de cozinhar todo dia e fazer feira toda semana, mas se não for o seu caso, lá vai. Escolha frutas em diferentes níveis de maturação. Eu compro 4-5 palmas (pencas) de banana por semana, dependendo do tipo da banana (prata é menor, pacovan é maior). Pra não correr o risco de ter 40 bananas maduras ao mesmo tempo num dia, 30 bananas apodrecendo dois dias depois e zero banana no final da semana, eu compro uma penca madura, outra “de vez” (aquele ponto entre madura e verde) e duas verdes. Assim vão amadurecendo durante a semana e sempre tem banana no ponto. Faço o mesmo com o mamão e o abacaxi, frutas que compro toda semana. Também compro uma mistura de frutas verdes e maduras (por exemplo, uma melancia bem madura pra comer no dia, um melão que vai estar maduro daqui a dois dias, dois abacates que só vão amadurecer no final da semana…) e vamos comendo acompanhando a maturação delas.
Às vezes compro uma quantidade grande de uma fruta madura de propósito, pra congelar e fazer vitamina durante a semana. É o caso da banana. Tem sempre promoção de bananas super maduras na feira. Compro algumas palmas, a casa três semanas, mais ou menos, e assim que chego em casa descasco, corto em rodelas e congelo em porções individuais. Também faço isso com frutas grandes, como jaca. E se percebi que o mamão ou o abacate amadureceu todo de uma vez essa semana, congelo uma parte pra não correr o risco de ter desperdício e uso em vitaminas. Isso funciona bem com frutas boas pra vitamina e suco. Congelo manga, acerola, umbu, graviola… Sei que muita gente compra polpa de fruta congelada pra fazer suco, mas as embalagens de plástico (cada porção de polpa vem num saquinho) me incomodam. Não vai ser tão prático quanto as polpas congelada, mas garanto que vai ser muito mais barato comprar fruta madura na feira e congelar suas próprias polpas em casa.
Quanto às verduras, minha dica principal pra evitar desperdícios é: faça sopa. Os legumes que estão murchando na gaveta da geladeira e os restos de legumes cozidos de outros almoços são ótimos candidatos pra virar sopa. Se tiver um restinho de feijão, então, sua sopa ficará ainda mais gostosa e nutritiva.
No próximo post vou compartilhar 1-como preparo o cardápio da semana quando chego da feira; 2-explicar como incluir o ato de cozinhar no seu dia-a-dia, sem precisar passar horas no fogão todos os dias e 3-dar ideias pra resolver o que parece ser o maior problema das pessoas que querem ser veganas, ou acabaram de se tornar veganas: o que preparar pra passar no pão (no meu caso, na tapioca)?
No final de janeiro fui convidada pela Teia dos Povos pra participar da Formação de Construtores e Defensores do Território, como formadora. Foi uma honra e uma alegria imensas aceitar fazer parte de algo tão inspirador e importante e hoje vim compartilhar um pouquinho do que vivi na semana em que estive no Assentamento Terra Vista, no sul da Bahia, onde aconteceu a formação.
Dei uma aula sobre a Palestina (pra explicar o contexto colonial – a colonização israelense da Palestina e a luta do povo palestino pela vida, por liberdade e por autodeterminação- e o que isso tem a ver com nós, aqui no Brasil), outra sobre “Descolonizar as práticas alimentares” e contribuí com o curso “Gastronomia do bioma – Mata Atlântica/Cabruca”. Também pude assistir a algumas formações políticas enquanto estive lá e depois de tantas conversas que alimentaram minha esperança e enriqueceram minha luta, voltei pra casa com a certeza que aprendi tanto, ou mais, do que ensinei.
As fotos acima foram da aula sobre a Palestina, que acompanhei de uma exposição com 45 fotos do fotógrafo palestino de Gaza Mohammad Zanoun. Conheci ele através de Anne, pois ambas fazem parte do mesmo coletivo (Activestills). Não foi fácil falar da Palestina enquanto Israel comete um genocídio contra a população de Gaza mas é muito importante fazer esse trabalho. As fotos são tão fortes que deixei muitas viradas pra parede. Só desvirei depois de dar a oportunidade pras pessoas que não estavam se sentindo bem emocionalmente de deixarem a sala de aula antes. Mas pra não falar somente dos horrores da ocupação israelense na Palestina e seu projeto de limpeza étnica, li vários poemas de resistência escritos por poetas palestinas e palestinos. Eu nunca tinha lido poesia (li até slam!) publicamente e emprestar minha voz à resistência palestina foi uma experiencia que me marcou muito. E quem estava naquela aula também saiu impactada.
(As fotos acima foram feitas por Alass Derivas e você pode acompanhar o trabalho dele aqui.)
Visitei o Assentamento Terra Vista (ATV) pela primeira vez há uns 6 anos e ele continuava tão lindo quando nas minhas lembranças. Contar a história desse lugar merece um post inteiro, então hoje vou só recomendar o documentário feito pelo Brasil de Fato (trailer aqui), que estou ansiosa pra ver, além de recomendar seguir o ATV aqui. Mas você também pode ler sobre a história do ATV na página da Teia dos Povos. Falar sobre a Teia dos Povos, essa aliança Preta, Indígena e popular, também exige tempo e carinho, então vou recomendar que vocês sigam a Teia dos Povos naquela rede social que me expulsou.
Não fiz fotos da aula sobre “Descolonizar as práticas alimentares”. Mas lembrei de fazer algumas fotos da aula prática dentro do curso de “Gastronomia do bioma”. Fomos guiadas por seu Loro, um agricultor assentado, durante uma manhã inteira dentro da mata. O objetivo era identificar os matos de comer (PANCs) e os de curar e seu Loro nos mostrou a riqueza da natureza naquele canto do mundo. Ele também abriu cacau e cupuaçu pra gente chupar e até mostrou como tirar o palmito da juçara.
Nunca tinha dado uma aula dentro da mata e, sinceramente, agora estou ainda mais convencida de que esse é um lugar incrível pra aprender.
Não vai dar pra contar tudo que aconteceu naquela semana num post. Vou precisar de mais algum tempo pra terminar de absolver tanto conhecimento e depois traduzir com minhas palavras, acrescentado de minha vivência e sentimentos. Mas não posso deixar de falar das pessoas que conhecei durante a formação. Não tenho foto de todo mundo, porque estava quase sempre imersa em conversas tão ricas que tirar o celular da bolsa e fazer fotos quase nunca cruzava a minha mente. Queria ter voltado com o retrato de todas as pessoas que conheci e que deixaram uma marca no meu pensamento e coração mas só tenho algumas poucas.
Um cheiro grande pra Airam, que me levou pra tomar banho de rio, Tulase, que preparou falafel e me deu conselhos preciosos, Suélen, que foi uma ajuda valiosa pra montar a exposição fotográfica e fazer os vídeos pra Teia (duas vezes!), seu Loro, nosso guia e professor, e Daniel, que me acolheu na noite que cheguei, me deu uma aula sobre a luta da população de rua em Belo Horizonte, da qual ele faz parte, e trouxe ideias pra enriquecer os vídeos que fizemos. Tem muito mais gente do assentamento, da Teia ou de passagem que conheci naquela semana e que estão no meu coração mas, como expliquei, voltei sem fotos desse povo lindo.
Felizmente lembrei de pedir uma foto com Kiune (obrigada por ser nossa fotógrafa, Airam!), minha grande amiga e companheira de luta há vários anos. Ela é de João Pessoa mas mora no assentamento e faz parte da Teia dos Povos. Kiune é uma das militantes antiespecistas mais inspiradoras que conheço. (Se quiserem conhece-la melhor, vejam as aventuras dela aqui).
Espero que não se passem outros 6 anos pra eu voltar ao ATV, nem pra rever seu Loro, Joelson, Solange, Deysi e todas as pessoas maravilhosas que povoam aquela terra encantada.
Gostaria de terminar esse post agradecendo as pessoas que apoiam o meu trabalho e que possibilitam não só a existência desse blog mas também minha participação em tarefas da militância, como essa formação. (Quem quiser apoiar também, é por aqui.)
*Foto da esquerda: eu organizando a aula prática de reconhecimento de matos de comer com seu Loro, na frente da casa dela, junto da vizinhança. A participação do gatinho na conversa foi decisiva. Foto da direita: a casa, no assentamento, onde fiquei hospedada.
Meu recesso de início de ano acabou essa semana, e junto com a retomada das atividades militantes (tenho muita coisa pra contar, aguardem!) coincidiu de um amigo alagoano da minha sobrinha Luna chegar pra visitar Natal. E, olha como são as coisas, Giovanni acontece de ser um leitor de longa data do blog e apoiador do meu trabalho desde o início da campanha no Apoia-se. A gente tinha se encontrado uma primeira vez em 2019, durante o primeiro ENUVA (Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo), em Recife, mas não deu tempo de conversar daquela vez.
Luna, que é vegana, historiadora e apaixonada por Natal, tinha me prometido um “rolezinho natalense” desde o ano passado. Segundo ela, é o passeio que “o jovem natalense descolado faz”. Como faz tempo que deixei de ser jovem e nunca fui descolada, fiquei curiosa pra ver a minha cidade pelos olhos dela. Então combinamos de fazer isso quando Giovanni (que também é vegano e historiador!) estivesse aqui, porque já juntava a minha vontade de redescobrir minha cidade com a nossa vontade de mostrar a cidade pra ele. Deu certinho.
Passeamos pelo centro e fiquei muito triste ao constatar que a vida nessa parte da cidade está desaparecendo. Quando eu era adolescente, antes de ir morar no exterior, essa parte de Natal fervilhava de atividades e pessoas. Quase tudo era resolvido ali. Compras de qualquer tipo? Tinha. O único restaurante macrobiótico (e quase todo vegetariano) da cidade? Era lá. O último cinema de rua? Lá também. (Inclusive o último filme que vi naquele cinema foi “Billy Elliot”) Precisava de uma garrafada ou lambedor pra tosse? Tinha as barracas das erveiras e erveiros. Pilha pro relógio? Era só ir na rua das relojoarias. Tinha os bares boêmios do Beco da Lama. Esses últimos ainda fazem resistência, mas o resto ou já desapareceu ou está caminhando pra isso.
Mesmo com a tristeza de ver os espaços públicos abandonados, porque quase tudo migrou pra dentro de shopping centers, o dia foi ótimo. Além do centro histórico de Natal, onde tomamos mate, visitamos sebos e batemos perna nos becos, fomos almoçar no Libre, um café vegano (melhor comida vegetal da cidade!), e passeamos pela Mata Atlântica, dentro do Bosque dos Namorados (onde comemos ubaia doce, apanhada do chão).
O “rolezinho natalense” proposto pela minha sobrinha me inspirou e me deixou com muita vontade de propor tours no estilo do que eu fazia em Paris. Como vou chamar Natal de casa até o final do ano, é uma possibilidade pra 2024. Depois de ter guiado pessoas na Palestina e na França, ia ser gostoso guiar pessoas na minha cidade. Se a ideia for pra frente, volto pra contar. Mas se antes disso você aparecer por Natal, me avisa 😉
Depois de nos despedirmos de Giovanni, Luna e eu terminamos o rolezinho natalense em casa, tomando café com soda preta junto com Roberta (a cuidadora da minha mãe). Pra quem não conhece, “soda” (ou “sorda”) é um alimento delicioso, degustado no lanche, com uma textura entre o bolo e o biscoito, feito somente com farinha de trigo, mel de engenho (melado), especiarias e, às vezes, bicarbonato de sódio. Uma das comidas típicas do meu território que são tradicionalmente vegetais, mas que está caindo no esquecimento e desaparecendo, como é o caso de quase todo alimento tradicional. A resistência do centro histórico, apesar de pequena, existe, mas me pergunto quantas pessoas participam da resistência ao desaparecimento da nossa cultura alimentar.
Enquanto degustava minha soda pensei em como gostaria de compartilhar minha cultura alimentar com outras pessoas. Aí lembrei que foi exatamente esse sentimento, de querer compartilhar as belezas e os sabores ameaçados de um lugar, que me fez criar os tours na Palestina… A vida dá muitas voltas, mesmo.
PS Obrigada à Luna pelo rolezinho e pelas fotos que aparecem aqui. Obrigada a Giovanni pelas conversas, pela troca de conhecimentos e pelo apoio ao meu trabalho (e pela foto da ubaia doce).
Primeiro, deixa eu contar que semana que vem estarei no Brasil. Viajo daqui a alguns dias e tenho planos de ficar um ano inteiro em terras potiguares. Estou indo por razões familiares, mas vou aproveitar o tempo que estiver lá pra participar da luta antiespecista na minha cidade, Natal, e pra estar mais presente nas atividades da UVA.
Então estou fechando um ciclo aqui na França e não está sendo fácil. O contexto social no país está cada vez mais difícil pra quem é militante de esquerda. A conjuntura política atual está sendo instrumentalizada pra intensificar o racismo de Estado e acelerar a virada em direção ao fascismo que vemos mundo afora e que nós, que estamos aqui, vemos de perto e sentimos nos nossos corpos. E acompanhar o genocídio cometido por Israel contra a população palestina, que já entrou na sexta semana, enquanto a comunidade internacional se recusa a tomar toda e qualquer medida que possa impedir esses crimes de acontecerem, e a França segue apoiando politicamente e militarmente Israel é desesperador. Mas não me surpreende. Colonialistas são solidários entre si.
Por todas essas razões, estou feliz de sair daqui e de encontrar minha família brasileira. Minha experiência diz que se eu estiver comendo tapioca e macaxeira o sofrimento se torna um pouco mais suportável. E estar do lado de minhas irmãs e sobrinhas, também ajuda. Mas, por outro lado, não estou indo pro Brasil pra tirar férias prolongadas. Não será um ano sabático, longe disso. Outra batalha me espera do lado de lá do oceano Atlântico: acompanhar minha mãe num estado avançado de Alzheimer. E talvez essa seja a batalha mais difícil que eu já enfrentei. Eu sei o que me espera na minha terra, mas ainda não sei como meu coração, já tão angustiado, e meu corpo, que anda cansado e machucado, reagirão.
Na próxima vez que abrir esse blog pra escrever um post, estarei na casa da minha família. Com um pouco de sorte (minha) o choque emocional não será tão grande e eu poderei compartilhar coisas que trazem esperança. Porque, por mais que atravessemos tempos sombrios, me recuso a abandonar a esperança. Como disse Angela Davis, quando ela falou recentemente sobre a Palestina: “Não podemos abandonar a esperança, porque a esperança é a condição de todas as lutas.”
(A foto acima foi feita em um santuário antiespecista e anarquista no interior da França. Visitei esse lugar no final de setembro e o que vi por lá, e os encontros que fiz, me encheram de esperança.)
Se você descobriu esse blog recentemente talvez não saiba que a Palestina ocupa uma parte importante da minha vida. Visitei a região pela primeira vez em 2007 e morei lá de 2008 a 2013. Em seguida foram mais cinco anos, de 2014 a 2018, morando lá uma parte do ano, quando eu organizava tours políticos de solidariedade (veganos!) pra pessoas brasileiras que queriam conhecer a Palestina e a luta por autodeterminação do seu povo.
Por razões pessoais, não me encontro em condições de fazer análises políticas atuais sobre a colonização israelense na Palestina e seu projeto de Apartheid, limpeza étnica e genocídio. Mas quem conhece o meu trabalho sabe que sou uma militante muito comprometida com a causa palestina e que minha militância acontece na vida real, no terreno, não (apenas) na internet. Infelizmente, em tempos de ativismo de redes sociais, parece que se você não postar sobre X, então você não se importa com X e recebi várias críticas, mais ou menos explícitas, nas últimas semanas.
Estou cansada e abatida demais pra colocar pra fora, de maneira elegante e coesa, a minha frustração com esse tipo de comportamento. Quem quiser pensar que eu deixei de militar simplesmente porque não uso mais redes sociais, ou que parei de me importar com o povo palestino e sua luta por libertação porque não fiz um pronunciamento recente aqui, paciência. E quem mandou mensagens pedindo, de maneira educada e carinhosa, pra eu voltar a fazer conteúdo informativo sobre a Palestina porque “minha voz faz falta”, peço compreensão. Estou passando por um momento pessoal muito difícil, tanto por questões familiares quanto relacionadas à Palestina, e atravessar cada dia tem sido uma batalha. Mas tem muita gente fazendo isso no Brasil e no mundo (pra quem fala inglês) e tenho certeza que o mais acertado é ouvir vozes palestinas. Vou deixar algumas recomendações aqui.
Tem o trabalho da palestina, nascida no Brasil e que mora atualmente no Canadá, Hyatt Omar Tem também o grupo Juventude Sanaud e o Monitor do Oriente, uma “instituição independente de pesquisa de mídia fundada para promover uma cobertura justa e precisa das questões do Oriente Médio”. Em Inglês (mas nada que a ferramenta de tradução do Google não possa resolver pra quem não domina essa língua) recomendo o site independente de notícias The Electronic Intifada, que é palestino e, além de notícias, traz análises excelentes. E minha última recomendação é +972 Mag. Se trata de um site de notícias, também independente, mas israelense, de esquerda e anti-sionista.
Pra além das recomendações, eu vim aqui hoje pra fazer uma tentativa modesta. A desumanização do povo palestino continua sendo uma arma utilizada por Israel, e repetida pela grande mídia e governos mundo afora, pra impedir que a gente se solidarize com essas pessoas, justificando assim a sua dominação, opressão e abrindo caminho pro genocídio (anunciado e televisionado). Isso não foi algo inventado por Israel, basta estudar minimamente a História pra perceber que todo povo oprimido é desumanizado pelos seus opressores. Então eu vim lembrar vocês das muitas entrevistas e depoimentos de pessoas palestinas que publiquei aqui, além do relato de brasileiras que foram à Palestina comigo. E se você acaba de descobrir o Papacapim, aqui está um convite pra descobrir esse extenso material que há anos mora aqui, mas que não perdeu a relevância.
Começo com a série, em três episódios, “Histórias palestinas”, onde entrevistei dois amigos e uma amiga palestina. Essas pessoas, todas refugiadas, contam suas histórias de vida e como a ocupação israelense impacta absolutamente todos os aspectos do seu dia-a-dia e determinou o lugar onde nasceram e estão criando suas crianças.
“Meu nome é Mohamad Alafandi, tenho 76 anos e moro no campo de refugiados de Deheisha, na região de Belém. Nasci em Dayr Aban, a 21 km de Jerusalém, no que então ainda era a Palestina. Minha cidade resistiu enquanto pôde à invasão sionista, o que custou a vida de quarenta habitantes. A gente só tinha dois fuzis e os homens se revezavam pra defender nossas casas. Mas o exército sionista era muito mais bem equipado. No dia 18 de outubro de 1948 os soldados do recém-criado estado de Israel invadiram minha cidade e obrigaram a população a partir sem poder carregar absolutamente nada, abandonando nossas terras, casas, animais e pertences, deixando toda a nossa vida para trás. Eu tinha 14 anos quando isso aconteceu. Meu pai não suportou tão duro golpe e sofreu um derrame que o deixou paralisado. Fui obrigado a carregar meu pai nas costas durante todo o tempo em que caminhamos. Minha família errou durante um ano e meio, andando de cidade em cidade procurando um lugar para viver. Meu pai morreu um ano depois de ter sido expulso de sua cidade natal e eu, como filho mais velho, tive que tomar conta da minha mãe e dos meus irmãos. Acabamos chegando em Deheisha, um dos inúmeros campos criados pela ONU. ” Leia a continuação do depoimento aqui
Mustafa (à direita) com o pai, Mohamad, e o filho caçula, Aissa. Três gerações de refugiados.
“A vida no campo de refugiados nunca foi fácil, mas lembro de um período, quando eu era criança, que as coisas eram ainda piores. Durante a primeira intifada (entre 1987 e 1993) os soldados israelenses entravam no campo o tempo todo e muitas pessoas foram assassinadas. Todo mundo tinha medo de sair de casa e levar um tiro. Lembro que um dia, eu devia ter uns 8 anos, vi dois jovens correndo no campo. Pensei que os soldados estavam os perseguindo então abri a porta de casa e comecei a agitar os braços, chamando eles pra se esconderem ali. Quando meu avô viu a cena me colocou pra dentro e fechou a porta imediatamente. Depois explicou que aqueles jovens não eram palestinos fugindo de soldados israelenses e sim soldados israelenses a paisana correndo atrás de palestinos.” Leia a continuação aqui
“Meus pais nasceram em Iraq Al-Manshya, um cidadezinha no litoral da Palestina histórica, entre Jafa e Gaza. Meu pai era agricultor e junto com a família cultivava laranjas e outras frutas cítricas. Em 1948, quando as tropas sionistas invadiram nosso vilarejo, meu pai tinha 20 anos. Fazia já algum tempo que as notícias de expulsões e massacres de palestinos por soldados sionistas chegavam por lá e algumas pessoas tinham abandonado suas casas com medo do que iria acontecer quando a vez de Iraq Al-Manshya chegasse. Toda a população recebeu ordem de ir embora, mas muitas pessoas se recusaram a abandonar suas terras. Os que tentaram ficar foram executados e meu pai perdeu muitos amigos e um irmão. A família do meu pai foi pra Hebron (no sul da Cisjordânia). Quando eles chegaram lá, os habitantes da cidade se compadeceram com o triste destino dos refugiados e os acolheram em suas casas. Alguns meses depois eles escutaram que a ONU estava reagrupando o pessoal em campos de refugiados, na espera do retorno. Foi assim que a família da minha mãe, que também é de Iraq Al-Manshya, e a do meu pai vieram parar em Al Arroub. Um dia, em uma viagem organizada pela escola, fomos à Jafa ver o mar (a antiga cidade de Jafa foi anexada à Tel Aviv). No caminho eu vi uma placa indicando Qiryat Gat, a cidade israelense construída sobre as ruinas da nossa cidade, e pedi ao motorista pra passar por lá. Quando vi aquelas pessoas, que moram hoje nas terras que um dia pertenceram ao meu pai, olhando pra mim como se eu fosse um estrangeiro que não tinha direito nenhum de estar ali meu sangue ferveu e a revolta tomou conta de mim.” Continua aqui
Muitas das pessoas que participaram dos tours políticos que organizei na Palestina (antes que perguntem, não faço mais esses tours) compartilharam esse vivência aqui no blog e eu também escrevi bastante sobre essas viagens de solidariedade. Além dos relatos, vocês podem ver muitas fotos da Palestina, que tem paisagens lindas, e da comida maravilhosa que degustamos por lá. Seguem alguns desses relatos (mas pra ver tudo, clique na página Receitas e dentro dela, na seção Outros)
“Se eu tivesse optado por um turismo convencional, mesmo tendo uma visão crítica a respeito da ocupação israelense de terras palestinas, muito provavelmente teria voltado com percepções bem diferentes do que esse tour político me proporcionou. Cheguei um dia antes do combinado para me encontrar com o grupo e fiquei hospedada em Jerusalém. Algumas voltas no entorno, vendo israelenses e alguns palestinos na mesma cidade, me deram a falsa impressão de normalidade, de que ambos ocupavam o mesmo espaço sob condições iguais.
Andando apenas em transportes usados por turistas, eu provavelmente não teria percebido que alguns ônibus são reservados apenas para palestinos e outros para israelenses, o sinal mais óbvio de apartheid. Andando pelas ruas e observando as construções, eu certamente acharia que era opção estética ter ou não caixas d’água no teto, ao invés de saber que palestinos não têm água disponível 24h, ao contrário dos israelenses, mesmo essa água tendo sido captada em terras palestinas. Se estivesse em uma excursão tradicional, em ônibus de viagem, teria passado por vários “check points” sem perceber, pois esses ônibus não seriam parados. Mais ainda, eu teria percorrido vários quilômetros de estrada cortando terras palestinas e não saberia que na maioria daquelas estradas só é permitido o tráfego de israelenses. Teria visto as imensas colônias israelenses em terras palestinas e concluído ser apenas mais uma cidade. Teria visitado o Mar Morto sem ver um só palestino e achado que eles não frequentavam outros resorts por opção.” Continue lendo o post “Estou disposto a fazer a minha parte”
“Pude dividir um pouco da Palestina que me emociona e me inspira com um grupo de pessoas maravilhosas, passei 14 dias incríveis e fiz um dos trabalhos mais significativos da minha vida. E além dos cinco brasileiros que decidiram embarcar nessa aventura o acaso trouxe uma islandesa pro nosso grupo, porque loucura pouca pra mim é bobagem. Nosso grupo era um óvni. Imaginem eu explicando a empreitada pros palestinos: “Opa! Tudo certinho? Eu tenho um blog de culinária vegetal em Português e estou guiando uns brasileiros, não, essa daí é islandesa (não, nem irlandesa nem finlandesa, islandesa da Islândia), num tour político-gastronômico pela Palestina e nós gostaríamos de bater um papinho sobre o papel das mulheres no movimento de resistência popular contra a ocupação. Pode ser?”. Juntos vivemos coisas intensas, emocionantes, revoltantes e inspiradoras. Nas fotos vocês podem ver alguns dos lugares que visitamos e algumas das pessoas, principalmente palestinas, mas também israelenses, que encontramos durante essas duas semanas.” Essa sou eu falando e o relato do primeiro tour que organizei, em 2014, está aqui
No tour do ano seguinte, participamos da colheita de azeitonas.
“Outubro é a época da colheita de azeitonas aqui na Palestina e é, na minha opinião, o melhor mês pra estar aqui. Eu não sabia nada sobre o cultivo de azeitonas nem sobre a produção de azeite até ter me mudado pra cá, em 2008. Fiquei encantada quando descobri a parte fundamental que a oliveira tem na cultura e na vida dos palestinos. Talvez o mais impressionante pra mim foi descobrir que não existem ‘cultivadores de azeitonas’. Como oliveiras precisam de pouquíssimo cuidado e só recebem água da chuva, os ‘donos’ das oliveiras têm todos uma profissão, que eles exercem durante as outras cinquenta semanas do ano. Durante duas semanas, no início ou no final do mês (de acordo com o amadurecimento das azeitonas), professores, médicos, pedreiros, advogados, estudantes, psicólogos, sociólogos, eletricistas, cozinheiros… todos largam temporariamente suas ocupações e vão pro campo. A família inteira, muitas vezes três gerações juntas, participa da colheita. Uma parte das azeitonas será marinada durante várias semanas e elas serão degustadas acompanhando o café da manhã típico daqui. Mas a maior parte delas vai ser prensada e virará azeite, que aparece na mesa familiar durante o ano inteiro.” O post completo está aqui
E falando em colheita, tem dois posts, de 2012, muito especiais pra mim. O primeiro mostra um pouco do que é esse momento tão importante pra cultura e economia palestina. E outro, no mesmo ano, onde compartilho um momento mágico: meu amigo Tawfic me levou pra uma prensa e pude ver como as azeitonas são transformadas em azeite.
“O centro da produção de azeite palestino fica em Nablus, no norte, e lá tem mais prensas do que aqui. Porém, o azeite de Belém e das duas cidades vizinhas (Beit Jala e Beit Sahour) tem fama de ser o melhor de toda a Palestina. Meu amigo Tawfic explicou que essa região tem um micro clima perfeito pra produção de azeitonas e por isso o sabor do azeite daqui é superior. Eu posso confirmar: o azeite de Tawfic é o melhor que já provei na vida! Ele tem uma nota verde intensa, com um gosto de mato depois da chuva (nunca comi mato depois da chuva, mas tenho certeza que o gosto é idêntico ao cheiro), mas ao mesmo tempo é aveludado e tão cremoso que chega a ser (pasmem!) amanteigado. É difícil descrever um sabor tão complexo, só mesmo provando pra entender.” O post completo, com fotos do passa-a-passo, está aqui
Pra ver muitas fotos de lugares lindos e pratos típicos deliciosos, é só clicar aqui.
Na seção Viagens (dentro da página Receitas) tem vários posts mostrando as belezas da Palestina e seu povo acolhedor. Vou só citar alguns, pra esse post não ficar ainda mais longo do que já está.
Tem um post sobre o Vale do Jordão, quando fiquei alguns dias plantando oliveiras em uma comunidade beduína.
E outro sobre o natal em Belém, que era onde eu morava. Imaginem comemorar o nascimento de Jesus…na cidade onde ele nasceu!
Espero que vocês reservem um tempinho pra ler esses relatos, admirar as fotos, salivar diante das comidas e se informar, através das fontes que recomendei. Termino esse post com mais imagens da Palestina, imagens que vocês não verão nesse momento, mas que não deviam sair da nossa mente. A Palestina é um território riquíssimo em história, cultura, culinária e tudo isso, além dos milhões de vidas humanas, está ameaçado.
Começou dois anos atrás, no verão. De repente olhei pro meu jantar e me dei conta de que os alimentos naquele prato tinham chegado até a mim por diferentes caminhos, através das mãos de amigas e camaradas. Não lembro exatamente do conteúdo daquela refeição, mas sei que naquele momento vislumbrei pela primeira vez os fios que partiam do meu prato e me conectavam a várias pessoas conhecidas. Foi quando eu escutei a história que aquela comida contava e percebi que tinha uma teia de solidariedade local ao meu redor. Lembro da alegria e gratidão que senti e da certeza de ser uma pessoa extremamente afortunada.
Desde então esse é um exercício que repito com frequência quando estou comendo e eu sempre me dizia que um dia iria fotografar minhas refeições e escrever as suas histórias, pra compartilhar e não esquecer. Só que eu tenho muitas, muitas ideias ótimas que nunca saem da minha cabeça. Até que uns dias atrás eu estava jantando e ao contar pra Anne de onde vinha cada um daqueles ingredientes vi que eram tantas pessoas envolvidas que não resisti: interrompi o jantar, fui buscar o celular (na nossa casa celular é proibido na mesa – e na cama) e fiz uma foto. Fotografei também o almoço e o jantar do dia seguinte e vim aqui contar as histórias dessas três refeições.
Salada: os tomates vieram da nossa horta de quintal e da horta de uma amiga, a azedinha (escondida embaixo da alface) veio do lote que cultivamos coletivamente (junto com nosso coletivo) nos Jardins Operários, o pepino foi comprado numa loja de orgânicos e a alface veio do lixo dessa mesma loja de orgânicos.
Pausa pra explicar que toda semana buscamos comida no lixo da loja de orgânicos, comida perfeitamente comestível, apenas um pouco murcha ou machucada, mas que é jogada fora. Também pegamos vegetais de descarte nas feiras livres da nossa cidade, mas nesse caso os feirantes deixam a gente pegar antes de jogar no lixo. (O que não é o caso na loja de orgânicos).
O prato principal foi macarrão, comprado na loja de orgânicos de onde pegamos comida do lixo, com cogumelos e espinafre, ambos vindos do lixo da loja de orgânicos, tofu do mercado chinês do nosso bairro (feito aqui, com soja não-transgênica) e creme de castanha de caju, que veio de uma ocupação aqui no nosso território. Essa okupa recebe doações de comida que passou da data de validade, mas que ainda pode ser consumida, e distribui pra toda uma rede de pessoas precarizadas, incluindo nós, do coletivo. Desde o ano passado comemos pasta de castanha de caju, orgânica (!!!!), pois a doação foi gigante!
De sobremesa teve dois tipos de ameixas: as alongadas foram apanhadas no chão dos Jardins Operários (é época de ameixas e nos Jardins tem muitas ameixeiras, então o solo em vários lugares está coberto com essas frutas) e as redondas, menores, vieram da nossa vizinha de lote. As uvas foram presentes da minha vizinha e vizinho, um casal do Sri Lanka que compartilha o nosso entusiasmo por plantar (só que a horta delas é muito maior do que a nossa!). A gente conversa muito por cima da cerca que separa nossos quintais e Vigi, a vizinha, já me deu vegetais, sementes, mudas e conselhos. Na manhã daquele dia eu estava tomando café curtindo um solzinho quando a vizinha e o vizinho me chamaram por cima da cerca pra me oferecer um pouco das uvas que estavam colhendo.
Depois do jantar gosto de ir pra cama com uma caneca de chá de ervas (infusão), que degusto enquanto leio. É um ritual que adoro e aqui fiz chá com a verbena-limão que tinha colhido naquele dia no lote de Chabha, nos Jardins Operários. Chabha, uma senhora argelina, precisou viajar e perguntou se alguém poderia cuidar da horta dela durante a sua ausência. Como já faz um certo tempo que comecei a ajudá-la a regar a horta (é pesado pras costas dela ir buscar água e regar tudo sozinha), estou cuidando do pedacinho de terra dela durante o mês de agosto. E como ela tem um pé de verbena-limão, uma das minhas infusões preferidas, sempre que passo por lá colho uns raminhos pra tomar à noite.
No dia seguinte, depois do café da manhã, Anne foi regar as plantas do apartamento de uma camarada do coletivo, que saiu de férias, e na volta passou por uma das feiras livres da cidade. A feira já tinha acabado e os feirantes estavam descartando os restos. Já disse que temos o costume de pegar comida de descarte na feira e foi exatamente isso que ela fez. A gente só anda de bicicleta por aqui e temos bagageiros sólidos pra poder trazer pra casa a comida que cruza o nosso caminho. Aqui ela pegou uma das caixas de madeira que estavam sendo jogadas fora e fez uma ótima colheita: um melão, um pouco de uva verde, pêssegos e várias bananas. Evitamos comprar frutas e verduras que vêm de longe, então as únicas vezes em que como banana ou abacate, por exemplo, é quando encontramos no lixo da loja de orgânicos ou pegamos do descarte da feira. Como as bananas de descarte sempre são bem maduras, eu descasco, corto e congelo assim que chego em casa. Depois uso pra fazer vitamina, sorvete ou coloco na papa de aveia. Dessa vez tinha bananas verdes (perfeitas!) e elas estão amadurecendo na cozinha nesse exato momento.
No almoço comemos o resto do macarrão com tofu/espinafre/cogumelo/creme de castanha da noite anterior, mais uma salada com a alface do lixo da loja de orgânicos, grão de bico (francês) comprado na loja de orgânicos, folhas de capuchinha do quintal, algas francesas que ganhei de uma amiga, cebolinha do nosso lote, salsinha da nossa horta de quintal e tomates do lote de outra amiga. Essa outra amiga, Dolorès, também está viajando e estamos regando, junto com outras camaradas e jardineiras, o lote dela no momento. E vocês já entenderam que quem cuida do lote ganha o direito de colher o que estiver maduro no dia, né? Nossas amigas agricultoras insistem sempre pra gente colher o que quiser, como modo de nos agradecer o favor e porque quem cultiva a terra sabe que o que não for colhido, se perde. Ou seja, plantar te ensina a compartilhar, incentiva a generosidade.
De sobremesa comemos o resto das uvas da vizinha e alguns dos pêssegos de descarte (que Anne trouxe de manhã).
À tarde fui buscar duas cestas de orgânicos, no esquema CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura), de uma amiga e um amigo, ambas camaradas do coletivo de defesa dos Jardins Operários. As duas saíram de férias com a família (julho e agosto são as férias de verão aqui) e as cestas iam se perder. Você se compromete a pagar um valor fixo por mês e tem direito a uma cesta semanal com vegetais da estação. Como a ideia é apoiar as agricultoras locais, não é possível cancelar nas semanas em que viajamos. Sorte nossa, pois nossas amigas, que também moram pertinho de nós, deixaram as cestas da semana passada e dessa semana pra gente. Uma das amigas, Vivianne, tem uma filha pequena e às vezes, quando ela tem um imprevisto no trabalho, ela me pede pra ir buscar a menina na escola. Nossa comunidade é bem unida e se ajuda mutualmente o tempo todo.
Minha bicicleta voltou carregada com as duas cestas de orgânicos e pude até congelar algumas coisas pra comer nas semanas seguintes.
Fiz lasanha pro jantar e essa refeição é um exemplo perfeito da teia de solidariedade que falei no início do texto. A massa foi comprada, na loja de orgânicos, mas além disso, do azeite e do alho (mais o sal e a pimenta preta), todo o resto dessa refeição foi conseguido de forma gratuita. Comida não deveria ser mercadoria e saber que uma parte, às vezes importante, do que comemos chega na nossa mesa sem passar por lógicas mercadológicas, me deixa muito feliz.
A lasanha tem berinjela e pimentão da cesta de orgânicos da amiga, tomates da cesta da amiga e do lote de Dolorès (vou escolhendo os mais maduros, por isso sempre rola mistura de origem), abobrinha do nosso lote, manjericão da nossa horta de quintal, cebola do lote de Chabha e creme feito com a pasta de castanha de caju da ocupação. A salada tem: alface da cesta de orgânicos do amigo e do lixo da loja de orgânicos, melão de descarte (da feira) e folhas de dente-de-leão do quintal. De sobremesa teve pêssegos de descarte (da feira).
Uma nota sobre PANCs. Uns meses atrás comecei a incluir sistematicamente um alimento selvagem, ou uma PANC (planta alimentícia não convencional), nas minhas refeições principais. Geralmente elas vem do meu quintal ou dos Jardins Operários (dente-de-leão, capuchinha -as flores e as folhas, urtiga, folha de jerimum, azedinha) e minha intenção é diversificar minha alimentação e expandir meu paladar pra sabores menos convencionais, mas também enriquecer minha microbiota intestinal. Não é um sacrifício, é um prazer imenso descobrir novos sabores.
Toda comida te conecta a alguém ou alguma coisa. A quem a sua comida te conecta? A quem a produziu, claro. A agricultora que selecionou a semente, plantou, regou, cuidou e colheu. Mas quem mais entrou no caminho entre a terra e o seu prato? Que histórias sua comida conta?
Mês passado fiz um post que chamei de “o melhor de maio” e disse que talvez virasse uma tradição mensal nesse blog. Redes sociais acostumaram o pessoal a ver tudo que todo mundo faz (e pensa) em tempo real. Embora eu não queira mais isso pra minha vida, compartilhar momentos do meu dia-a-dia uma vez por mês é uma maneira de trazer as pessoas que leem o blog mais pra perto do meu cotidiano, mas de maneira menos invasiva (pra mim). Estou atrasada pra falar do mês passado, mas bora lá. Fazer um diário visual de um mês inteiro renderia um post longo demais e nem tudo que faço, eu desejo compartilhar. Então aqui estão alguns momentos (escolhidos) que vivi em junho.
Junho é o mês da transição entre primavera e verão e as flores, principalmente as rosas, causaram uma explosão de cores nos jardins (o daqui de casa e os Jardins Operários).
Anne voltou da Palestina, onde ela esteve trabalhando por um mês, e trouxe presentes das minhas amigas que moram lá. Melado de romã, feito por Dragiša e essa bolsinha zapatista, enviada por Tati.
As cerejeiras dos jardins operários estavam carregadas, mas esse ano não foi um bom ano pra cerejas, e muitas apodreceram no pé. Mas um belo dia de junho, um coletivo amigo conseguiu uma quantidade imensa de cereja (orgânica) de descarte e voltei pra casa com uma caixa cheia dessa preciosidade. Cerejas são uma das frutas que você só consegue comprar na estação e são bem caras. É fruta de gente rica, por isso não compro quase nunca. Então aquela caixa era um tesouro pra mim. Fartura. Agora é esperar até o ano que vem pra comer cereja novamente.
Degustei, feliz da vida, as favas que plantamos no quintal. Adoro fava e esse ano descobri, graças à uma amiga que também tem uma horta nos Jardins Operários, que quando elas são bem jovens dá pra comer com casca e tudo, sem debulhar, como uma vagem. Aqui fiz um macarrão com molho de urtiga e favas frescas, mais salsinha. E uma salada de folhas de beterraba, alface e dente de leão. Tudo, com excessão do macarrão, veio da nossa horta.
Também foi o mês das framboesas. No lote que o nosso coletivo cultiva nos jardins operários tem vários pés. Nunca comi framboesas tão deliciosas, e tão grandes, na minha vida. Comi até no café da manhã, em cima da aveia dormida (mais amêndoas de cacau e castanha do Pará, que trouxe do Brasil).
A okupa que nos servia de base foi fechada e foi um momento triste pra todos os coletivos do território, pois era um lugar estratégico pra organizar as lutas aqui. Mas a gente sabe que ocupações são efêmeras e essa conseguiu sobreviver por três anos, o que é um milagre. Felizmente, as pessoas dessa okupa já encontraram outro imóvel pra fazer uma nova ocupação e passamos o mês inteiro fazendo a mudança (todos os coletivos ajudaram). Puxei, pela primeira vez, uma carrocinha na bicicleta, pra ir buscar comida de descarte pro pessoal de lá. Preciso dizer que caí no primeiro dia. Mas no segundo consegui fazer a viagem sem problemas, apesar da carga ser ainda mais pesada do que no dia anterior. Quando a gente diz que a militância é uma escola, acho que muita gente não imagina a imensa variedade de coisas que aprendemos nela.
Tomamos café da manhã todos os dias no jardim e isso, pra mim, é a definição de luxo.
Descobri que a borragem é rosa quando desabrocha, mas em poucas horas ela fica azul. (Observar o jardim e a horta são minhas atividades preferidas no momento.) Plantamos várias borragens na horta dos tomates porque as abelhas amam essa flor. E a gente ama as abelhas. Sabia que a borragem é comestível e tem um leve sabor iodado que algumas pessoas acham parecido com ostra? Não posso confirmar, nunca comi ostra na vida, mas adoro o sabor dessa flor. Só não como tudo na salada porque elas são mais importantes pras abelhas do que pra mim.
Pelo segundo ano consecutivo organizamos uma festa pras crianças do CoHab onde fazemos, todo domingo, atividades de educação popular. Levamos um forno de pizza (emprestado) pra lá e cada criança pode fazer sua pizza com a massa, molho e legumes que tínhamos preparado. Como nosso coletivo se comprometeu com a luta antiespecista, toda a comida que preparamos/oferecemos é vegetal. Talvez surpreenda algumas pessoas me lendo, mas nenhuma criança estranhou a falta de produtos de origem animal e, mais uma vez, as pizzas foram um grande sucesso. Foi um dia inteiro de trabalho, sem contar o trabalho na semana anterior pra preparar a festa, que também teve muitas atividades lúdicas, e muitos braços pra acompanhar as crianças no preparo de 40 pizzas, além de cuidar do forno. Mas como esses momentos de partilha com a nossa comunidade são preciosos! A luta não é só uma lista de tarefas e sacrifícios: ela também oferece alguns dos momentos de maior alegria da minha vida.
Quando você abre a câmera do celular e está em modo selfie 🙂
Umo, um dos habitantes da nossa casa, resolveu voltar. Ele decidiu sair de casa há uns três anos, e passou a morar na rua e a nos visitar somente de vez em quando. Mas parece que ele cansou da vida itinerante, pois umas semanas atrás ele se instalou no minúsculo jardim na frente da casa. Ele se recusa a entrar em casa, porque não se entende com os outros gatos moradores daqui, mas a gente coloca água e comida pra ele lá fora e pelo menos uma vez por dia saímos pra dar carinho pra ele. Apesar de preferir a liberdade da rua e de ter se emancipado das humanas que viviam com ele, Umo adora carinho e ainda pede nossa companhia de vez em quando.
Esse mês também levei várias turmas de crianças de dois jardins de infância do bairro pra visitas as hortas dos Jardins Operários. Guiar turmas de escola nos jardins é uma das minhas tarefas no Coletivo de Defesa dos Jardins. É uma delícia ver as crianças se maravilharem diante das flores, das borboletas e descobrirem os legumes crescendo nos pés. Aproveito pra conversar com as crianças sobre comida vegetal e até provamos algumas coisas pelo caminho.
Mais pro final do mês aconteceu um encontro militante no interior da França, organizado pelo nosso coletivo de solidariedade popular. Convidamos alguns coletivos de outros territórios e foram 3 dias de muita troca e banho de rio. Eu organizei uma oficina chamada: “O lugar do antiespecismo nas nossas lutas” e fiquei muito feliz em ver a quantidade de pessoa que participou. Foi o primeiro encontro inter-coletivos que organizamos depois de termos decidido colocar a luta antiespecista na nossa declaração de princípios e, pela primeira vez, a comida foi totalmente vegetal e só recebemos elogios.
Mas teve um problema. Um problema de 14kg. Preparamos uma parte da comida antes de pegar a estrada, no dia anterior, e todo o hummus que eu tinha preparado fermentou. Sete potes de 2kg cada, ou seja, 14kg de hummus!!! Eu cheirei e provei tudo e decidi que dava pra comer um dos potes que tinha fermentado menos que os outros. Fomos na fé e todo mundo sobreviveu sem nem mesmo uma dor de barriga. Infelizmente tivemos que jogar o resto fora e isso me partiu o coração.
Na volta pra minha periferia, no norte de Paris, fui cuidar da horta. Os pés de favas estavam secando (todas as favas tinhas sido comidas por nós). Arranquei tudo, agradeci pela comida oferecida e pelo nitrogênio que elas levaram pra terra, que vai beneficiar todas as outras plantas que crescem ali e coloquei na composteira. Ali os pés de favas vão virar terra novamente e o ciclo se fechará. Olha que coisa mais linda as raízes das leguminosas. Repare nesses pequenos nódulos. São ali que elas hospedam as bactérias que capturam o nitrogênio (N2) do ar e o converte em uma forma utilizável pelas plantas. Por isso leguminosas são o verdadeiro adubo verde. Eu fico abestalhada diante da sofisticação e tecnologia das plantas.
O primeiro tomate brotou. Ainda vai demorar semanas pra gente poder comer tomates maduros e esperar pacientemente por esse momento só contribui pra que eles sejam ainda mais saborosos pra mim.
O lote do nosso coletivo está cada dia mais luxuriante. Plantamos tomate, abobrinha, couve, berinjela, manjericão, alecrim, cebolinha e azedinha. Tem também um pé de damasco (a safra foi curta e já comemos todos) e uma cerejeira jovem. A primeira abobrinha foi colhida (e comida) e outras já vieram depois. Cultivar a terra com camaradas me enche tanto de felicidade que nem consigo colocar em palavras. E cultivar a terra com as crianças dos camaradas, que estão sempre por ali se maravilhando com os bichinhos que moram naquela terra ou procurando framboesas pra comer, é gostoso demais.
Fiz meu primeiro arranjo floral, com flores do lote, pra receber uma grande amiga de 80 anos que veio jantar com a gente. De sobremesa, fiz o creme-mousse de chocolate branco, gergelim e missô que criei no ano passado e que é um sucesso total. Parece absurdo, mas é absurdamente bom. Servi com as framboesas dos Jardins Operários e minha amiga ficou encantada.
Fiz seis bolos num dia, pras atividades de educação popular com as crianças (no CoHab) e pro almoço com jardineiras e jardineiros dos Jardins operários. Das tarefas da militância, cozinhar é uma das que faço com mais frequência. O almoço nos jardins teve churrasco, mas teve também uma abundância de pratos vegetais. Nem uma jardineira é vegetariana, muito menos vegana, mas vários trouxeram contribuições vegetais pra compartilhar com todo mundo. Quase beijo o jardineiro português que fez esse feijão fradinho, que estava uma delícia.
Apareceu o primeiro jerimum do quintal. Esse pé cresceu sozinho (não foi semeado) e está se espalhando pelo quintal inteiro. Aliás, impressionada com a proeza e abundância desse pé de jerimum, fui pesquisar pra saber se as folhas eram comestíveis. São! Comi, pela primeira vez na vida, folha de jerimum refogada e adorei. A generosidade da natureza…
Rolou um date de rompimento definitivo de namoro. É conceito. E a comida estava ótima. Mas, falando sério, acho importante celebrar finais tanto quanto celebrar começos.
Falando em ex namorada, a newsletter desse mês foi sobre isso. Mais especificamente, sobre ter uma ex mítica (quase todo mundo tem). A minha é aquela das alcachofras. Envio uma newsletter mensal falando de amor, em sua imensa pluralidade e com narrativas que vão contra a visão uniformizada que nos é imposta culturalmente, pra agradecer quem apoia financeiramente o meu trabalho.
Eu tenho alguns problemas de saúde que são aliviados quando faço musculação e esse mês encontrei uma academia perto de casa e bem baratinha. Sempre gostei de musculação, porque além de aliviar minhas dores, aumentar minha força física faz bem pra minha autoestima, e estou feliz por ter voltado a puxar ferro.
E pra terminar, os jardins operários em toda a sua glória no crepúsculo do final de junho.
Quando eu estive em Belém, em novembro passado, tive a honra de ser convidada pra tomar um tacacá na casa de Larissa e Maria. Assim como Michelle, que entrevistei aqui, Larissa (que todo mundo chama de “Lara”), é uma companheira do coletivo antiespecista VEM. Maria, também vegana, é a mãe dela. Passei uma tarde na casa delas, entre bonecas de Ângela Davis e Paulo Freire feitas por elas, tomando tacacá e conversando. Aproveitei pra entrevistar as duas, porque elas têm uma história com o veganismo que começou de uma maneira diferente de todas as outras pessoas que entrevistei aqui no blog até hoje. E porque elas disseram coisas que me tocaram profundamente e que eu levo pra vida e pra luta.
Podem se apresentar?
Larissa – Larissa Pontes, socióloga, um tanto artista das manualidades. Nortista meio manauara, meio belenense. Militante por um veganismo popular e integrante do coletivo VEM.
Maria – Maria Melo, paraense, artesã, vegana mãe de vegana.
Como vocês chegaram no veganismo?
Larissa – Eu sempre tive vontade de conhecer, pela questão animal. Eu já tinha alguma ideia a respeito, mas não sabia exatamente como fazer. Até que a minha mãe desenvolveu uma doença autoimune e começou a ter crises sérias. A primeira coisa que eu fiz pra tentar ajuda-la foi pesquisar sobre o impacto da alimentação na saúde. Parece estranho dizer que eu encontrei uma oportunidade pra me tornar vegana, mas foi a conjuntura perfeita pra eu chegar pra ela e dizer: “Olha mãe, eu acho que a gente pode unir uma coisa à outra. A gente consegue ter uma alimentação mais ética com os animais e ao mesmo tempo vai melhorar a tua situação de saúde.”
Maria – Eu fiz um exame de colonoscopia antes de fazer a transição pra vegetariana e ali foi detectado pólipos no meu intestino. Já estava num processo inflamatório bem alto. Algumas pessoas olham pra isso e falam: “Faz parte do processo de envelhecimento”. É verdade, mas você pode melhorar o seu processo de envelhecimento. Eu fiz o exame alguns anos depois de ter me tornado vegana e não apareceu mais nenhum pólipo. Tenho certeza que a mudança na alimentação contribuiu com isso. Tem zero chance de voltar? Não sei, só sei que por enquanto está tudo na paz.
Larissa – A gente tirou primeiro a carne, depois carne de frango e por último fizemos a despedida do peixe. A gente já estava sem comer peixe há um tempo quando fomos passar o fim do ano na praia, em Salinas. Aí vimos um pescador e a mãe disse: “Ai, eu queria tanto comer peixe!”. Ela foi buscar o peixe lá, junto com o pescador, mas eu já não consegui comer. Ela comeu e depois disse: “É, pra mim também não dá mais. Tá diferente.”
Diferente como?
Maria – Foi como se eu tivesse comendo uma coisa que não fosse comida. Não era mais comida. E olha que o bichinho tinha sido pescado ali, estava fresquinho, não era da indústria, não era congelado, era do pescador que morava ali na beira da praia. Imaginei que ia me dar um prazerzão. E foi três vezes pior quando tentei comer ovo novamente.
Larissa: Por que ovo é o que? É pitiú.
(Aprendi essa palavra maravilhosa quando estive em Belém. “Pitiú” é, pra paraense, o que “catinga” é pra norte-rio-grandense: fedor, mal-cheiro.)
Maria – No início do veganismo eu tinha umas preocupações, achava que podia não estar me nutrindo bem. Então decidi comer um pouco de ovo. A gente tem amigos que tem sítio, tem ovos de galinha ‘feliz’. O ovo veio pra mesa, ovo caipira… Tentei comer e não deu certo mais, não teve condição. E não é porque tenho nojo, não.
Larissa – Aí eu falei pra ela : “É simples, vamos pro nutrólogo e vamos fazer exames com certa frequência.” No começo a gente fez exames de 6 em 6 meses, porque ela estava com medo de ter alguma carência. Depois de um tempo a gente passou a fazer exames uma vez por ano. Todos os médicos olhavam os resultados dos exames e perguntavam se a gente realmente não estava comendo carne. Não conseguiam acreditar que era possível.
Maria – A gente está mostrando que é possível. A gente faz reposição de B12, claro, e reposição de vitamina D, mas eu vejo que todo mundo, incluindo o povo que come carne, faz reposição também.
Larissa – Às vezes eu fico pensando… Se a gente teve que enriquecer a farinha de trigo com ferro e ácidofólico, por que não pode ter uma farinha, um alimento, enriquecido com B12?
(Quando a farinha de trigo passou a ser enriquecida com ácido fólico, não foi visando a população vegetariana/vegana, foi pra atender as necessidades das pessoas que comem carne, mas não comem vegetais suficiente. E vale lembrar que o sal é enriquecido em iodo.)
O que é veganismo pra vocês?
Maria – Eu não vou negar que no início não foi a questão animal que me fez abraçar o veganismo, apesar deu amar os animais. Foi uma questão de saúde. Eu estava num estado de sofrimento muito grande, por causa da doença autoimune, estava inchada e tendo que começar tratamentos mais agressivos. Fui pra uma consulta médica e naquele dia o meu médico estava muito triste porque tinha perdido uma paciente muito jovem por causa de um problema hepático, consequência do uso de corticoide. O corticoide detonou o fígado e o pâncreas dela. Aí eu fiquei olhando aquilo e falei: “Eu não quero isso pra mim”. Eu sei que um dia vou morrer, como todo mundo, mas até lá vou me esforçar pra viver. E pra viver bem. Então o veganismo foi uma porta, apresentada pela minha filha, que se abriu pra mim e me deu a possiblidade de estar aqui hoje, me sentindo bem, ao invés de estar deitada numa cama, com dor, inchada.
Larissa – Pra mim o veganismo é algo plural. É uma maneira de imaginar um horizonte diferente, onde os animais não são mais vistos como inferiores, nem como mercadoria. É ampliar a nossa visão e entender que a gente partilha esse planeta com outros seres vivos, além dos humanos. É solidariedade. E aí eu fui descobrindo mais coisas no caminho, fui aprofundando a minha consciência. E abriram-se muitas possibilidades de encontrar companheiros de luta, amigos. E eu pude ver a saúde da minha mãe melhorar. Então pra mim, o veganismo representa certas coisas muito pessoais e outras mais amplas.
Veganismo é a vontade de transformar o mundo pra melhor. Porque está insustentável! E ninguém se responsabiliza por isso! Se está insustentável, a gente precisa construir algo sustentável, um lugar onde não só humanos possam viver. Pode ser que a gente não veja tudo se acabando durante a nossa vida, mas tem muita gente por vir. Então veganismo também é solidariedade com as gerações que virão.
Pique-nique do coletivo VEM
É difícil ser vegana?
Maria – É maravilhoso alguém chegar pra você, com todo o carinho, fazer uma proposta de qualidade de vida melhor e você ter força pra abraçar. Não estou dizendo que é fácil fazer mudanças na sua alimentação depois de décadas com aquela rotina (com produtos animais). Mas é gostoso também! Você descobre que o que parecia ser um sacrifício passou a ser um prazer, uma satisfação. Você tem N possibilidades alimentares com aqueles ingredientes que antes eram olhados como enfeites no prato.
A manutenção do meu veganismo se dá por vários caminhos. Pela saúde, sim, mas também pelo caminho da delícia. A gente tem uma comida muito gostosa! Eu não sinto falta de nada parecido com carne, nada que lembre carne, nada com formato daquilo… Eu gosto das nossas comidas, gosto da beleza delas, do colorido. As pessoas tem uma ideia muito equivocada do que é a alimentação vegana. Você tem que interagir com o alimento: ele conversa com você e você conversa com ele. Quanto mais tempero natural você colocar, mais gostosa vai ficar a sua comida. Se você cozinhar só no vapor e não colocar um azeite, um salzinho, você vai olhar aquela batata e não vai dar vontade de comer.
(Eu disse que a mesma coisa era válida sobre a culinária carnista. Pegar um pedaço de músculo de vaca ou um frango e cozinhar na água, sem tempero, não va ser gostoso. Maria respondeu que a galera do churrasco sempre vem com o argumento de que se for carne, “passou sal, botou na brasa, tá bom!” Aí Larissa lembrou que isso também é verdade no caso de vegetais. Afinal é o calor intenso e o defumado do fogo que conferem aquele sabor característico e tão apreciado. E concluiu dizendo: “Não precisa fazer nada pra uma fruta ficar gostosa. Você pega uma manga e ela é perfeita. Nossa comida já vem pronta.”)
Junto com o veganismo a gente fez uma transição muito bacana que foi abrir mão, no máximo possível, do industrializado, do ultraprocessado. Não somos as veganas que compram não sei que produto ultraprocessado do futuro, do passado ou do presente, sei lá como é que chama esse negócio. Nem vamos usar glutamato monossódico como tempero. Tem sabores maravilhosos nas nossas folhas, nos nossos limões, tem vinagre de maçã, tem tanta coisa boa pra temperar a comida! Também tento comprar do pequeno produtor, do pequeno fabricante, daquela pessoa que está se esforçando pra sustentar a família. Lara tem uns amigos que fazem linguiça artesanal e é tudo de bom. A família toda é vegana.
Larissa – Essa coisa da dificuldade, eu vejo assim. Antes de se tornar vegana a gente estava nadando no sentido da corrente, estava ali com todo mundo, fazendo a mesma coisa. Aí a gente se torna vegana e a sensação que dá é que a gente passa a nadar ao contrário. Porque tudo vem contra a nossa decisão. Vão aparecer muitas dificuldades sociais e as pessoas vão dizer que tu não come nada. Mas, eu como, sim! Posso inclusive compartilhar a minha comida. Mas tem essas dificuldades no comecinho.
Mas por que eu sou vegana? Tem gente que acha que não é importante ser vegana porque uma pessoa sozinha não faz diferença. Mas eu sei que eu não sou só uma. Eu quero que a pessoa que está pensando em ser vegana e acha que está sozinha olhe pro coletivo, pra essa ruma de gente que está se juntando, e diga “eu também não sou só uma”. O veganismo é um boicote, mas ao mesmo tempo a gente está dizendo pro mundo que dá pra viver de outra maneira. Acho que é uma ferramenta de reeducação. Quando a gente vive de outra maneira, a gente está dizendo: “Olha aqui, é possível!” Mas vivo isso com zero sentimento de superioridade. Não penso: “Nossa, como eu sou evoluída!”. Sou só o exemplo de uma coisa diferente, e as pessoas ao meu redor podem ver isso e se interessar. É assim que mudanças acontecem. É assim que a gente vai construindo coisas melhores.
Como é que a gente destrói o especismo?
Maria – Um dia eu escutei uma fala do pastor Ricardo que fez muito sentido pra mim. Ele disse: “O mal é extremamente audacioso e o bem é tímido.” Então eu acho que o caminho pra combater o especismo é esse: ser audacioso. A gente tem que ser audacioso e se juntar com quem é audacioso pra formar uma audácia maior ainda!
Quando a gente chega em algum lugar e as pessoas reagem de maneira negativa ao nosso veganismo, quando dizem: “Você não come nada!”, eu respondo: “Eu como, sim, você que não tem pra me oferecer. Se você me convidou, deveria ter se preparado melhor porque uma boa anfitriã recebe bem um e outro.” A gente tem que ser mais afrontosa e mostrar que estamos aqui pra ficar. Às vezes ouço comentários como: “Ah, você pode ser vegana porque tem condição, porque pode escolher.” Justamente! Aí falam: “Mas e se você estiver na floresta, no meio do mato?” Aí é que eu vou me dar bem! “E se estiver com uma vaca, no meio de uma ilha deserta?” Quais são as chances deu ir parar numa ilha deserta com uma galinha ou com uma vaca? Tem quem diga: “Não vou falar (sobre veganismo) porque não quero deixar as pessoas desconfortáveis.” Eu quero! Quero incomodar, quero desajustar a situação!
Larissa – Se a gente quer romper com esse sistema especista, se a gente quer romper com o capitalismo, não vai ser sem audácia.
Maria – Então eu acho que é dessa forma que a gente vai colaborar pra destruir o especismo. Precisamos nos juntar com quem pensa assim e formar esse grande bom combate.
Larissa – É um trabalho de formiguinha. A gente destrói o especismo aos poucos, mas ao mesmo tempo sem cessar, sem desistir. Convencendo mais pessoas de que o nosso sistema de produção é insustentável. Que a maneira como nos relacionamos com a natureza, e com os seres que partilham o mundo com a gente, é insustentável. A gente tem que buscar possibilidades pra fazer crescer o veganismo. Tem uma oportunidade na educação? Surgiu uma oportunidade ali, numa política pública? Quando a gente vê, de repente, o debate antiespecista não é mais invisível, não existe apenas dentro do nosso grupo. Se torna um rio, correndo pra todos os lados.
Como falar da luta antiespecista com a esquerda?
Larissa – Essa é uma das perguntas mais difíceis. A gente tem um grande amigo de esquerda, super politizado, que trabalha na base, viajando esse estado todinho politizando as pessoas, mas que se recusa firmemente a aceitar a importância do veganismo. E ele tem problemas de saúde, uma mudança de alimentação faria tanto bem pra ele. Ele come a nossa comida e gosta, mas sempre faz piadas depois. Hoje a gente já não responde mais, pra não perder a amizade. Mas é uma situação muito difícil.
Maria – Tem duas situações bastante mal resolvidas na minha cabeça e ainda não encontrei respostas pra elas. A primeira é a questão dos grupos de pessoas com doenças autoimunes dos quais faço parte. Elas não se interessam em aprender sobre alimentação vegana. Tem gente que posta todo tipo de tratamento irresponsável. Já me perguntaram por que não conto a minha história nas redes, mas não sei… As pessoas que consomem corticoides, por causa dessas doenças, acham que tomando esses remédios podem comer carne e vai ficar tudo bem. Não é verdade. Eu estava tomando uma carga pesada de corticoides antes de me tornar vegana e um dia comi um filé e tive uma crise séria, inchei muito. E que pensamento é esse, né? Preferir se encher de corticoide do que parar de comer carne. Não faz sentido.
E a outra situação difícil que eu vivo é dentro dos grupos de prática da solidariedade, que distribuem refeições pra pessoas em situação de rua e famílias carentes. Todo mês a gente faz uma lista com os alimentos necessários pra preparar as refeições e sempre pedem muita linguiça, charque, salsicha, muito embutido. Eu falei: “Trocando essas carnes por legumes a gente consegue oferecer duas refeições por semana, ao invés de uma, com o mesmo valor que gastamos por mês. E ainda melhoraria a qualidade das refeições.” Me responderam que as pessoas iriam estranhar uma comida sem carne, que pensariam: “Eles comem carne, mas não querem nos dar.” Eu fico sem saber o que fazer. O dinheiro ia render mais, alimentar mais pessoas e alimentar melhor…
Larissa – A maneira como eu costumo falar sobre veganismo pra pessoas de esquerda é tentar mostrar que as opressões não ficam pedindo licença uma pra outra pra oprimir. “Ei, agora eu vou oprimir esse grupo aqui, então tu para. Fica quieta no teu canto que agora é a minha vez de oprimir! Vai pro final da fila e espera!” As opressões agem todas ao mesmo tempo. Elas estão batendo junto na gente há muito tempo, então como é que a gente vai bater de volta separado? Nunca encontrei alguém que conseguisse argumentar a favor desse ideia de deixar uma luta pra depois, enquanto focalizamos nas outras, então logo a pessoa leva pro individual e diz: “Mas é difícil ser vegana!” Ou então solta o token do indígena que caça. Eles caçam, certo, mas não são os indígenas que estão causando a ruptura na natureza. Nosso inimigo é outro.
Depois da entrevista fomos tomar o tacacá preparado por elas. Eu estava saltitante com a oportunidade de degustar algo tão emblemático da culinária paraense, mas não sabia bem o que esperar desse prato. Que negócio bom! Tacacá geralmente é servido com camarão, mas não faz falta. Larissa e Maria, além de pessoas lindas, são ótimas cozinheiras e saí da casa delas com vontade de voltar muitas vezes. Ser vizinha delas se tornou um dos meus objetivos na vida. Quero ser amiga, claro, mas amiga E vizinha. Quero essas duas do meu lado na luta, e na mesa. Como decidi visitar Belém novamente no ano que vem, dias atrás mandei uma mensagem pra Larissa dizendo: “Pode ir esquentando o tacacá que eu tô chegando!”. E ela respondeu: “Vou esquentando o tacacá e guardando muruci pra gente fazer nosso queijo.” Porque Larissa e eu temos um projeto de queijo verdadeiramente decolonial que vai ser sucesso. Aguardem.
Sei que a última receita que postei nesse blog foi uma torta, mas essa aqui não tem nada a ver com aquela lá. E, sendo bem sincera, a verdadeira receita é a cebola caramelizada. Ela dá uma torta saborosa e elegante? Sim, mas se quiser fazer só a cebola e usar como condimento ou pasta pra comer com pão, tens todo o meu apoio. Mais que apoio, incentivo! Tanto que vou parar esse texto por aqui pra você ir direto à receita.
Torta de cebola caramelizada com vinagre e figo (ou passas)
Você pode usar essa cebola caramelizada pra uma infinidade de coisas. Pra rechear uma torta salgada, como fiz aqui (use essa massa ou a que preferir). Como parte de um sanduíche ou pizza. Pra rechear uma empada ou pastel de forno. Ou simplesmente pra passar no pão (como um chutney). Se você tiver a sorte de ter queijo de castanha de caju por perto, os dois casam lindamente. Vou dar as medidas pra fazer recheio suficiente pra uma torta, mas use como um guia pra te dar uma ideia das proporções e adapte pra quantidade que você quiser fazer.
4-5 cebolas médias (brancas)
3 figos desidratados (ou um punhadinho de uva-passa)
3 colheres de sopa de azeite
1 colher de sopa de vinagre balsâmico (se não tiver, use de vinho)
Um punhadinho de alecrim fresco (ou uma pitada generosa de alecrim seco)
Sal e pimenta preta
Pra massa:
1 caneca de farinha de trigo (200g)
5 colheres de sopa de azeite
6 colheres de sopa de água (leite de soja – sem açúcar- deixa a massa ainda melhor)
Sal
Corte as cebolas ao meio, depois corte cada metade em fatias. Aqueça o azeite em uma panela média e de fundo espesso. Cozinhe a cebola em fogo médio (coberta) até começar a dourar, depois baixe o fogo e cozinhe, sempre coberto, até a cebola começar a caramelizar. Mexa de vez em quando, usando uma colher de pau, pra que tudo cozinhe de maneira uniforme. O açúcar natural das cebolas vai ser liberado aos poucos, fazendo com que elas fiquem macias, doces e escureçam um pouco. Seja paciente: o processo de caramelização vai levar de meia hora a 40 minutos e quanto mais baixo o fogo, melhor (assim a caramelização vai acontecer sem que algumas cebolas queimem no processo). Junte o vinagre (a acidez é importante pra quebrar o doce e realçar o sabor aqui) e os figos secos picados (ou as passas) e deixe cozinhar até o vinagre evaporar. As cebolas estão prontas quando estiverem como na foto abaixo (essa é a torta antes de ir pro forno. As cebolas vão terminar o bronze lá dentro). Desligue o fogo, acrescente o alecrim e tempere com sal e pimenta preta.
Enquanto as cebolas cozinham, prepare a massa. Misture todos os ingredientes com as mãos, até formar uma bola coesa e elástica. Obs: dá pra inverter as proporções de azeite e água (ou leite de soja) pra deixar a massa mais amanteigada e menos elástica. Questão de preferência pessoa. Deixe descansar alguns minutos (fica mais fácil abrir a massa quando ela está relaxada) antes de espalhar numa forma (ou placa). Quando lembro, cubro a forma com um pedaço de papel manteiga (sai mais fácil depois) e abro a massa com as mão, mesmo, mas nada te impede de usar um rolo. A massa deve ficar fina pra assar direitinho (medi aqui em casa: ela tem que ficar com 26 cm de diâmetro – o tamanho do fundo de uma forma de quiche aqui- pra ficar na espessura ideal).
Espalhe as cebolas caramelizadas sobre a massa, deixando um dedo de borda descoberta, e leve ao forno médio (180 graus), pré-aquecido ou não (às vezes esqueço de pré-aquecer e dá certo do mesmo jeito). Quando as bordas estiverem bem douradas (como na foto abaixo), tá pronta. Deixe esfriar um pouco antes de servir. Rende 4 pedaços/porções.
Dicas:
-Coloque umas azeitonas pretas na sua torta, depois que sair do forno, pra deixá-la ainda mais especial. Azeitonas pretas e uma pitada de algas em flocos (ou uma folha de nori picada), então, e vira comida de festa.
-Se gostar de mostarda de Dijon, espalhe uma fina camada na massa crua, antes de colocar as cebolas.
-Como eu disse, essas cebolas são uma delícia só com pão, então se quiser fazer só o recheio, vá em frente. Guarde em um pote de vidro com tampa e coloque na geladeira. Dura vários dias.
Versão com azeitonas pretas (eu tava distraída e deu uma queimada, ops)
Há anos eu procurava uma receita de torta salgada que reunisse todos os critérios que fazem, na minha opinião, uma boa torta salgada. Não gosto de tortas que são secas ou com muita farinha de trigo (as “pizzas de liquidificador” da minha infância eram assim). Queria uma torta suculenta e com muito mais legume do que farinha, mas que ao mesmo tempo pudesse ser cortada em pedacinhos bonitos e servida em ocasiões festivas (ou como tira gosto no meu boteco imaginário).
Tive o prazer de provar algumas tortas assim feitas por duas mulheres veganas do meu Nordeste (um cheiro pra Natália, de Fortaleza, e outro pra Bia, de Salvador). Mas quem disse que eu tenho a receita delas? Natália até me deu, anos atrás, a receita da torta com lentilhas que ela faz, mas eu perdi. E quando pedi a receita de Bia, ela respondeu que tinha feito no olhômetro, com o que tinha achado na cozinha naquele dia. Então tive que inventar minha própria receita.
Mas preciso dizer que não iniciei essa empreitada sozinha. Parti da receita de torta de legumes de Ruan Félix (cheiro, Ruan!), que ele publicou no blog de dona Juliana Gomes (cheiro, Ju!). Eu não tinha todos os ingredientes da receita de Ruan, mas ela foi fundamental pra me ensinar o pulo do gato em matéria de torta de legumes suculentas sem usar ingredientes de origem animal: batata cozida. É a bruxaria que faz a beleza dessa receita. E, como ele explica, essas tortas em versão animal geralmente levam ovos, óleo/manteiga e queijo, então são bem gordurosas. Por isso a versão vegetal pode (e deve) caprichar na dose de gordura (ele usa uma maionese caseira, eu uso azeite, mas já usei pesto também). Meus testes também me mostraram que a abobrinha é mais que um “legume” na “torta de legumes”, ela garante a textura úmida que eu procurava.
Foram muitos testes pra entender quais ingredientes são essenciais,e quais são enfeites, e chegar nas proporções ideias. Percebi, por exemplo, que pra chegar na textura suculenta que eu queria, o fermento era desnecessário. Fiz uma versão com farinha de grão de bico e outra com lentilha, mas tenho planos de fazer outra receita-base usando leguminosas. Eu queria que essa receita aqui fosse o mais simples possível, com ingredientes acessíveis pro maior número de pessoas. E também que se mantivesse próxima das tortas de legumes mais tradicionais, embora eu ache que a minha versão é ainda melhor.
Como precisei fazer quase uma dezena de testes antes de chegar na receita abaixo, pude compartilhar essa torta com várias pessoas e posso afirmar que o sucesso é garantido. E repare como essa torta é linda! Vão perguntar se tem queijo, por causa da maneira como ela fica douradinha por cima e do sabor maravilhoso (obra, em partes, da dose caprichada de gordura ). Responda que ela tem algo muito melhor: amor por todos os viventes e valorização dos vegetais.
Torta salgada de legumes
Essa é mais uma fórmula que pode ser usada pra criar várias tortas diferentes, dependendo do “legume saborizante” que você utilizar. A abobrinha da base é importante pra atingir a textura desejada, então ela não pode ser substituída aqui. Se estiver usando um legume de sabor forte no tempero (como azeitona ou tomate seco), aconselho usar apenas 1/2 medida dele e completar com algo de sabor mais suave. Cenoura ralada fica perfeito aqui e ajuda a baratear a receita (nesse caso ficaria 1/2 medida de tomate seco ou azeitona e 1/2 medida de cenoura ralada). Pra fazer uma torta pequena uso uma caneca como medida. Você pode dobrar a receita (mantendo a caneca como medida) pra fazer uma torta maior. Minha receita foi inspirada em grande parte pela receita de torta de legumes de Ruan Félix.
Base (1 medida = 1 copo ou 1 xícara ou 1 caneca):
1 medida de batata cozida e amassada
1 medida de abobrinha ralada com casca (aperte bem na hora de medir)
1 medida de farinha de trigo (branca ou integral)
1/4 medida de óleo
Sal e pimenta preta a gosto
Temperos
1 medida de um legume “saborizante” (tomate seco, palmito, azeitona, milho verde, ervilha, coração de alcachofra, cogumelo, cenoura ralada… pode ser uma mistura de mais de um)
Alho e/ou cebola a gosto (opcional)
Ervas secas ou frescas
Um pouquinho de suco de limão (opcional, mas eu gosto porque a acidez realça o sabor de tudo)
Misture tudo com uma colher de pau ou espátula. Prove e corrija o sal, se necessário. (Se estiver usando alho e cebola, pique esses ingredientes e refogue em um pouco de óleo por alguns minutos antes de acrescentar à massa.) A massa vai parecer seca e você vai se perguntar se não era pra acrescentar algo líquido ali. Confie, vai dar certo. Mas ATENÇÃO: se os ingredientes que você estiver usando pra dar sabor à torta (“legumes saborizantes”) forem bem secos (milho verde e ervilha, por exemplo), ou seja, não tiverem a umidade de uma cenoura ralada ou de corações de alcachofra, use um pouco menos de farinha (3/4 de medida, ao invés de 1 medida cheia) ou um pouco mais de abobrinha ralada pra equilibrar a massa.
Despeje a massa em uma forma untada com um pouco de óleo (não precisa enfarinhar), espalhe com as costas de uma colher e leve ao forno médio (não precisa pre-aquecer) até ficar bem dourado e levemente firme quando você apertar com o dedo. O ideal é que essa torta não fique muito espessa, então escolha uma forma onde caiba tudo em uma camada não muito alta. O tempo de cozimento vai depender do tamanho da sua forma, então fique de olho e não tenha medo de abrir a porta do forno pra checar regularmente e, nesse caso, é melhor assar demais (vai ficar ligeiramente crocante nas bordas) do que de menos.
Importante: deixe esfriar completamente antes de cortar e servir. Se ela ainda estiver morna na hora de cortar, o interior estará cremoso demais e vai ser purê de torta pra todos os lados. Somente depois de totalmente fria é que dá pra cortar pedaços perfeitos.
O que usei na torta da foto, que é grande (8 pedaços bons):
(Base) 2 canecas de batata amassada (4 batatas médias) + 2 canecas de abobrinha ralada (2 abobrinhas médias, apertei bastante pra entrar tudo na caneca) + 2 canecas de farinha de trigo semi-integral + 1/2 caneca de azeite (Temperos) 1 caneca de cenoura ralada (1 cenoura grande) + 1 caneca de ervilha cozida (compro congelada) + alho poró refogado (aproximadamente 1/2 caneca) + alho desidratado (porque estava com preguiça de descascar alho fresco) + um punhadinho de ervas secas (tomilho/manjericão/orégano) + sal e pimenta do reino + suco de limão.
Dicas:
-Tomate seco fica uma delícia aqui, mas se estiver usando tomates conservados no óleo, reduza um pouquinho a quantidade de óleo da receita. Eu não fiz isso e minha torta de tomate seco ficou bem gordurosa (saborosa, mas gordurosa – e ninguém reclamou dos dedos lambuzados de óleo).
-Se tiver pesto na geladeira, use no lugar do óleo. Fiz isso uma vez e ficou sublime, embora a torta fique verde, o que pode causar estranheza em algumas comedoras que torcem o nariz pra verduras.
-Sinta-se à vontade pra temperar sua torta como quiser. Uso páprica doce defumada e fica ótimo. E imagino que uma versão com curry e coentro fique supimpa também.
Esse causo aconteceu muitas luas atrás, numa das primeiras visitas que fiz à minha família, que mora no Sertão do RN, depois de ter me tornado vegana. A tia que me hospedou estava aflita: “O que vou fazer pra você almoçar agora?” Expliquei que ela poderia fazer o que fazia sempre pro almoço, eu só não comeria o animal. Minha tia achava que tinha que fazer algo diferente, já que agora eu tinha um “regime” diferente e eu insisti que, por morar fora do Brasil, o que mais me deixaria feliz era comer a comida da nossa terra, da qual sou privada na maior parte do tempo. Ela se pôs a cozinhar, mas não parecia convencida de que seria capaz de me alimentar. Quando sentei na mesa pra almoçar meus olhos viram um banquete. Além do feijão (Macaça -ou “feijão de corda”-, o mais cultivado no Sertão) com arroz, tinha jerimum, batata-doce, salada crua, suco… Enchi meu prato, que estava lindo e colorido, mas antes de dar a primeira garfada minha tia se aproximou de mim e, olhando pra comida que eu estava segurando, soltou essas palavras: “Minha fia não achou nada pra comer, não foi?”
Ela estava segurando um prato praticamente idêntico ao meu, com uma única diferença: o dela tinha um pedaço de frango. Mas só o prato dela estava cheio. O meu, aos olhos dela, estava vazio. A comida que veio da terra, plantada por gente dali (com exceção do arroz, aqueles vegetais tinham sido cultivados na própria cidade), parecia não existir pra ela. A única “comida” era aquele pedaço de animal, comprado no mercadinho da esquina (criado confinado em algum galpão, morto, despedaçado e embalado não sabemos aonde).
Contei essa história várias vezes nas palestras que dei Brasil afora porque ela ilustra perfeitamente os fenômenos de desvalorização do alimento da terra (vegetal) e de colonização da nossa alimentação. E quando o alimento vegetal é desvalorizado, a pessoa que o produz também é desvalorizada. Esse processo também faz com que a própria terra perca valor, já que os alimentos que ela produz não são mais vistos como alimentos nobres. Ao mesmo tempo, a supervalorização da carne animal na alimentação, ou produtos derivados de animais, significa que na nossa sociedade, o pecuarista tem muito mais poder e prestígio que a agricultora. E dar mais poder pra pecuária vem com consequências terríveis: mais latifúndio, monocultura, grilagem, conflitos no campo, roubo de terras indígenas, desmatamento, queimadas, exploração animal, exploração de trabalhadoras e trabalhadores em abatedouros e frigoríficos, zoonoses…
Mas eu abri esse texto contando sobre o almoço na casa da minha tia porque há tempos venho ruminando algo e essa história também fala sobre isso. Quando se trata de comida, o que consideramos “fartura”? Essa pergunta se instalou na minha cabeça uns anos atrás, quando eu estava em Natal, visitando a família. Senta que lá vem mais história.
Quando estou em Natal uma das minhas tarefas na casa da minha mãe é fazer a feira da semana. Vamos no CECAFES (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária) de Natal e conseguimos comprar diretamente de alguns produtores/produtoras rurais. Tem até gente de assentamento da reforma agrária e a oferta de vegetais é maravilhosa. Quando volto da feira e coloco tudo na mesa pra lavar/guardar, sempre sinto um prazer imenso. Quanta fartura! Quanta vida! Quanta delícia! Saber quem plantou e colheu aquilo ali só aumenta a minha alegria.
Fartura pra mim é ver a fruteira cheia de frutas. É abrir o freezer e ver ele cheio de pacotinhos de coco ralado, pronto pra virar leite, e de polpa de jaca e graviola (cortadas e embaladas por mim), prontas pra virar vitamina. E uma ruma de macaxeira descascada, pronta pra ser cozinhada. É ter uma vasilha enorme cheia de hortaliças na geladeira. É ter sempre um quilo de goma na água, pra fazer as tapiocas mais fresquinhas e saborosas. É ter pratos coloridos a cada almoço, com verduras cruas e cozidas, mais uma fruta. É abrir a geladeira e ter pasta de feijão com amendoim e leite de coco fresco. É sentar pra tomar café da manhã e ter vários recheios pra minha tapioca (pasta de feijão, restos de legumes ensopados do almoço), leite de coco pronto pra colocar no meu cuscuz e no meu café e mamão docinho. É poder escolher preparar macaxeira, batata-doce ou cará pro jantar. É comer banana-da-terra cozida no café num dia, tapioca no outro e cuscuz no outro, variando sempre os prazeres. É ter pinha e manga maduras pra lanchar. Mas nem todo mundo na minha família pensa assim.
Um dia estávamos eu e minha irmã caçula, que também é vegana, nos maravilhando diante da fruteira cheia de frutas e da geladeira cheia de verduras, enquanto lanchávamos tapioca. Nesse momento uma das nossas sobrinhas chegou da casa do namorado. Ela abriu a geladeira e fechou quase imediatamente com irritação. Depois fez uma declaração que me lembrou a tia do Sertão e seu comentário sobre o suposto vazio no meu prato lotado de comida vegetal: “Não tem nada pra lanchar aqui!” Olhei surpresa pra minha irmã, que também não estava acreditando no que tinha ouvido. Como assim não tinha nada pra lanchar? Olha nós ali lanchando! “Tem tapioca, tem frutas, tem leite de coco feito…” Mas antes que pudéssemos terminar a lista das delícias que estavam ao alcance da mão, e da boca, dela naquele momento, ela falou: “Por isso que eu gosto de comer na casa do meu namorado. Lá tem muita fartura. Sempre tem iogurte e presunto na geladeira, sempre tem leite condensado e biscoito recheado no armário.” Nesse momento nossa surpresa se tornou indignação. O problema era outro. Mais uma vez, alguém estava me dizendo que comida da terra não era alimento. Comida, mesmo, a que conta, a que tem valor, a que é gostosa, é o que vem dos animais. E dessa vez, como se travava de uma pessoa jovem e que cresceu na cidade, tinha um elemento a mais: comida é o que vem dos animais e é ultraprocessado pela indústria.
Quando entrevistei Michelle, em Belém, ela falou em como também percebeu que pessoas com práticas especistas (que vêem animais e seus derivados como comida, patrocinando e perpetuando, assim, a exploração animal) muitas vezes têm dificuldade em ver uma fruta ou um punhado de castanha do Pará como um lanche. Concordo com ela que uma das principais missões do veganismo é colocar o vegetal de volta no centro da mesa. E eu iria mais longe. Talvez a maior tarefa do veganismo (não do antiespecismo!*) seja redefinir a noção de fartura. (*A tarefa do antiespecismo é libertar os animais. Emancipação animal é o nosso horizonte.)
A gente sabe que, no Brasil, em um hectare se cria um boi ( 0,97 boi por hectare, pra ser precisa – fonte: Censo Agropecuário de 2017, feito pelo IBGE). Esse boi vai ser abatido em 3 anos e vai “produzir”, em média, 250 kg de carne (248,1kg é o peso médio da carcassa, de acordo com o Beef Report de 2022, feito pela Abiec – Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne).
Nesse mesmo hectare a gente pode plantar comida, no sistema agroflorestal, e colher 50 toneladas de vegetais por ano. Eu tive a oportunidade de visitar alguns assentamentos da reforma agrária onde as assentadas cultivavam a terra com práticas de agroecologia e agrofloresta e pude ver a imensa abundância de vegetais que crescia em espaços onde só poderíamos colocar uma ou duas vacas. É uma fartura de biodiversidade!
Precisamos redefinir nosso conceito de “terra improdutiva” pra incluir pasto. E precisamos redefinir o nosso conceito de “fartura”. Eu sempre digo que o prato é uma janela pro campo. Sabe o que acontece quando você só consegue ler como “comida” um pedaço de animal, ou um produto feito com o que sai do corpo de animais, muitas vezes ultraprocessado? A monotonia no prato reflete a monocultura do campo (de soja) e a falta de biodiversidade do pasto. É uma imensidão de terra (latifúndio) na mão de poucos e uma imensidão de animais se tornando pouca comida e deixando a terra arrasada. De todos os ângulos que você olhar, é o extremo oposto de fartura. A única abundância aqui é o lucro dos ruralistas e do agro em geral, ganhado em cima da destruição das florestas e das reservas de água, do genocídio indígena, da saúde da terra e das pessoas e da exploração animal.
“Fartura” é vegetal no prato, agroecologia no campo e floresta de pé. Pra isso precisamos de reforma agrária popular, claro. Está no programa de luta do veganismo popular. Mas tem algo que é ainda mais urgente e pode ser feito por todo mundo, nesse exato momento: valorizar a comida que vem da terra.
Feijão macaça, jerimum de leite, pirão de maxixe, banana, salada de alface e tomate, macaxeira e batata-doce cozidas
A foto acima foi feita na casa da mesma tia, no Sertão, meses atrás. Quando cheguei pra visitá-la dessa vez, ela me recebeu com uma bacia de maxixe, que tinha pedido pro marido colher na roça do irmão. “Tem maxixe e coco pra você fazer aquele seu pirão”, ela falou animada. Meu pirão de maxixe é tão famoso na família que as primas vieram das outras casas pra degustá-lo com a gente.
Estava aqui pensando com meus botões quando me dei conta que hoje é primeiro de junho! Parece que quanto mais intensos os dias, mais rápido eles passam. Aí tive uma ideia: guardar num cantinho esses pequenos momentos de alegria que passam por nós e a gente esquece quase que instantaneamente. O cantinho, no caso, é esse blog. O mês de maio foi rico em emoções e atividades. Muita alegria, pontuada por alguns momentos intensos de tristeza. Ou seja, a vida sendo a vida. Vou reunir aqui os melhores momentos do mês e, quem sabe, começo uma tradição no blog.
O mês começou com uma viagem a outra cidade pra comprar composto pro lote que cultivamos coletivamente nos Jardins Operários (nós = nosso coletivo de solidariedade popular). Nesse lugar você pega a pá e enche os sacos de composto (100% vegetal) com o suor do próprio rosto. O carro é pesado na chegada e em seguida na saída, depois de colocar os sacos de composto dentro, e assim sabemos quantos quilos levamos pra casa (o composto é vendido na tonelada). Éramos três mulheres e em uma hora carregamos a van (emprestada) com 750 kg de composto. O funcionário do local ficou impressionado com a nossa força (ele tinha olhado pra nossa cara na chegada e nos julgou fraquinhas). Respondemos: “Normal, somos lésbicas” e deixamos ele lá sem entender. (Segundo a minha melhor amiga, somos “lésbicas de sítio”. Ela diz que é uma categoria real: a lésbica que tem força no muque, entende de motor de carro a encanamento de cozinha e te tira de qualquer sufoco.)
Comecei a plantar a horta que cultivo no quintal. Sim, sou lavradora de quintal e isso me deixa profundamente feliz. Acontece que no início de maio ainda chovia um pouco e as lesmas sempre invadiam tudo depois da chuva. Eu plantava à tarde, chovia à noite e na manhã seguinte eu encontrava meu brotinho devorado pelas lesmas. (À esquerda: girassol. À direita: tagete). Nesse ponto eu só estava plantando flores e deixei pra plantar os legumes mais tarde, quando as chuvas tivessem parado.
Enquanto isso eu ia protegendo minhas flores como dava, com garrafas PET e outros recipientes de plástico. Felizmente a maior parte sobreviveu.
Plantei dois pezinhos de morango na horta e a primeira rosa do ano desabrochou no jardim.
Pascu seguiu representando sua categoria com orgulho e dormindo em todas as minhas roupas lavadas. As danadinhas das lesmas conseguiram, não sei como, entrar dentro de casa e comer meus brotinhos de couve. Acordei um dia e flagrei essa sapeca com a boquinha cheia de couve (juro!). Eu passei um sermão nela e a coloquei de volta no jardim, explicando que ela podia comer aquilo tudo ali.
Anne foi pra Palestina no início do mês e só volta em junho. Pela primeira vez pude desfrutar da casa só pra mim. Quer dizer, pra mim, Pascu e Satã, os gatos que moram com a gente (na primeira foto Pascu está dormindo no sofá-almofada, Satã está dormindo na poltrona). Faço parte do grupo de pessoas que adora morar sozinha e que curte momentos de solidão, então foi uma delícia. Também faço parte de um outro grupo, o grupo de pessoas casadas que acha que o segredo de uma relação duradoura é ter muitos momentos longe da esposa. Adoro. Aproveitei o tempo extra esse mês pra começar (finalmente!!!) a escrever o manifesto antiespecista que venho prometendo há anos (sim, na foto o computador está com o whatsapp aberto, mas juro que sentei a bunda nessa cadeira e trabalhei assiduamente no manifesto).
A luta pra salvar os Jardins Operários de Aubervilliers da destruição continua (contei tudo no podcast “Jardins da Comuna” e se você ainda não ouviu, corre lá) e dia 8 de maio fizemos a “Festa dos Jardins em Luta”. Nosso coletivo de solidariedade popular (BSP = Brigadas de Solidariedade Popular) tem uma cozinha solidária (que em Francês chamamos de “cantina solidária”) desde o ano passado e fomos nós que cozinhamos toda a comida pra festa, que reuniu cerca de 200 pessoas. Nossa cozinha é 100% vegetal e fui eu mesma que escrevi a mensagem acima (“Em solidariedade política com os animais, nossa cantina é vegana”). Usamos legumes de descarte (é assim que nossa cozinha solidária funciona) e legumes dos lotes, compartilhados pelas próprias operárias e operários que cultivam ali. Foi lindo demais.
Como parte da programação da festa dos jardins, nosso coletivo propos uma oficina de horta em lasanha (técnica pra plantar em camadas, que aprendi com uma das mulheres incríveis que cultivam nos Jardins Operários), pra compartilhar o conhecimento com a galera. Várias pessoas do bairro vieram aprender com a gente e aproveitamos a mão de obra voluntária pra fazer as lasanhas do nosso lote.
Fiz panquecas “americanas” pra minha namorada e o sucesso foi tamanho que repetimos a receita mais duas vezes esse mês. Fiz essa receita gringa aqui, mas adaptada (troquei o “cream cheese” por iogurte de coco e deixei o sal de fora). Ela gosta de comer coisas doces no café da manhã e até eu, que não gosto, adorei essas panquecas. Tanto que um dia fiz só pra mim, pro lanche da tarde. Comi no jardim, lendo o melhor livro que li esse ano. Se chama “As impacientes”, da escritora feminista camaronesa Djaïli Amadou Amal).
A raiva que sinto quando vejo frutas do Brasil pra vender aqui… E algumas vêm de avião! (Certo, isso não faz parte dos melhores momentos de maio, mas eu não queria passar raiva sozinha.) Entenda a minha raiva lendo essa reportagem do Joio e o Trigo. E o melão, que está secando a água no meu estado?
Tem que cuidar muito do mental e do físico pra aguentar o tranco. Então esse mês voltei pra terapia (tinha interrompido no final do ano passado) e passei a praticar ioga com mais regularidade. Isso quando Pascu deixa, claro. Por que gatos adoram tapetes de ioga? Nunca saberemos. Outro grande momento de alegria do meu mês foi descobrir que só tem duas pessoas entre eu e Brigitte Vasallo. Uma grande amiga minha tá namorando um boy que é unha e cutícula da escritora. Ela é o maior crush da minha vida, então imagina aí a minha emoção.
Participei de uma conversa com Nanda e Efe, junto com Ellen, transmitida pela rádio do MST, durante a feira de reforma agrária em São Paulo. Não ficou gravada, porque é rádio, mas foi muito bacana. Fico feliz demais com essa aproximação com o MST. (Não sabe o que o MST tem a ver com veganismo? Descubra aqui)
Na parte doída-triste-alegre-bonita, passei muito tempo com a minha namorada, de quem estou me separando. Nossa relação durou dois anos e o fim está sendo um processo. É um momento de reflexão e de crescimento, mas com muito, muito amor. Um dia escrevo mais sobre isso. Cozinhei bastante pra ela esse mês e essa torta de cebola roxa com azeitona foi um dos pratos que apareceu na nossa mesa em maio. Enquanto navegamos sem bússola pelas águas do fim de um tipo de relação -e começo de outra-, alheios a tudo isso, os morangos crescem na horta.
E falando em horta, lá pelo dia 20 plantei todos os pés de tomate (14 variedades!), jerimum, couve, couve-flor, brócolis, beterraba… Felizmente as lesmas estão se contentando das folhas que coloco ao redor das mudas pra elas e tá tudo indo muito bem.
Na mesma semana plantamos os pés de tomate no nosso lote, nos Jardins Operários. Lá também plantamos abobrinha e berinjela. A gente se reveza, entre camaradas, pra aguar as mudas e pelo menos uma vez por semana nos encontramos lá pra cuidar da manutenção do lote. Queríamos um lote coletivo pra plantar comida pra nós, claro, mas também pra poder compartilhar a alegria de trabalhar a terra com as pessoas que participam das nossas atividades (migrantes em situação de rua, menores refugiados, famílias em situação de vulnerabilidade econômica). Está sendo incrível e olha que ainda nem deu tomate!
Pausa pra admirar as rosas que uma camarada de coletivo, e vizinha, me deu (do jardim dela). Porque queremos pão, mas queremos rosas também. Outra pausa pra admirar o fato de eu estar em processo de fazer as pazes com meu melasma. Tirei essa foto pra mandar pra uma prima, que também tem melasma (temos um grupo de apoio só com nós duas). Repare que estou com protetor solar com cor aqui, então sem essa camada aí as manchas são bem mais escuras. Mas estou aprendendo a aceitar que é isso, mesmo. Processos, processos. A vida é feita de processos. (Por favor, não me recomende tratamentos pra melasma. Eu já tentei vários e estou numa fase em que só quero me amar e ser feliz. Tire o seu ácido do caminho que eu quero passar com a minha pele de mulher de 41 anos que nem sempre se protegeu do sol. Tô bem, me acho top pra minha idade, beijo, tchau.)
Mais pro final do mês, quando a temperatura já tinha aumentado o suficiente, plantei as mudinhas de berinjelas palestinas que minha amiga Draguitsa me mandou de presente (ela mandou as sementes). É uma semente crioula, selecionada pra suportar o calor da Palestina, então não sei se ela vai gostar de crescer na Europa. Estou torcendo que sim. A segunda rosa do meu jardim se abriu e à partir daí foram rosas e mais rosas todos os dias. A primeira coisa que faço quando acordo é ir até a roseira e cheirar uma rosa. Recomendo.
Segui trabalhando no manifesto, com a ajuda de Satã. E colhi minhas primeiras ervilhas tortas (na verdade a primeira colheita da horta esse ano). Elas foram plantadas no final do ano passado, junto com as favas.
Outro grande momento do mês: o lançamento do nosso coletivo antiespecista aqui na periferia. Começamos a nos reunir em setembro do ano passado, uma vez por mês, e dia 27 fizemos o lançamento público em grande estilo. Foi na ocupação onde mora a minha namorada, que também é uma camarada do coletivo, e teve brunch (cozinhado por nós, com comida de descarte), sessão de filmes sobre o antiespecismo e três mesas redondas. Uma sobre antiespecismo e feminismo, outra sobre antiespecismo e ecologia e uma terceira sobre antiespecismo decolonial (eu que organizei essa mesa). Nossa intenção era mostrar que as lutas da esquerda (e a esquerda radical em si) não podem mais se dar o luxo de ignorar a luta antiespecista. Por isso o título: “Nossas lutas não são desertos antiespecistas”. O evento foi um sucesso e fiquei impressionada com a quantidade de pessoas antiespecistas que moram na nossa periferia. Mês que vem vai rolar o segundo encontro e acho que esse é o começo de algo muito importante. (No prato tem: bolo de pera e chocolate, bolo-pudim de damasco e abacaxi, pepino com hortelã, pão, brócolis confitado e tofu mexido com creme de castanha.)
Depois de uma semana inteira preparando o evento de lançamento do coletivo antiespecista, você pensa que descansei? No dia seguinte nossa cozinha solidária tinha que preparar mais uma refeição pra uma atividade nos jardins: o encontro da coalizão nacional dos jardins operários em luta. Nosso grupo recebe muitos pedidos pra cozinhar em eventos militantes e, apesar de estarmos sempre cansadas e ocupadas, quase sempre aceitamos porque é uma oportunidade pra falar de antiespecismo com outros movimentos. Passei a noite do sábado (depois do evento antiespecista) e a manhã do domingo cozinhando com uma camarada do coletivo (que acontece de ser também a minha namorada. Por isso tiramos onda nos chamando reciprocamente de “camarada meu amor”. Porque anarquistas não se levam a sério, mesmo). O almoço foi um sucesso, mas como não tirei foto nem da comida nem do evento, deixo vocês com fotos dos Jardins Operários, suas cabanas de madeira, suas rosas magníficas e as framboesas do nosso lote, que tinham acabado de aparecer.
Já no finalzinho do mês fui levar minha solidariedade pros nossos amigos afegãos, que são entregadores de aplicativo (de bicicleta). Conheci vários quando trabalhei em uma mercearia chique em Paris, ano passado, e como muitos moravam na minha periferia, acabamos nos aproximando. Eles estavam precisando de ajuda pra resolver uns perrengues administrativos e como não falam Francês, fui lá ajudar os companheiros. Que aflição ser refugiada indocumentada, sem falar a língua do país, e com problemas pra resolver no telefone. Depois de horas no telefone com uma ruma de gente que não queria ajudar, fui recompensada com uma refeição preparada por eles (delícia!), toda vegetal, e com um chá de açafrão que um dos companheiros trouxe do Afeganistão. Imagina atravessar meio mundo com essa preciosidade. Ele guarda a garrafinha no quarto e só compartilha com visitas especiais. Me senti realmente muito especial. E o chá é muito gostoso!
A primeira colheita de favas da horta. Comi temperada com um punhadinho de coentro, também da minha horta. Eu amo favas. Profundamente.
Comi os primeiros morangos da horta. Segui colhendo as folhas plantadas (acelga e alface) e as que nascem de maneira espontânea no jardim (dente-de-leão, hortelã) a cada refeição. As primeiras flores que plantei pras abelhas se abriram. Coloquei urtigas (do nosso lote, nos jardins operários) em uma quantidade enorme de pratos. E tiveram mais momentos de alegria, outros de tristeza. Coisas mais ou menos íntimas, mas esse post já está longo demais. Espero que o mês de maio tenha sido florido e gostoso pra você também.
Tenho consciência que o nome dessa receita vai dar medo em muita gente, mas tem duas lições incríveis nessa prato, então bora lá.
Já falei nesse post que 1-urtigas são comestíveis e 2- que são uma delícia. Também falei que elas são riquíssimas em ferro e vou acrescentar agora que elas são extremamente ricas em proteínas, comparada às outras plantas. Corre à boca miúda que elas tem duas vezes mais proteína que a idolatrada soja. Porém como a urtiga, por ser uma folha, é levinha, pra conseguir competir com a soja você vai precisar comer um arbusto de urtiga inteiro. Mas eu só queria compartilhar esse informação pra você brilhar nos jantares mundanos com seu conhecimento sobre plantas comestíveis, mesmo. Não compactuo da proteinolatria e carência de proteína não deveria ser uma preocupação pra você, nem pra galera vegana em geral. Coma urtiga porque é gostoso, nutritivo e um alimento gratuito.
Da esquerda pra direita: alecrim, urtiga branca (com flores) e melissa.
Expliquei no post do pesto de urtiga como colher e cozinhar essa planta (sim, é seguro) e não vou repetir aqui. Dá uma olhada lá e aproveita e pega a receita do pesto. Na receita de hoje usei urtiga branca (Lamium album) que é da família da urtiga (visualmente e gustativamente são praticamente idênticas), mas não queima. Sim, uma urtiga que não queima. Hoje fui no lote que cultivamos coletivamente nos Jardins Operários aqui da minha cidade e colhi algumas pra comer no almoço. Ando apaixonada por urtigas e coloco em tudo (sopas, grãomeletes), mas hoje decidi inovar e fazer bolinhos salgados com ela. E aqui vem o segundo aprendizado do post de hoje.
Sabia que com um pedaço de pão velho, uma colherada de pasta de amendoim e alguns temperos dá pra fazer bolinhos supimpa? A inspiração veio de uma receita de bolinho de pão e nozes, que vi num site de receitas belga. Fiz mais ou menos como o site mandava e ficou muito bom. E tudo que acho muito bom, eu quero compartilhar aqui no blog. Só que pra quem está no Brasil, nozes é algo caro e difícil de achar. Sem falar que é importado. Será que não dava pra fazer usando outra oleaginosa?
A resposta é “sim”. Usei sementes de girassol no lugar das nozes e ficou supimpa. Mas resolvi ir mais longe no esforço de deixar essa receita acessível. Qual ingrediente da categoria das oleaginosas é o mais abundante e barato no Brasil? Amendoim. Que inclusive, é nosso! Então fiz umas adaptações, reduzi ao máximo os ingredientes e o resultado ficou ainda melhor do que a receita original. Desde então sempre que tem um pedaço de pão envelhecendo, faço bolinhos.
(Eu sei que botanicamente falando amendoim é uma leguminosa, ou seja, é um tipo de feijão. Mas como é gorduroso como oleaginosas e usamos da mesma maneira que oleaginosas, decreto que culinariamente falando, amendoim é oleaginosa. E tenho dito.)
O que me encantou nessa receita é que usando basicamente 3 ingredientes (pão velho, pasta de amendoim e um vegetal – aqui, urtiga) você faz algo muito saboroso em pouquíssimo tempo. É receita de carestia, quando só tem um pedaço de pão dormido na cozinha, um vegetal triste na geladeira e um fundo de pasta de amendoim no armário. Mas apesar de humilde, o resultado ultrapassa as expectativas. Meu tipo de receita preferido.
E se você usar urtigas, o que recomendo demais, o sabor será incrível! Pode confiar.
Come urtiga, bem.
Bolinho salgado de amendoim e urtiga
Quanto de pão dormido é necessário? O tanto que você tiver. À partir dessa informação você dosa os outros ingredientes. Lembrando que os ingredientes aparecem em ordem decrescente, ou seja, o ingrediente usado em maior quantidade aparece primeiro e o usado em menor quantidade, por último. Os três ingredientes essenciais são pão + legume + pasta de amendoim, o resto é tempero e pode ser adaptado (embora eu recomende muito usar molho de soja, pois fica uma delícia com amendoim). Se quiser usar coentro ou salsinha fresca, maravilha! Se só tiver alho e shoyu, dá certo também.
Pão dormido
Urtigas frescas (ou outro legume – veja dicas no final da receita)
Pasta de amendoim (pura, sem açúcar)
Molho de soja (shoyu)
Alho
Raspas e suco de limão
Ervas (usei alecrim fresco porque era o que eu tinha, mas tomilho e orégano secos também são ótimo aqui)
Pimenta preta
Ferva as urtigas por alguns segundos, pique bem e esprema pra extrair a maior parte do líquido (como expliquei nesse post). Usei uma parte de pão pra uma parte de urtiga. (OBS Como dessa vez usei urtiga branca, que não queima, não cozinhei antes e bati crua junto com o pão).
Corte o pão dormido em pedaços médios e coloque no liquidificador junto com as urtigas cozidas e o alho. Bata (ou pulse) até ficar bem triturado, como uma farofa molhada. Transfira pra uma tigela e acrescente a pasta de amendoim (veja a foto acima pra ter uma ideia da proporção) e os temperos: raspas e suco de limão, molho shoyu, ervas e pimenta preta. Tudo a gosto. Misture bem com as mãos. Prove e corrija o tempero, se necessário. A massa deve ficar bem colante e formar bolinhas sem dificuldade quando apertada entre as mãos. Cuidado pra não ficar molhada demais: acrescente os ingredientes líquidos com cuidado (shoyu e suco de limão). Se ficou muito seca, junte um bocadinho de água.
Pra quem fica nervosa se não tiver medidas, usei 1 colher de sopa (não muito cheia) de pasta de amendoim pra mais ou menos 2 xícaras da mistura pão+urtiga, mais 1 colher de sopa bem cheia de shoyu, 1 dente de alho pequeno, raspas de meio limão galego e umas 2 colheres de chá de suco de limão. Não precisei acrescentar água pra dar o ponto. Essa quantidade deu 6 bolinhas, o suficiente pro meu almoço.
Faça bolinhas com essa massa (umedeça as mãos com água, pra não grudar) e frite em uma frigideira antiaderente (eu nem uso óleo, pois a gordura da pasta de amendoim é suficiente pra dourar os bolinhos – mas só funciona se a frigideira for realmente antiaderente!). Você também pode assar no forno. A vantagem é que dá pra fazer uma quantidade bem grande de uma vez, mas a desvantagem é que as bolinhas ficam mais secas (nada dramático).
São uma delícia quentes, mas guardei as bolinhas assadas na geladeira, em um vidro fechado, por vários dias e também achei gostoso frio. (Na verdade eu abria o pote e comia gelado, mesmo).
Dica: Não tem urtiga? Use couve picada ou cenoura ralada (ambas cruas). Bata a couve com o pão, como fiz com as urtigas. Mas se usar cenoura ralada, deixa pra acrescentar na tigela, junto com os temperos. Já fiz com cogumelos (champignons), salteados antes de entrar na massa, e ficou incrível (foto abaixo – aqui as bolinhas foram assadas no forno).
Dias atrás minha amiga Bárbara me mandou uma mensagem contando que tinha feito omelete com ervilha seca e que tinha ficado muito feliz com o resultado. Há tempos eu andava pensando em fazer omelete com outra leguminosa, seguindo a técnica que uso pra fazer omelete de grão de bico (vulgo grãomelete). A mensagem dela me deu ainda mais vontade de explorar novos caminhos, mas ao invés de usar ervilha seca, decidi usar feijão mungo.
Se você é nova no veganismo e/ou se tem pouca intimidade com a culinária vegetal, talvez o parágrafo acima tenha te deixado intrigada. “Por que danado veganas querem fazer omelete usando feijões ao invés de ovo?”, você deve estar se perguntando. A resposta é: porque é uma delícia! Quando você sai do padrão de culinária especista, que vê animais e os produtos do seu corpo como alimentos, abre-se um mundo de possibilidades na cozinha. Feijão pode ser a base de omeletes (grãomelete, feijãolete, chame como quiser) saborosos, nutritivos e facílimos de preparar. E por que chamar isso de “omelete”, se não tem ovo? Eu acredito que usar palavras que denominem receitas à base de animais e seus derivados pode ser útil pra te informar que a técnica de preparo (como no caso de queijos vegetais) ou a maneira de consumir (como no caso desse omelete) são as mesmas. Eu chamo de “omelete de feijão” pra sinalizar que a gente cozinha essa preparação como um omelete, que pode acrescentar os mesmos ingredientes que usaríamos pra incrementar um omelete de ovo e que consumimos como um omelete (acompanhado de vegetais no almoço / dentro de um pão no café ou jantar / puro, como um lanche rápido…).
Escolhi usar feijão mungo aqui por duas razões. Eu moro na periferia norte de Paris, onde tem uma comunidade indiana importante. Aqui tem várias mercearias com produtos indianos, super acessíveis e sempre encontro feijão mungo nesses lugares, já que ele é bastante utilizado na culinária indiana. A segunda razão é que tem alguma propriedade culinária no feijão mungo que faz com que ele se comporte um pouco como ovo. Não por acaso os produtos industrializados que se vendem como “ovos vegetais” geralmente usam proteína de feijão mungo. Eu queria ver se dava certo fazer omelete em casa, usando simplesmente o feijão inteiro, como já fiz com o grão de bico tempos atrás.
Trago boas novas! Não só é possível, como é muito fácil. O sabor é bem suave, principalmente se você coar a mistura antes de cozinhar (explicações na receita abaixo) e isso também é positivo. De um lado, esse feijãolete vai agradar os paladares cheios de melindres. Aqueles que foram formados sem muito contato com vegetais e tendem a rejeitar a comida da terra. E, por outro lado, o sabor discreto te convida a ser criativa e acrescentar outros ingredientes, pra incrementar a receita. E a textura realmente é mais próxima do omelete de ovo que a minha (amada, idolatrada, salve, salve) receita de grãomelete. Sabe aquela coisa ligeiramente gelatinosa e elástica do ovo? Você vai encontrar algo próximo aqui.
Um dia tentarei a versão de omelete vegetal de Bárbara, embora no momento eu esteja tão animada com a versão com feijão mungo que já repeti a receita 5 vezes em duas semanas. Mas agora que essa porta se abriu, vejo inúmeras versões de omelete de leguminosas no futuro.
Omelete de feijão mungo (feijãolete)
Feijão mungo cru (usei o grão partido aqui, mas funciona igualmente com o grão inteiro)
Água, sal e tempo
Óleo/azeite pra cozinhar
Opcional:
Cebola
Alho
Coentro
Páprica defumada
Pimenta preta
Deixe o feijão mungo de molho na água fria por pelo menos 12 horas (de um dia pro outro). Eu já deixei de molho por 24h e 48h (trocando a água do molho uma vez) e nos três casos dá certo. Aumentar o tempo da demolha deixa o grão mais digesto, então escolha de acordo com a sua sensibilidade pra digerir feijões.
Escorra o feijão demolhado, enxague rapidamente e bata no liquidificador com água apenas suficiente pra cobrir tudo (sem passar). Bata por alguns segundos, até o feijão se transformar em um líquido encorpado e liso (esfregue entre os dedos). Use uma peneira fina pra coar a mistura, separando as cascas e parte da fibra. Se quiser fazer seu omelete sem coar, fique à vontade. Saiba apenas que a casca deixa essa receita mais granulosa e com um sabor mais pronunciado, o que não é necessariamente desagradável (mas eu prefiro coar). A espessura da massa deve lembrar uma vitamina de banana (nem espessa demais que pode ser comida de colher, nem líquida como um leite).
É nesse momento que você pode incrementar seu omelete. Aqui eu juntei cebola roxa em tiras finas, alho picado, coentro, páprica defumada e pimenta preta. Misture tudo na massa e não esqueça de colocar sal a gosto.
Aqueça um pouco de óleo (ou azeite) em uma frigideira antiaderente. Quando estiver bem quente, despeje um pouco da mistura de feijão mungo (uma camada fina é melhor do que uma camada muito espessa). Cozinhe em fogo médio até o omelete se formar e for possível virar sem que ele se quebre. Baixe o fogo e cozinhe mais alguns minutos do outro lado. Quando estiver bem dourado dos dois lados, está pronto.
A massa de omelete (feijão mungo demolhado, triturado e coado) pode ser conservada por vários dias na geladeira. Sempre que quiser fazer um omelete, retire a quantidade necessária, tempere e cozinhe.
Um dia, muitas luas atrás, uma moça chamada Michelle me enviou uma mensagem pelo Instagram (na época eu ainda frequentava a plataforma) e trocamos algumas ideias. No final da conversa ela disse que era de Belém do Pará e me chamou pra conhecer a cidade. Eu disse que aceitava o convite com muito gosto, que era um sonho antigo visitar Belém, mas que não sabia quando isso iria acontecer. Anos depois eu desembarquei no aeroporto de Belém e lá estava ela me esperando, junto com outras camaradas, com um sorriso enorme e uma banana na bolsa. (Eu tinha enviado uma mensagem pra Michelle, antes de embarcar pra Belém, pedindo encarecidamente que ela levasse uma coisinha pra eu comer porque a jornada até lá seria longa e eu já estava morrendo de fome. Curiosamente quando eu entrevistei Michelle, dias depois, a questão de ver frutas como lanche acabou entrando na conversa e desencadeando uma reflexão profunda do meu lado.)
Michelle Muriel é gestora ambiental, ecofeminista e militante pelo veganismo popular na Amazônia. Ela faz parte do coletivo antiespecista VEM (Veganismo Em Movimento), que é associado à UVA. Como parte da Jornada do Veganismo Popular Contra o Fim do Mundo, que aconteceu durante todo o mês de novembro de 2022, em várias cidades do Brasil, as/os camaradas do VEM me receberam em Belém pra participar de um evento junto com Ana Felicien, uma companheira da Venezuela, e Gisiane Ferreira, uma companheira do MST. Foi um dos eventos mais potentes dos quais participei e ainda escuto os ecos daquela conversa dentro de mim. E o que dizer do pessoal do VEM? Ô povo maravilhoso! Que honra construir a luta antiespecista no Brasil do lado desse povo!
Não era possível entrevistar todo mundo do coletivo, mas consegui tempo pra gravar uma conversa com duas companheiras do grupo e a primeira que vai aparecer aqui é Michelle. Ela me disse que nosso encontro foi uma pororoca e eu não poderia achar uma maneira mais linda e certeira de descrever o que senti. Foram quase duas horas de gravação, que eu transcrevi em nada menos que 11 páginas! Mesmo depois de duas semanas de edição, essa é a entrevista mais longa que já publiquei aqui no blog, mas te garanto que vale muito a pena ler até o final.
Tivemos essa conversa na ilha do Combu, dentro da floresta Amazônica e tenho certeza que as palavras dela vão provocar uma pororoca no peito de vocês também.
Como você se tornou vegana?
Em 2010 eu estava cursando gestão ambiental e visitei um abatedouro como parte de um trabalho pra faculdade. Eu já tinha duas cachorrinhas e quando cheguei lá e vi os animais no curral, imediatamente pensei nelas. Até hoje eu lembro do olhar dos animais na minha direção, da sensação de não poder fazer nada pra ajudá-los. Depois desse dia sempre que eu via carne no prato eu lembrava dos animais no abatedouro e não conseguia comer. Foi quando um amigo me falou sobre vegetarianismo. Eu não conhecia nenhuma pessoa vegetariana e pensei que aquilo não era pra mim. Eu repetia que ainda estava assustada com o que eu tinha visto no abatedouro, mas que em algum momento eu voltaria a sentir cheiro de carne sem associar aquilo com animais sendo queimados. Isso durou um ano e durante esse tempo não consegui comer carne diretamente, mas quando tinha carne no meio de alguma comida, charque por exemplo, eu colocava pro lado e comia o resto. Frango eu já não gostava de comer, então eu só comia peixe. Até que em 2011 eu me tornei vegetariana.
Logo depois comecei a trabalhar na Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Foi então que comecei a visitar abatedouros como parte do meu trabalho, fazendo fiscalização, recenseamento. Eu morei uma época em São Félix do Xingu, no sudeste paraense, que é onde tem o maior número de bovinos do estado. Quando você chega nessa região o agro está presente em tudo. Tu não vê mais mata, essa mata que a gente está vendo aqui, tudo foi devastado. À noite a fumaça das queimadas parece uma neblina. Tudo foi transformado em pasto. E o que eu via nos abatedouros? Uma cena de horror: sangue espalhado por todos os lados e tristeza. É horrível porque ninguém é feliz fazendo esse trabalho. Os trabalhadores nos abatedouros são uma mão de obra descartável. São corpos que, se acontecer alguma coisa com eles, não serão lembrados.
Sem falar no impacto ambiental. Aquele sangue, aquela gordura toda que sai dos animais mortos vai se acumulando numa vala. E é um negócio verde, um lodo. Aquilo deveria ser tratado antes de ser jogado num rio, só que na maioria dos casos isso não acontece. Nos lugares próximos aos abatedouros onde a água dos rios foi testada, foi constatado que ela é imprópria pra consumo, pra banho. Então as conexões foram sendo feitas na minha cabeça.
Aí teve o caso do abatedouro no Marajó… Fomos fazer uma inspeção e fiquei impacta quando vi que os animais estavam doentes, que tinha tumores nas carnes. Falamos que aquela carne tinha que ser jogada fora, mas o veterinário responsável disse: “Não! A gente tira a parte doente e vende o resto”. Mandamos descer toda a carne que estava dentro de um caminhão, indo pro frigorífico. O abatedouro foi fechado, lacramos tudo. Mas políticos influentes foram mobilizados e poucos dias depois o lugar estava funcionando novamente.
Comecei a perceber o impacto social da pecuária também. Eu via pessoas na miséria, morando nas margens do rio, mas sem a possiblidade de pescar porque o rio está poluído. E ao mesmo tempo eu via um grupo privilegiado, os pecuaristas, os donos dos abatedouros, se aproveitando daquela situação, exibindo riqueza como eu nunca tinha visto em Belém. Em lugares como Xinguara, São Felix do Xingu e Marabá eu via pessoas extremamente brancas, louras, enormes, totalmente diferentes das pessoas daqui, com botas de couro e bolsas de luxo que eu só tinha visto, até então, na televisão. E quem mora nas comunidades dessa região passa a servir aquele grupo, ser garçon, cozinheira nas churrascarias, diarista…
Como eu estava mais próxima da classe trabalhadora, fui fazendo amizades com as pessoas que prestavam serviço ali. E elas me chamaram pra visitar a roça delas. Essas pessoas criavam animais pequenos, mas elas se alimentavam principalmente do que plantavam. Descobri que no fim de semana o pessoal da comunidade vendia verduras no mercado e comecei a fazer minhas compras lá. Era muito fácil, e farto, se alimentar com comida vegetal ali.
À noite eu via as manifestações dos indígenas falando sobre o avanço do agro, explicando que eles estavam sendo expulsos das terras, que estavam em luta… Então a situação ficou evidente pra mim. Existe um grupo muito poderoso, os pecuaristas, que está se beneficiando da situação e, ao mesmo tempo, oprimindo, vulnerabilizando, excluindo e marginalizando a população nativa. Na época eu não tinha teorias, mas é impossível estar ali e não fazer essas conexões.
Fale um pouco sobre o veganismo popular no seu território
Quando voltei pra Belém, voltei com vontade de me organizar. Foi quando eu entrei em contato com o pessoal do coletivo VEM (Veganismo Em Movimento). O coletivo já existia, mas estava parado. As eleições de 2018 estavam se aproximando e organizamos algumas ações pra mobilizar as pessoas e mostrar quem era Bolsonaro e ajudar Haddad a se eleger. A gente entendia que as lutas estavam conectadas e na época falávamos de veganismo interseccional. Ainda não conhecíamos o termo “veganismo popular”, mas o pensamento era o mesmo. Começamos a ler o blog Veganagente. Foi então que eu vi o seu vídeo com Sabrina Fernandes e comecei a ler o seu blog também. A gente pegou uns textos do seu blog, juntou com textos do Veganagente e nos reunimos pra ler e discutir. Foi assim que retomamos as atividades do VEM, com um veganismo politizado aqui em Belém.
As tarefas são muitas e somos poucas pessoas no coletivo, mas estamos muito felizes com o sucesso dos eventos que organizamos. O VEM passou a ser uma referência aqui e somos convidados pra participar de discussões e construir junto de outras lutas. Em 2020 organizamos um encontro com as candidaturas pra vereadores e teve muito interesse da parte dos candidatos em aprender mais sobre o que defendemos. Conversamos muito sobre merenda escolar, alimentos agroecológicos e as várias políticas públicas que Bolsonaro derrubou, na verdade que vêm sendo derrubadas desde Temer, e que impactam diretamente os ribeirinhos que produzem alimentos aqui. Se não tiver políticas públicas de escoamento como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), articuladas com o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), os agricultores não vão conseguir escoar a produção e a comida não vai chegar nas escolas. Quem ganha são os monopólios alimentares, que vão conseguir levar seus produtos pra merenda. Sem as políticas públicas, quem produz tem o que comer, mas não consegue vender uma parte e não tem como garantir o resto do que precisa.
Talvez em reação a isso percebi que o número de cooperativas e associações rurais está aumentando. Elas se reuniram pra buscar uma forma autônoma de levar toda essa produção pras feiras municipais e pra beira das rodovias. Aqui em Belém tem um movimento de feira totalmente autônomo. Conseguem organizar transporte pra chegar até aqui, ficam no meio da rua, sem nenhum tipo de estrutura e vendem seus alimentos. Outro dia perguntei pra um feirante se tudo aquilo na barraca vinha da propriedade dele. O senhor respondeu: “É, minha filha, tudo isso aqui é da minha propriedade. Tem muita coisa lá, a gente fica com uma parte e o que sobra a gente traz pra vender. Tem tanta coisa que até estraga. Aí eu fico pensando nas pessoas da cidade, que moram na rua, que não tem o que comer… Lá é tão farto!”
Eu vejo que as coisas andam juntas. No campo, as pessoas estão trabalhando e lutando muito pra estar naquele território. Elas criam laços com a terra e relações com as outras pessoas. São exemplos de sociedades muito solidárias. E ali está a sua identidade. Quem vem pra cidade, porque perdeu a possiblidade de viver da terra, perde essa rede de apoio. Na cidade elas são marginalizadas, empurradas pra beira dos rios ou pras periferias, lugares que não são vistos, ou acabam na rua e começam a passar fome. É necessário uma sensibilidade pra gente perceber isso. Na cidade as pessoas estão cada vez mais individualistas e você acaba ficando mais endurecido, perdendo a sensibilidade pra olhar pro outro.
O que é o veganismo pra você?
O veganismo tem uma dimensão política, é uma luta coletiva por libertação animal e humana. Mas como amazônida, ele também tem uma dimensão muito particular pra mim. Estando aqui na Amazônia e encontrando as pessoas nas comunidades, eu vejo que ele é um espaço que agrega e acolhe as pessoas que estão em luta.
Porque você chega nas comunidades e tem luta. Elas estão lutando pra serem reconhecidas, pra não serem invisibilizadas, pras que políticas públicas cheguem até elas. Estão defendendo suas causas, seu território, sua identidade. Muita gente acha que ao falar de veganismo a gente se distancia das pessoas que consomem animais pra subsistência. A verdade é que estamos muito mais próximas delas, pois elas têm uma relação muito forte com a natureza. E eu encontro no veganismo um lugar onde eu posso me apoiar pra tratar desse aspecto, que é bem sensível: a conexão com a natureza.
Quando a gente nasce e cresce aqui aprende desde pequenininha que tem que pedir a permissão da natureza pra entrar no rio, pra entrar na floresta. “Com licença, mãe natureza!” Quando vamos plantar, a gente conversa com a natureza e pede a permissão. Na hora de colher, também. Tem a época em que o caranguejo sai pra namorar e ninguém, nem o pegador de carangueijo, pega carangueijo nessa época. Ele espera o tempo do carangueijo crescer. Aqui a gente respeita a lua, as estações, o inverno amazônico, o verão amazônico. Meus bisavós e avós cresceram na beira do rio, na beira do mangue. Entrou ali, não se pega nada sem permissão. Nem um animal, nem uma folha, nem uma casca. A gente aprende a ter esse respeito. Então quando eu conheci o veganismo eu me identifiquei, porque é esse respeito que eu quero.
O veganismo pra mim tem essa dimensão política coletiva que casa muito bem com o veganismo amazônida. Nós, amazônidas, estamos com essa sensibilidade aflorada em defesa da Amazônia e nossas raízes estão clamando isso. Não tem como você mergulhar numa praia em Mosqueiro, numa praia no Marajó e não querer lutar por isso. Porque se a gente não lutar por isso, o preço que vamos pagar é alto demais: vamos perder nossa identidade.
Então aonde eu vou lutar? Vou lutar aonde tem respeito por todos os seres, que é junto do veganismo popular. E não sou só eu que falo isso: tem meus companheiros do VEM, os companheiros do MST, a UVA… É uma luta pelo nosso território, pela nossa identidade, pela nossa história. Pelos meus avós, bisavós, os que estavam aqui antes, resistindo pra não sucumbir e os que morreram lutando. A terra onde eles lutaram permanece e é a terra onde lutamos hoje. Pra mim o veganismo é isso.
Por que você é vegana?
Primeiro porque eu não consigo ver o corpo de um animal como alimento. Pra mim o alimento é vegetal. Eu me disponho a ser uma amiga e companheira de luta desses animais, de todos os animais. Segundo porque, sem precisar falar nada, quando escolho um prato totalmente vegetal as pessoas a minha volta percebem e fazem perguntas. Assim o meu existir já demonstra a minha prioridade de vida, que é lutar em defesa da Amazônia e dos animais.
No veganismo eu consigo conectar o que acredito ser necessário individualmente e coletivamente pra construir a sociedade que a gente almeja. É uma luta que não está lá na frente. Ela vive aqui, no presente, e já existia lá atrás. A gente chega em qualquer comunidade na Amazônia e vê a luta pela defesa dos animais, pela defesa da natureza.
Veja o exemplo da pesca industrial. Colocam barcos industriais na cabeceira do rio e o peixe não entra nas comunidades, os ribeirinhos não podem fazer pesca artesanal. A pesca artesanal luta contra a pesca industrial e como é que a gente não vai lutar do lado dessas pessoas? Se a gente não faz uma luta contra os grandes monopólios da indústria não teremos condições de viver o veganismo, de alcançar libertação animal. As pessoas vão comer o quê? Um ultra processado? Vão sucumbir? Vão vir pras periferias ou viver uma vida deplorável no meio da rua? Primeiramente devemos lutar com os pescadores artesanais contra a grande indústria. Quando eles tiverem seu lugar garantido e condições de escolher o que fazer, só então terão a possibilidade de considerar os animais como seus companheiros de luta. E é à partir daí que a gente vai poder levar a discussão do antiespecismo até eles.
Lembrei de uma história. A pesca industrial estava afetando várias comunidades em Marapanim e apesar das pessoas que moravam ali denunciarem a situação, os órgãos ambientais e a Câmara repetiam que “não tem ninguém nessas comunidades”. Como sempre, a Amazônia é vista como um grande vazio demográfico. Então uma liderança comunitária ribeirinha organizou várias pessoas num caminhão, cada uma levando um cartaz com o nome da sua comunidade e foram na câmara pra dizer “a gente existe”. No final de uma luta de 12 anos conseguiram uma reserva extrativista marinha que protege essas comunidades de agricultures familiares, de pescadores artesanais e de marisqueiras (que é uma atividade feita por mulheres). A reserva se chama “Reserva Mestre Lucindo”. Mestre Lucindo foi um músico de carimbó e perguntei por que deram o nome dele pra reserva. Me explicaram que ele também era pescador artesanal e compunha suas músicas nas noites de luar, enquanto pescava. Ele morre, mas renasce como reserva extrativista. Ele renasce pra proteger os membros da comunidade. Aqui a existência das pessoas permanece, as lembranças, as memórias, os ensinamentos… Isso é muito forte pra nós.
Estamos na Amazônia, onde o projeto colonial avança sem pausa há séculos. Você acredita que o veganismo se articula com a luta decolonial?
O veganismo popular fala da defesa do território, da identidade, do que está aqui, dos antepassados que defenderam a terra e produziram uma cultura alimentar tão forte e diversa. Ele vem com o principio de fortalecer a cultura alimentar do seu local e pra mim isso é decolonial. Veja que isso não é algo novo dentro dos espaços de luta. Que as pessoas aqui descrevam sua luta como “decolonial” ou não, é escolha delas, mas essa luta sempre existiu. O veganismo vem se somar a isso tudo e eu percebo que ele vem organizar as pessoas e nomear as coisas. Você chega aqui na comunidade do Combu e consegue identificar o que é colonial. Então a gente se soma de uma forma organizada e já denominada, explicando com todas as palavras o que você observa aqui nas comunidades que já estão na luta. Se eles produzem, a gente vai consumir. Organizamos encontros com as candidaturas tanto em 2020 quanto agora, em 2022, pra falar sobre soberania alimentar e formas de fortalecer a cultura alimentar. Aqui no Ver o Peso tem essa força ainda. Mas a gente tem que ficar atento e vigilante, porque o colonialismo vem devagarzinho, pelas laterais.
(Contei pra Michelle o que vi na minha visita ao mercado Ver o Peso no dia anterior: farinha de tapioca e coco seco sendo vendidos banhados em leite condensado. A Nestlé conseguiu se enfiar até em produtos tão tradicionais, no mercado que é um dos maiores símbolos da cultura alimentar paraense.)
Sim, a gente tem que ficar vigilante.
É complicado ser vegana na Amazônia?
Aqui é muito fácil se alimentar bem, de maneira farta e dentro da nossa cultura alimentar, sendo vegana. Meu pai carrega muito essa cultura alimentar raiz. Quando é época de pupunha, ele cozinha pupunha na casa dele, coloca um pouco num potinho e deixa na portaria do meu prédio. Aí eu já subo com minha pupunha cozida, faço um cafezinho e é meu lanche ou café da manhã. Quando a minha família fala: “Vamos fazer um café da tarde?”, eu levo um milho cozido, uma macaxeira cozida, uma pupunha cozida. E ninguém vai se espantar e dizer: “Ah, isso aqui que a Michelle trouxe é vegano!” Não, as pessoas vão dizer: “Eu adoro milho cozido, adoro macaxeira!” As pessoas comem o que eu levo e o pão, aquele pão de supermercado que alguém colocou na mesa, vai ficando de lado. Se tiver um bolinho de macaxeira, que a minha mãe faz, ou um bolinho de tapioca, as pessoas adoram porque esses pratos são carregados de memória afetiva. Talvez isso esteja se perdendo entre as pessoas mais jovens, mas a minha geração ainda tem essa lembrança de infância da vó fazendo mingau de carimã, mingau de milho, mingau de banana. Antigamente não tinha leite de vaca, era sempre com leite de coco, porque é o mais prático aqui. Também tem o leite de castanha (do Pará).
Já escutei muitas pessoas afirmarem, no Brasil e na Europa, que veganismo não faz sentido porque “indígenas caçam”. Pior, que o veganismo é “anti-indígena” e “busca separar o humano da natureza”. O que você diria pra essas pessoas?
Antes de falar, é bom ouvir. Ninguém pode falar por ninguém, incluindo nós, no movimento vegano. A gente tem que ouvir as pessoas da Amazônia. Pra se somar a essa luta, precisamos estar no local, ouvir as pessoas e ter a sensibilidade de entender que elas são as protagonistas. Se um grupo indígena está falando, vamos ouvir. Eu tenho certeza que eles não estão falando que é pra matar não sei quantas cabeças de gado. Não tão falando isso, não. A gente tem que chegar, sentar e ouvir. Depois se perguntar: “Onde posso ajudar?” Estamos olhando pro mesmo destino, pro mesmo horizonte? Estamos, então vamos lá juntos. As pessoas falam: “Ah, o veganismo é isso, o veganismo é aquilo…” Quantas dessas pessoas vão estar lá pra lutar ao lado dos indígenas?
Essas pessoas têm uma ideia estereotipada dos grupos indígenas. E usam isso pra desconsiderar o veganismo e continuar vivendo sua vidinha no ar condicionado, comendo carne, numa bolha de conforto, sem conseguir enxergar quem está do seu lado? Ouçam o que eles estão falando ao invés de falar o que vocês acham deles.
Gostaria que as pessoas tivessem a oportunidade de sentar e tomar um cafezinho com uma comunidade indígena ou ribeirinha. Se você sentar e tomar um café com essas pessoas elas vão te oferecer uma macaxeira cozida. Provavelmente vão te oferecer um suco de cupuaçu, ou de bacuri, uma banana da terra frita… E quando você falar da defesa da natureza, da defesa dos animais, elas serão as primeiras a concordar. Elas utilizam os animais pra subsistência, mas a visão delas é muito próxima da nossa luta pela defesa da natureza, dos animais e da Amazônia.
Ouvi dizer por aí que o veganismo pode até ter alguma relevância nas cidades, mas que não tem sentido chegar pras comunidades indígenas e falar pra elas comerem estrogonofe de soja. Desde então fiquei com essa dúvida. (contém ironia) Vocês realmente querem que indígenas parem de pescar e comam estrogonofe de soja no lugar?
Mais uma vez, isso é a visão do veganismo de alguém que não conhece a luta. Se você quer ter uma opinião sobre algo que você não conhece, sem estar no local onde essa luta acontece, converse com alguém que está lá. É importante se informar antes de falar!
Nós, do movimento vegano, não estamos chegando em nenhuma comunidade indígena ou ribeirinha falando: “Vamos fazer um escondidinho de soja?” Não! Quando eu vou pra essas comunidades muita gente me pergunta o que eu vou comer. Eu levo minha comidinha, minha marmita? Levo, até porque gosto de compartilhar. Mas eu vou tranquila porque sei que essas pessoas não vão me julgar. Eu vou sentar na mesa com elas e vai ter um peixe, uma galinha caipira, mas também vai ter macaxeira, açaí, farinha, tapioca. Sempre tem feijão de corda, feijão verde. Se tiver pupunha, eu coloco no meu prato. Se só tiver açaí e farinha, eu já almocei! Ninguém vai ficar te questionando por você não comer a galinha ou o peixe, muito pelo contrário! Eles vão experimentar o que eu tiver levado, eu vou comer os vegetais que eles tiverem preparado e vamos socializar ao redor da comida compartilhada.
Mas o que a gente pode discutir aqui é um pensamento muito colonial e neoliberal que vai chegando nos lugares e transformando a maneira como vemos a comida. Então as pessoas passam a não enxergar os frutos, as frutas, os alimentos vegetais em geral, como alimento. Isso faz parte da missão do veganismo: lutar pro vegetal ter um papel central na mesa.
Eu cheguei em um lugar uma vez, a trabalho, e tinha muito coco. Todo mundo estava bebendo água de coco. Estava naquele intervalo entre o café e o almoço, então eu comecei a comer a carninha do coco. Quando eu vi, todo mundo estava fazendo igual. Porque é gostoso! Mas até então ninguém tinha pensado em comer a carninha do coco. Eu gosto de comer o cupuaçu, quebrar e comer a polpa. O bacuri também. Como a fruta diretamente. Nesses lugares tem muita polpa, porque as comunidades comercializam, então você pode pegar a polpa e fazer um suco… Também tem sempre biju, que é diferente da tapioca. O biju é feito com a farinha d’água misturada com água e um pouquinho de açúcar. É um lanche da tarde pra mim.
(Explico que pra mim uma das maiores contribuições do veganismo é passar a enxergar o vegetal, uma simples fruta, como um lanche satisfatório. A gente vê comida onde as pessoas especistas vêem ausência de comida. Sempre que me dizem: “Você não come carne, nem laticínios, nem ovos? Então não come nada!” eu percebo a que ponto as pessoas especistas vêem o vegetal como uma não-comida. Michelle falou de como a Amazônia é considerada, por quem quer explorá-la, como “um vazio demográfico” e agora estou me dando conta que comida vegetal também é vista como uma espécie de vazio alimentar.)
Exatamente. Também é comum ter castanha (do Pará) em todos os lugares. Você chega e as mulheres estão cortando a castanha, preparando pra vender. Aquilo ali com um cafezinho, pra mim já é um lanche! Outro dia eu estava com meus colegas de trabalho e tinha muito capim santo no lugar onde estávamos. Fizemos uma panela de chá, que meus colegas tomaram com biscoito de castanha. O biscoito levava leite, então eu tomei o meu chá com as castanhas, mesmo. Como você disse, muita gente não vê isso como lanche, como refeição.
Como falar da luta antiespecista dentro da esquerda?
Esse está sendo o nosso maior desafio. É onde a gente vê mais resistência. Quando a gente chega numa comunidade e leva sua comida vegetal, ou faz seu prato, é tranquilo. Mas quando a esquerda percebe que você é vegana, é muito comum fazerem uma crítica não embasada. Dizem que vamos ficar com deficiência de nutrientes, que comer animais é cultural…
A gente tenta trazer a esquerda pro veganismo explicando que existe um ponto comum nas nossas lutas: a exploração dos corpos, dos corpos de todos os animais, humanos e não-humanos. Mostramos que a exploração dos animais tem por finalidade a acumulação e o lucro e que com isso vem todas as questões socio-ambientais, como a exploração dos trabalhadores, a destruição da floresta, a poluição dos rios… A gente tenta conectar isso pra que as pessoas percebam que lutamos contra um inimigo em comum. Pra elas enxergarem a relevância em defender os animais, porque estamos todos conectados num grande sistema.
Muita gente não consegue perceber o quão conectados estamos… Basta pensar que todo mundo precisa do ar. Se tirar o ar, a gente morre. Precisamos dos rios, das florestas, dos animas… Se a gente não se perceber como parte importante desse processo, assim como os outros animais, a gente quebra os pilares importantes pra reprodução da vida.
Acho que na esquerda tem muito a questão de rigidez, de não mudar o que fazem, o que falam. Mas aqui, por causa do que a pecuária está fazendo com a Amazônia, as pessoas na esquerda conseguem conectar isso, perceber a importância, mas sem necessariamente se tornarem veganas.
Existe uma resistência com a questão antiespecista. Minha leitura é que como as pessoas teriam que fazer um esforço, se quiserem se tornar veganas, e como não tem ninguém cobrando essa postura delas dentro da esquerda, é muito mais fácil deixar pra lá. Dizem: “Isso não é urgente, então vamos deixar pra depois”.
A gente convida o pessoal na esquerda a lutar pelo antiespecismo de maneira paralela. Porque nós, veganas, militamos de maneira paralela. A gente luta contra a opressão, então construimos condições pra fazer as lutas acontecerem de maneira simultânea. Dá pra você viver sem consumir nada de origem animal e, juntamente com a defesa da luta antiespecista, você pode se aliar à luta LGBT, à luta antiracista… Dá pra fazer todas as tarefas da militância na esquerda sendo antiespecista e a gente mostra isso através do exemplo.
Algumas pessoas de esquerda, quando entendem o que é o veganismo, conseguem conectar as pautas imediatamente. Outras precisam fazer um esforço maior pra superar a questão do paladar. Mas sabe uma coisa que eu vejo, principalmente aqui em Belém? O lado social. A gente tem a síndrome do vira-lata. A gente não quer parecer nortista, não quer parecer caboquinho. “Nossa, isso é coisa de caboquinho, não faz isso!”
O que é ser caboquinho?
É a mistura do indígena com o negro, a miscigenação de etnias aqui. É o caboclo, aquele que mora no interior, que está perto da natureza, que tem uma outra forma de se alimentar e de se relacionar com a natureza. Aí a gente pensa: “Não quero parecer um caboquinho! Quero dizer que vou pro Sudeste, que viajo pelo menos uma vez por ano pra Europa com a minha família, que tenho uma empregada doméstica, que tenho um carro novo, mesmo que eu esteja cheia de dívidas…” A gente mora aqui, mas não quer parecer com as pessoas daqui. Antigamente as pessoas tinham vergonha de estar com a boca suja de açaí, porque quem tomava açaí eram os caboquinhos. A comida, a base alimentar do ribeirinho, do caboquinho, é o açaí, então eles sempre estão com a boca e os lábios roxos. Tucupi também é comida de caboquinho, mas quando chefs de fora começaram a falar do tucupi, todo mundo passou a dar valor. Agora você chega na Estação das Docas e tem tudo isso lá, só que em versões muito mais caras.
E pra não ser identificado como caboquinho, é preciso comer o que?
Comer mais animais. Comer vegetais locais traz essa dificuldade social, mesmo pra quem é de esquerda. É um comportamento que vai te denunciar, que vai mostrar que você é caboquinho. Como vou chegar pro meu grupo de amigos de esquerda, que são cool, que são a galera que consome a cultura do Sudeste, que conhece certas teorias, e recusar a carne do churrasco? Vão te olhar e dizer: “Ah, tu não quer comer carne? Então não vou mais te chamar pros churrascos.” Nessas horas eu sempre falo: “Me chama que eu levo o meu churrasco de vegetais!” Mas quando as pessoas falam “Não dá mais pra sair contigo”, o que eles querem dizer, na verdade, é que você não faz mais parte daquele grupo. Todo mundo quer se sentir pertencente e pra fazer parte do grupo não pode comer pupunha, que é comida de caboquinho. Tem que comer o churrasco. A gente quer ser o de fora, o mais branco. Isso vem de uma dor muito grande que ainda não curamos: a dor da colonização.
Gostaria de agradecer a Michelle pelo tempo concedido pra gente fazer essa entrevista, pelo carinho, pelos passeios, por ter compartilhado tanta informação preciosa comigo, por tudo que ela me ensinou em poucos dias, por me inspirar na luta antiespecista e pela banana levada pro aeroporto (e que ela esqueceu de me dar). Obrigada por tudo, amiga samaumeira. Sigamos criando raízes e nos tornando floresta.
A ausência de post semana passada (alimento esse blog semanalmente) não significa que estou fazendo uma pausa. Repare que quanto menos coisas aparecem aqui, mais coisas aparecem do outro lado da tela. E as últimas semanas foram cheias de uma infinidade de coisas, grandes e pequenas.
No lado profissional, teve o convite pra participar de um pequeno projeto que me deixou extremamente feliz e, ao mesmo tempo, ativou uma mini crise de síndrome da impostora (gostaria de dizer que não sofro disso, mas mentir é feio). A militância anda a todo vapor, com a criação de mais um coletivo (o terceiro do qual faço parte no meu território!), só que dessa vez se trata de um coletivo antiespecista. Porque queremos mostrar que veganismo não é coisa de parisiense branca e rica e que nossa quebrada não é um deserto antiespecista.
Nosso coletivo anarquista conseguiu um lote nos Jardins Operários, um fato histórico. Nós estamos na luta pra salvar a última zona agrícola, e uma das poucas áreas verdes, da nossa periferia e somos o primeiro coletivo a receber um lote. Ele faz parte dos lotes ameaçados por um projeto de centro comercial, totalmente inútil, que é o cavalo de Troia do momento pra passar o cimento por cima dessa terra que alimenta uma parte da classe trabalhadora, e imigrante, no nosso território. Como sempre, só a luta muda a vida.
Agora temos mais uma tarefa na nossa longa lista de tarefas da militância: plantar e compartilhar os frutos do nosso lote. Militar pode adquirir muitas formas e confesso que cultivar a terra é uma das maneiras mais prazerosas de militar. Além de nos transformar profundamente. Como canta Zé Pinto: “Amar a terra e nela botar semente / a gente cultiva ela e ela cultiva a gente”.
Passei a manhã e uma parte da tarde trabalhando no lote, junto com camaradas do coletivo, e voltamos pra casa com uma sacola cheia de comida dos jardins, presente das nossas vizinhas de lote. Percebi que cultivar a terra também deixa a gente mais generosa.
No lado pessoal, é tanta coisa que a atividade acontecendo da pele pra dentro é ainda mais intensa do que o que faço da pele pra fora. E ainda teve a visita de um dos meus sobrinhos e da namorada, que veio pedir a mão dela em casamento aqui (com a ajuda dessa tia, que escolheu o lugar e fez as fotos do pedido). Foi lindo e ela disse “sim”.
Paralelo a tudo isso estou trabalhando na transcrição da entrevista de duas companheiras de luta antiespecista que fiz em Belém (Pará), ano passado. Está preparada pra ouvir a palavra antiespecista amazônida? Mal vejo a hora de compartilhar com vocês!
Sem falar que transformamos nossa casa em berçário de plantas pra nossa horta (e pra horta do coletivo também). Começamos a semear em fevereiro e atualmente quase não tem espaço pras duas moradoras humanas, já que é muda pra todos os lados. Na foto acima tem apenas uma parte das nossas mudinhas, o que significa que todo dia passo pelo menos uma hora aguando tudo, colocando do lado de fora pra levar sol e depois trazendo tudo de volta pra dentro no final do dia. Fizemos bastante pra poder compartilhar com as amigas também. E muitas dessas sementes vieram dos Jardins Operários.
Esse foi o almoço de hoje e olhar pro meu prato sempre oferece uma janela pra ver a riqueza que é a minha vida. Aqui tem uma salada com dois tipos de alface selvagem, que ganhei hoje de manhã de Hugo, um dos operários-jardineiros, enquanto trabalhava no nosso lote. As laranjas (orgânicas, da Itália) eu consegui na ocupação onde mora minha namorada, que ganhou uma imensa caixa dessa fruta de uma vizinha que também é militante no nosso território. A couve veio do lote de Lucas, outro operário-jardineiro (que eu entrevistei no quinto episódio do podcast “Jardins da Comuna”, que criei junto com a Biblioteca Terra Livre). Lucas tem uma floresta de couve no lote dele e disse que eu podia pegar o tanto que eu quisesse, sempre que precisasse. O pão tradicional de semolina é feito por uma senhora argelina que trabalha na minha padaria preferida, perto da minha casa. E dentro do potinho tem hummus, feito por mim, com tahina libanesa que encontro na mercearia árabe também aqui perto (no pé do Cohab onde eu morei), de uma família marroquina que é uma simpatia só.
Além de alimentar o corpo e a alma, comida também pode nos inserir numa complexa rede de solidariedade e apoio mútuo. Uma refeição simples, mas que me conecta a várias pessoas bacanas e em luta e a espaços de resistência.