Comidas amazônidas – Belém

Volto com mais um post da série sobre as comidas que degustei e descobri durante a viagem pela Amazônia. Depois do Acre, de Manaus e de uma viagem de barco pelo rio Amazonas, chegamos em Belém, um dos pontos fortes da gastronomia amazônida.

Vou começar com ele, o amado, o idolatrado açaí. Na foto abaixo: açaí branco e roxo (o mais comum), na feira do açaí. Foi a minha segunda vez em Belém e eu já sabia da maravilha que é o açaí por lá. Fiquei feliz em apresentar o açaí autêntico pra Anne, que, como todo mundo que não nasceu na Amazônia, primeiro achou “diferente”, mas antes do final da primeira cumbuca já tinha se apaixonado perdidamente. Comemos com farinha de tapioca (abaixo, à esquerda) e com farinha d’água (abaixo, à direita). Quem nunca comeu açaí puro (sem xaropes, sem açúcar e sem – que as deusas da floresta nos perdoem – leite condensado) vai se surpreender com a profundidade do sabor. Eu fico encantada com a textura também, que tem um aveludado que me lembra abacate.

Mas o fato de amar açaí em temperatura ambiente, sem açúcar e com farinha não significa que não gosto da versão “sobremesa” dele. Só que se for pra comer ele doce, aí prefiro na forma de sorvete, mesmo. E ninguém em Belém faz um sorvete de açaí melhor do que a sorveteria Cairu. É uma sorveteria tradicional, uma instituição na cidade. E apesar de não estar totalmente livre da influência do colonialismo alimentar, com sabores como “ovomaltine” e “kynder ovo”, as frutas regionais são as verdadeiras estrelas dessa sorveteria. O sorvete de açaí (100% vegetal) é um espetáculo e um dos mais premiados da casa. O outro sabor vegano se chama “paraense” e é açaí com farinha de tapioca. Como explicar que acrescentando um ingrediente de sabor quase neutro, como a farinha de tapioca, o sorvete se transforma em algo assim, tão poético? Quem acompanha esse blog há um certo tempo deve ter percebido que tenho opiniões e preferências gastronômicas fortes, e que sou dada a arroubos de entusiasmos com certas comidas. Então toma mais uma arroubo de entusiasmo: são os melhores sorvetes que já tomei! E olha que levo sorvete muito a sério, pois é uma das poucas sobremesas que gosto.

Depois dessa declaração de amor ao açaí, deixa eu falar sobre meu prato paraense preferido (meu e de toda a população local): maniçoba. Repare que o danado tem tudo pra espantar as desavisadas. Parece (com todo respeito) lama do mangue. E quando explicam pra gente o que é, dá um certo medo de provar.

Se você não sabe, maniçoba é feita com as folhas da maniva (mandioca brava), que precisam ser cozidas por vários dias (geralmente de 4 a 7 dias) para eliminar o ácido cianídrico, que é altamente tóxico. Depois elas são misturadas com pedaços de animais e fica parecendo uma feijoada, mas sem feijão.

Vá contra os seus instintos de preservação (“Nazinha, faça com que essa maniva tenha sido cozida por tempo suficiente e não me mate”) e prove, pois esse prato é um desbunde! Obviamente só provei a versão vegetal, mas me disseram que até quem não é vegana aprecia a versão vegetal, considerada mais leve e digesta. Em Belém eu gostei muito da maniçoba do restaurante (vegetariano) Govinda (foto abaixo, à esquerda) e do Purão (foto abaixo, à direita), que é 100% vegano. Aliás o Purão é meu restaurante preferido em Belém. Tem um buffet repleto de delícias, além da maniçoba, as sobremesas são muito boas.

Terminando o “top 3” das melhores comidas de Belém, eu vos apresento pupunha. Não o palmito, mas o fruto (ambos vem da palmeira Bactris gasipaes). Foi a primeira vez que comi pupunha e fiquei encantada. Os frutos são cozidos na panela de pressão (tem que cozinhar bem, senão dá uma coceira louca na boca. É, comida paraense não é para as fracas!) e tradicionalmente degustados com café. Foram minhas amigas Larissa e Maria, da Casa 316, que nos apresentaram pupunha num café da manhã que ficou na memória.

O sabor? Imagine que a batata doce teve uma filha com o milho e ela nasceu como uma versão junta e melhorada dos dois. Essa é a pupunha pra mim. O Armazém do Campo de Belém serve pupunha cozida com café (com leite vegetal!) e um bolo de macaxeira (também vegetal) divino (foto abaixo, à esquerda)! Também fui levada pela minha amiga e camarada Michelle pra provar uma posta de pupunha em um restaurante tradicional da cidade (que não é vegano, mas que tem algumas opções vegetais no cardápio). Abriu-se um mundo de possibilidades à partir da pupunha na minha cabeça. Mais um item na minha lista de coisas urgentes a fazer: me mudar pra Belém e passar um ano inteiro cozinhando, e comendo, pupunha.

Abaixo uma pequena mostra das delícias que comi em Belém, seja na casa de amigas e camaradas (como essa feijoada), em restaurantes (veganos ou não), no centro de Belém e nas ilhas do Combu e Cotijuba. Destaque pro feijão manteiguinha, que descobri lá e pelo qual me encantei (fui encantada várias vezes pelo que as minhas papilas descobriram nessa viagem). No Pará ele é servido como uma salada (em temperatura ambiente e misturado com tomate, cebola, chicória – que eu chamo de “coentrão”) e foi assim que preparei (foto à esquerda, na linha do meio). Mas quando estive em Cotijuba comi esse feijão numa versão afarofada, com castanha-da-Amazônia, e também ficou ótimo (acompanhando a moqueca de banana da terra, na foto à esquerda, na linha de baixo). Mais um destaque: o sorvete de cupuaçu com castanha-do-Amazônas caramelizada (ultima foto da galeria abaixo).

Falei da pupunha servida no café do Armazém do Campo, então vou aproveitar pra falar que é lá que você vai encontrar a pupunha crua (pra preparar em casa), além de muitos outros produtos locais, vindos da reforma agrária. Melhor lugar pra comprar comida na cidade. Tem uns chocolates maravilhosos, com cacau da Amazônia.

Esqueci de fazer uma foto do brunch delicioso que comi na padaria Verderosa, que é vegana e muito aconchegante. E por que estou falando desse brunch? Porque foi ali que provei uma fruta regional chamada “bacuri”. Comi um creme de bacuri na padaria que fez meus olhos brilharem! Que fruta é essa, minha deusa? Que sabor é esse? Infelizmente não consegui encontrar a fruta fresca, mas será minha missão (mais uma) quando voltar pra Amazônia, no final do ano.

Não posso terminar esse post sem falar que minha passagem por Belém não teria sido, nem de longe, a maravilha que foi sem as minhas amigas e camaradas do VEM. Elas me deram casa, comida, carinho, apoio e experiencias incríveis. E presentes comestíveis!

Agora, vamos pra receita de Belém, que na verdade é meio de Belém, meio de Manaus. Explico. Quando estive no MUSA tomei um suco no café de lá e reparei que o cardápio tinha um prato com sabor local e, olha que coincidência, vegano. Mas não estava disponível naquele dia. Perguntei pra cozinheira do café, que era simpática, como ela fazia aquele prato e ela, muito generosa, me explicou direitinho. Me prometi que prepararia aquela comida em Belém, pois lá eu encontraria os ingredientes necessários.

Quando contei dos meus planos pra amiga nos hospedando (cheiro, Vanessa!), ela disse que ali em Belém chamavam aquilo de “arroz paraense”. As únicas diferenças eram que a versão que a cozinheira do MUSA tinha me dado incluía banana da terra frita (porque o povo de Manaus é completamente obcecado por banana da terra e certo estão eles) e castanha-da-Amazônia.

Fiz o prato e ele era tão gostoso quanto eu tinha imaginado. E Vanessa, que é paraense, também adorou, o que me deixou muito orgulhosa. Apesar dos ingredientes serem difíceis (impossíveis?) de encontrar fora da Amazônia, queria deixar a receita registrada aqui no blog, porque tenho certeza que farei novamente assim que meus pés voltarem a tocar a cidade das mangas.

Arroz com tucupi, jambu e banana da terra (um arroz paraense com influência manauara)

Esse arroz lembra risoto, na textura cremosa, mas o sabor é totalmente amazônido. No lugar do caldo de legumes (ou de animais), o arroz é cozinhado no tucupi, que é o caldo fermentado da mandioca. Que idéia brilhante! Agora quero cozinhar tudo no tucupi! Além disso, ele é recheado com jambu, aquela folha que faz a boca tremer. A banana da terra frita acrescenta um toque doce que realça ainda mais o sabor “umami” do tucupi e a castanha-da-Amazônia traz ainda mais sabor e contraste de textura, algo importante num prato como esse, onde todos os elementos são macios. A castanha usada nessa receita é fresca, que é leitosa como polpa de coco seco (aquele que usamos pra fazer leite).

Arroz branco (evite o parbolizado)

Tucupi

Banana da terra (de fritar)

Cebola

Alho

Chicória (também conhecida como “coentrão” ou “coentro do Maranhão”)

Castanha-da-Amazônia FRESCA

Óleo

Sal e pimenta preta

Refogue a cebola picada em um pouco de óleo. Junte o alho picado/amassado e o arroz e refogue por mais alguns segundos. Cubra o arroz com uma mistura de tucupi e água, em quantidade suficiente pra cozinhar o arroz. Pode usar metade água, metade tucupi ou adaptar ao seu gosto. A cozinheira do MUSA me falou pra usar só tucupi, e foi o que fiz, mas o sabor fica bem forte e se você não tiver costume de consumir esse ingrediente, aconselho diluir o tucupi com água pra deixar mais suave. Deixe cozinhar em fogo baixo, coberto, mexendo de vez em quando. O objetivo é conseguir um arroz bem macio e levemente cremoso, como um risoto, então acrescente mais água/tucupi até atingir a consistência desejada e não tenha medo de mexer com a colher de pau (é pra ficar grudado, mesmo).

Enquanto o arroz cozinha descasque e corte as bananas da terra em fatias (no sentido do comprimento). Aqueça um pouco de óleo em uma frigideira e frite a banana até ficar bem dourada dos dois lados.

Quando o arroz estiver cozido e cremoso, junte chicória picada e pimenta preta a gosto. Prove e decida se precisa de sal (eu achei o tucupi salgado suficiente pra temperar o arroz, mas talvez isso varie de tucupi pra tucupi).

Sirva acompanhado da banana da terra frita e salpicado de castanha-da-Amazônia picada.

Manaus-Belém de barco

A série de posts sobre comidas amazônidas (parte 1, no Acre e parte 2, em Manaus) está seguindo o caminho que realmente fizemos no final do ano passado, por isso agora preciso falar sobre a viagem de barco de 5 dias que fizemos no Amazonas, entre Manaus e Belém.

Desde que começamos a sonhar com esse projeto, apareceu a vontade de fazer uma viagem de barco. Pensamos: “Quando teremos outra oportunidade de navegar pelo rio Amazonas?” Eu estava viajando pra conhecer as histórias das pessoas e dos bichos, mas também das árvores e dos rios.

A viagem é bem menos bucólica do que uma pessoa não-amazônida pode imaginar. E não tive a experiência do redário, que é mais típico. Alugamos uma cabine porque estávamos viajando com material de fotografia e muita bagagem, mas também porque, no meio de quase dois meses de trabalho, precisávamos descansar um pouco antes da etapa seguinte. É muito caro viajar assim e a cabine deixou muito, muito a desejar. Não estava esperando luxo, nem sequer um grande conforto. Mas um mínimo de limpeza, eu esperava. Foi uma daquelas experiências que você fica super feliz de ter feito, mas que não faria novamente por nada.

A outra razão pra reservar uma cabine no barco foi poder ter acesso a um frigobar. Eram 5 dias de viagem e, apesar de ter refeições à bordo, só o almoço podia ser adaptado pra ficar 100% vegetal. O jantar sempre era sopa com animais e o café da manhã era sempre pão com queijo e presunto. Ou seja, tivemos que levar quase toda a nossa comida e improvisar refeições sem ter fogão à disposição.

“Ah, deixei de ser vegana porque viajo muito!” Gente, se fosse verdade que é impossível ser vegana e viajar, eu já teria deixado de ser há tempos. Já me tornei um disco arranhado de tanto repetir isso, mas lá vai: se planejar direito, dá certo. Lembre-se que viagem é, por definição, uma situação fora da sua rotina e de caráter temporário. O que estou querendo dizer com isso? Que não vai ser perfeito, que em casa você comeria melhor, que alguns dias você não vai se alimentar de maneira tão nutritiva, mas que tudo bem porque ninguém vai morrer de carência nutricional se passar uns dias se alimentando mal.

Minha estratégia no barco foi focar em preparar um café da manhã bem nutritivo, com algo que a gente acha gostoso e que nos alimenta por horas, almoçar no barco e levar alguns ingredientes prontos pra serem degustados no lanche e no jantar. O jantar era bem leve, mas comíamos melhor no resto do dia.

O café da manhã de todo dia era aveia dormida com chia e leite de castanha (de caixa), banana, pasta de amendoim em pó (comprei especialmente pra essa viagem), castanha-da-Amazônia, nibs de cacau e granola de cacau (comprada pronta).

Como antes do barco estávamos num apartamento em Manaus, pude preparar um mix pro café da manhã. Num potinho misturei a aveia com a chia, numa quantidade que desse pra viagem inteira. À noite eu misturava com leite de castanha e colocava no frigobar da nossa cabine. Na manhã seguinte eu acrescentava os outros ingredientes. A foto à direita foi de um dia em que tomamos um segundo café da manhã, com pão, queijo de castanha meia-cura (do Salgados Veganos Manaus) e café do barco. Aliás, ser vegana num barco na Amazônia é fichinha! Nosso maior desafio foi o café.

Anne e eu tomamos café sem açúcar e quando a gente viaja pelo interior do Brasil, principalmente em lugares pouco- ou nada- turísticos, encontrar café não-adoçado é um desafio. Eu acho café adoçado algo intragável, então por mais viciada que eu seja, prefiro ficar sem café. E olha que isso me rende uma bela dor de cabeça (o vício é uma coisa horrorosa). Felizmente, no segundo dia conversei com a cozinheira e ela aceitou fazer um pouco de café sem açúcar só pra gente, com a condição de chegar no começo do serviço. Glória!

As fotos acima foram feitas na nossa cabine. Repare que minha “bancada de cozinha” era o frigobar e tive que me virar pra preparar as coisas ali. Me programei pra passar no restaurante vegano maravilho do qual falei no post anterior um dia antes de embarcar. Então comprei um molho à bolonhesa de tofu, congelado (o macarrão, eu cozinhei no apartamento onde estava e coloquei na marmita pra ser o primeiro almoço da viagem, já que no primeiro dia, a cozinha do barco não funciona ), mais o queijo de castanha meia-cura, tofu defumado em fatias (maravilhoso!)e pão de macaxeira. Também comprei umas bolachas salgadas de linhaça (crackers), chocolate e algumas frutas. E levei também um tucumã preparado por mim (sobras do meu X-Caboquinho).

As fotos abaixo foram dos nossos jantares: macarrão com bolonhesa de tofu, abacate com cebolinha e limão, tucumã refogado e triturado e pão de macaxeira e uma mistura dos dois. Sim, era um pouco repetitivo, mas foram só 5 dias. E, sinceramente, não dá pra reclamar dessa comida maravilhosa.

Abaixo, além do abacate, tucumã e pão de macaxeira, tem o tofu defumado e fatiado que falei. E mangas!
Comprei bastante banana e manga e foram as frutas que comemos durante toda a viagem (além do abacate, claro). Queria ter feito alguma foto dos lanches (crackers de linhaça com queijo de castanha, chocolate ou manga), mas esqueci.

Abaixo uma foto do almoço servido no barco. Se pedir sem carne (sem animal), ficava 100% vegetal: feijão, arroz, macarrão e farofa (com óleo e alho). O acréscimo da banana ficava por minha conta, porque adoro feijão com banana. Comi isso 4 dias seguidos (o primeiro almoço, como eu disse, levei pronto) e no final da viagem a gente estava sonhando com uma salada crua colorida, com um suco fresco e com um tempero melhor, mas, vou repetir, é uma situação provisória, logo totalmente suportável. Eu não vou reclamar de ter feijão e arroz no prato, né?

Antes que alguém diga, eu sei que fiquei numa cabine, com acesso a um frigobar, e que isso facilitou a minha vida. Daria pra ter tido uma alimentação 100% vegetal se a gente tivesse comprado uma passagem no redário? Daria. Seria menos saboroso, mas ainda assim daria pra não morrer de fome nem passar mal com alguma carência (ninguém desenvolve uma carência em apenas 5 dias). Eu teria misturado a aveia com água (afinal, foi exatamente pensando nisso que comprei a pasta de amendoim em pó, que se transforma num leite cremoso com o acréscimo de água). Teria almoçado no barco do mesmo jeito, os lanches seriam os mesmos e teria jantado pão com frutas.

Esse post era pra falar sobre o que comemos no barco e sobre como dá pra ser organizar e fazer uma viagem desse tipo sendo vegana, então não vou falar do que vi e vivi pra além da comida hoje. Um dia, talvez, eu fale dessa experiência. Ou talvez mantenha ela guardada no peito.

Domingo – 1

Descobri que isso tem até nome em Português: “síndrome do domingo à noite”. Eu acho o nome em Inglês mais evocativo: “Sunday scaries”. (Ou “Sunday Night blues”, o que soa como nome de uma banda, pra mim.) Quase todo mundo já sentiu isso. Aquela tristeza que começa a bater no final da tarde do domingo e se intensifica com a chegada da noite. Porque o fim-de-semana (entenda: o descanso) acabou e amanhã é segunda. E quem gosta de segundas? Tem despertador, tem escola, tem trabalho…

Pensei em passar aqui pra deixar algumas sugestões de coisas que li, vi, ouvi e escutei recentemente e que gostaria de compartilhar. Não ousaria dizer que vai curar sua síndrome do domingo à noite. Só uma revolução social, que mexesse nas estruturas da escola e do trabalho assalariado, poderia curar essa síndrome. Mas se postar mini listas com recomendações bacanas não vai salvar sua noite de domingo, piorar também não vai. E talvez, talvez, você leia, escute ou veja alguma coisa que te faça começar a semana carregando uma fagulha de algo bom. E isso já é uma vitória.

Uns dias atrás publicamos, Anne e eu, um artigo sobre a trilha Chico Mendes, uma iniciativa de turismo de base comunitária dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes (Acre), em uma revista online francesa. Esse é um dos vários artigos que escrevi pro nosso projeto sobre a Amazônia em luta (eu escrevo os textos, Anne faz as fotos). É em Francês, mas tem um botão em algum lugar que traduz pro Português (foi o que o meu sobrinho me disse) e vale a pena conferir pra ver as fotos impactantes que Anne fez.

Chico Mendes, o líder seringueiro que defendia a Amazônia e os direitos dos povos tradicionais da floresta, teria completado 80 anos em dezembro (de 2024). O documentário “Empate” (quem conhece a história de resistência dos seringueiros vai entender de cara o nome), dirigido por Sérgio Carvalho, honra sua vida e luta. O filme estreou nos cinemas brasileiros mês passado, mas como não entrou em cartaz em Natal, não pude assistir antes de ir embora. Mas ainda estou procurando uma maneira de vê-lo (talvez passe nos cinemas parisienses também?).

Desde domingo passado acompanho, hora por hora, os acontecimentos relacionados ao cessar-fogo em Gaza. Meus dias são preenchidos com tristeza, revolta, alguns momentos de alívio e uma grande preocupação também com minhas amigas da Cisjordânia (porque enquanto todos os olhos estão voltados pra Gaza, o poder colonial – Israel- está esmagando a outra parte da Palestina na mesma impunidade de sempre). Mas diante da constante desumanização e diabolização de um povo oprimido, eu queria mesmo era celebrar a força criativa e o talento das palestinas e dos palestinos.

Saint Levant, nome artístico do cantor palestino Marwan Abdelhamid, é um desses exemplos. Ele nasceu em Jerusalém, cresceu em Gaza e foi ainda criança pra Jordânia, fugindo dos bombardeios israelenses com a família. Ele canta em Árabe, Inglês e Francês, sua música é uma mistura deliciosa de moderno com tradicional e ele cultiva um bigodão saído diretamente dos anos 70. O rapaz, um jovem de apenas 24 anos, é de um talento imenso e, coisa rara no “showbizz”, tem uma coragem proporcional. Ele sempre falou publicamente da causa Palestina e desde o inicio do genocídio cometido por Israel, usou todas as oportunidades possíveis pra falar sobre Gaza e dar plataforma pra artistas palestinos. Ano passado ele tocou pela primeira vez no Coachella, o maior festival de música do mundo, e usou a oportunidade pra trazer a Palestina, e Gaza, pro palco e ainda fez um dueto, via zoom, com a banda SOL, de Gaza. Eles gravaram juntos e o resultado foi forte, muito forte. A música se chama “On this land” (“Nessa terra”) e vou fazer uma tradução aproximativa do comecinho: “Permaneceremos aqui / então a dor desaparecerá / viveremos aqui / e a melodia vai ser suavizada / minha terra / minha terra / terra de orgulho / minha terra / terra que sou eu”

Ele também lançou a música Deira, com Mc Abdul, o garoto de Gaza que viralizou ao gravar uma música de rap (em Inglês!) em 2021, quando tinha apenas 12 anos, denunciando as condições de vida do povo palestino sob as bombas israelenses. Uma música belíssima, com acordes e vocais tradicionais, junto com o rap de arrepiar de Mc Abdul, ainda mais linda nessa versão ao vivo.

Mais recentemente, Saint Levant lançou Daloona, uma música com 47Soul, um grupo palestino que eu adoro, e dois outros cantores palestinos: Shadi Borini e Qaseem Alnajjar. O começo dessa música é uma canção palestina de resistência e eu descobri o clipe, por acaso, no aeroporto, enquanto esperava o voo que me traria de volta pra França. Foi uma emoção tão grande que chorei do início ao fim. Acho que além de ser uma musica de resistência (“Me perguntaram ‘amigo, de onde você é?’ / Eu disse: ‘Sou palestino’ / Eu sou de um povo indestrutível / E eu mantenho minha cabeça erguida “), num momento tão difícil da história palestina, e mundial, afinal um genocídio é algo que marca o tempo de mundo com um “antes” e um “depois”, o que realmente me fez chorar é que o clip foi filmado como se fosse um vídeo caseiro de uma comemoração palestina (um casamento, por exemplo). E ver a alegria daquele povo (o clip foi filmado num campo de refugiados – refugiados palestinos- na Jordânia), no meio de tanta desgraça, teve o efeito de um eletrochoque na alma. Quando terminou a música e vi que o clipe tinha sido dirigido pelos irmãos Tarzan, dois cineastas de Gaza atualmente no exílio, a emoção foi ainda maior.

Uma última recomendação de Saint Levant: a música “From Gaza, with love” (“De Gaza: com amor”). Tem humor, tem pitadas de política, o som é maravilhoso e o clip…. Ele tem esse estilo incrível que consegue fazer o brega ficar engraçado e depois se tornar “cool”. Adoro! Acredito muito no poder do humor inteligente pra sensibilizar e dar uma sacudida nas mentes e um basta no processo de desumanização que o povo palestino sofre há tantas décadas.

Termino com uma recomendação tirada dos arquivos do blog: o molho de pimenta do meu pai. A receita é ótima, mas a história é melhor ainda. Bora terminar o domingo rindo.

Força, guerreiras, pra enfrentar a segunda e espero que passem a semana escutando “From Gaza: with love” e sacudindo os ombros.

Um cheiro.

S

O último de 2024

Tinha uma pequena tradição nesse blog: escrever o último post do dezembro sobre as melhores receitas do ano (de acordo comigo mesma) ou contar sobre a ceia de natal com a família (geralmente, a família francesa). Publiquei receitas maravilhosas nesse ano, que entraram pro meu repertório afetivo, e o fim de ano na casa do meu sogro, no interior da França, de onde estou escrevendo essas palavras, rendeu pratos deliciosos que merecem ser compartilhados aqui. Mas no penúltimo dia de 2024, meu coração sangra pela Palestina, principalmente pelo povo de Gaza. Nem acredito que faz mais de um ano que o mundo assiste ao genocídio do povo palestino. Em silêncio. Buscando desculpas pra justificar o injustificável. Apoiando com palavras, com imunidade política, com dólares e euros, com armas.

Não imaginei que seria testemunha do genocídio de um povo durante a minha vida e tudo que consigo escrever aqui hoje, depois de ter visto as últimas imagens dos crimes contra a humanidade que Israel segue cometendo contra o povo palestino há décadas, é que não sei o que fazer com a vergonha que sinto quando penso no que vou responder no momento em que o futuro olhar pra trás, pro nosso presente, e me perguntar como eu pude deixar isso acontecer.

Enquanto a Palestina não for livre, ninguém será. Que 2025 traga justiça e reparação.

Depois da Amazônia

Depois de quase dois meses na Amazônia, voltei pro litoral do Nordeste uns dias atrás. A parte material que me compõe voltou, mas a verdade é que ainda não saí completamente de lá. Tanto porque ainda estou muito impactada com o que vi e vivi, quanto pelo fato de estar trabalhando num projeto antiespecista relacionado aos territórios que visitei. Ou seja, agora é que começa a parte onde, depois de ter mergulhado meu corpo e sentidos naquelas matas, mergulho com a mente pra escrever as histórias que colhi pelo caminho.

E espero compartilhar muitas dessas histórias aqui no blog, além de publicá-las em veículos de mídia independente na Europa, mas vai demorar um pouco. É muita coisa pra tratar: entrevistas, fotos, vídeos, emoções. E enquanto faço o melhor que posso pra honrar essas histórias contando-as da maneira mais verdadeira possível, deixo vocês com alguns registros da viagem, que foi do Acre ao Maranhão, passando pelo Amazonas e Pará.

Volto em breve com uma receita que aprendi na Baixada Maranhense, com uma das maiores guerreiras que já conheci. Vou terminar o dia sonhando com esse bolo e com todas as comidas deliciosas que provei durante a viagem (e que merecem um post especial só pra falar delas). Como o açaí de Belém…

Alguns escritos recentes

Estou escrevendo essas linhas diretamente de Rio Branco, no Acre. Cheguei ontem à noite e essa é a primeira etapa de uma longa viagem que vai durar 50 dias e nos levar, Anne e eu, do Acre ao Rio Grande do Norte, passando pelo Amazonas, Pará e Maranhão. Contarei mais sobre esse projeto no final da jornada, mas antes de começar esse trabalho apareci aqui pra compartilhar alguns escritos recentes que nós, da União Vegana de Ativismo (UVA) escrevemos. O incômodo que pessoas antiespecistas sentiram nos últimos meses é gigante. Enquanto os movimentos sociais e pessoal de esquerda, num sentido mais abrangente, não para de repetir – com razão- que o agro é fogo, praticamente ninguém (além da galera vegana) fala sobre a relação entre o consumo de animais e os incêndios que estão destruindo com nossos biomas. Por isso levantamos essas questões sempre que pudemos, porque nossa consciência política e ambiental não deveria parar de funcionar quando sentamos pra comer.

Vou reproduzir os textos aqui, mas vai ter o link pro lugar onde foi publicado originalmente no final de cada um.

O agro é fogo – e já não tem mais como esconder isso. As queimadas são intencionais, e a pecuária é a principal responsável pelos incêndios florestais, de maneira direta e indireta.

A questão agora é: Como apagar o incêndio? 

Comece apagando o churrasco!

Sabemos que 97% do desmatamento nos últimos 5 anos, no Brasil, foi causado pela agropecuária. Sabemos que a maior utilização da terra no país é PASTO – já temos o equivalente ao estado do Amazonas em pasto! O Brasil se tornou o maior produtor de carne bovina no mundo e o número de vacas já ultrapassou o número de humanos. E quem come tanta carne?

75% da carne bovina produzida no Brasil em 2021 foi consumida no nosso prato (ABIEC). O consumo de carne de vaca no país, em 2023, foi de 39kg/pessoa, enquanto o consumo de carne de frango foi de 46 kg/pessoa. Lembrando que a soja é a principal proteína nas rações das aves. Em termos de desastre ambiental e social, comer carne de vaca ou de frango é mais do mesmo. 

Citando Luiz Marques, autor do livro O decênio decisivo:

“Somos os principais responsáveis pela destruição do patrimônio natural, do clima e da biodiversidade de nosso país. Podemos manter a floresta e tudo o que ela proporciona ou podemos manter a dieta carnívora. Mas não podemos manter os dois. É simples assim.” (post original no perfil da UVA)

Estamos presenciando agora uma enxurrada de manchetes como “O Agro é fogo” ou “O Agro é destruição”. A maioria dessas notícias não personaliza a discussão, tratando o agronegócio como uma entidade sem rosto, algo que todos reconhecem, mas poucos compreendem a fundo. Por esse motivo, achamos importante trazer algumas informações sobre o assunto.

Ao falar de agronegócio, é essencial “dar nome aos bois”. Para discutir o agro, precisamos falar sobre a agropecuária. Neste momento, enquanto você é sufocado pela fumaça das queimadas, não dá para ignorar as mazelas de um sistema agrícola predatório, que transforma a criação em larga escala de animais no bife que chega ao prato. Não há como combater o agronegócio sem refletir, com urgência, as bases de um sistema alimentar falido, tanto no Brasil quanto globalmente.

Sabemos que 97% do desmatamento nos últimos 5 anos, no Brasil, foi causado pela agropecuária. Sabemos que a maior utilização da terra no país é PASTO – já temos o equivalente ao estado do Amazonas em pasto! O Brasil se tornou o maior produtor de carne bovina no mundo e o número de vacas já ultrapassou o número de humanos. A monocultura da soja que devasta nosso cerrado e outras regiões do país, é quase em sua totalidade utilizado para consumo de animais que serão mortos e não para consumo direto das pessoas.

Diante dessa realidade, não podemos deixar de considerar que “ quando a carne é a protagonista do prato, o agro é o protagonista do campo”. Mas quando a alimentação tem como protagonistas vegetais frescos, a agricultura familiar é colocada no centro. Alimentação vegetal é resistência contra um sistema que causa fome, miséria, concentração fundiária, genocídio indígena e ameaça a saúde do planeta. 

Você pode não se importar com as relações de opressão dos animais humanos para com os animais não humanos, mas se você tem preocupações ambientais e preza pelo senso de comunidade, pode enxergar uma realidade bem indigesta pela frente: é insustentável consumir animais nessa quantidade atual. Não estamos trazendo uma imposição ou obrigação em ser vegana, mas pense em considerar o veganismo como um ato político de transformação social, como um movimento social de lutas anti-opressão, que pode também contribuir para uma sociedade sustentável.

Citando Luiz Marques, autor do livro O decênio decisivo:

“Somos os principais responsáveis pela destruição do patrimônio natural, do clima e da biodiversidade de nosso país. Podemos manter a floresta e tudo o que ela proporciona ou podemos manter a dieta carnívora. Mas não podemos manter os dois. É simples assim.”

(texto publicado originalmente no site da Mídia Ninja)

Quem come como o colonizador, pensa como o colonizador?

Perdi a conta de quantas vezes contei essa história. Foi há muitos anos e eu estava visitando minha família, no Sertão do Rio Grande do Norte. Era a primeira vez que eu ia lá depois de ter me tornado vegana. A tia que me hospedou estava preocupada, repetindo que agora não sabia mais o que fazer pra eu comer. “Tia, a senhora não precisa se aperrear, não. Eu como tapioca, cuscuz, inhame, feijão, arroz, farinha, batata doce, macaxeira, todas as verduras e frutas. Tudo que eu sempre comi com a senhora, só que sem carne nem queijo” – respondi.

Quando ela me chamou pra comer, encontrei uma mesa farta. Tinha feijão verde, de uma roça ali pertinho, arroz, batata doce, macaxeira, verduras cozidas e salada crua. Enchi o prato e antes de sentar pra comer, minha tia se aproximou, olhou aquele monte de comida colorida na minha mão, suspirou e disse: “Minha fia não achou nada pra comer, não foi?” 

Aquela observação me deixou chocada. Onde eu via fartura, minha tia via vazio. 

Repare que ela estava segurando um prato quase idêntico ao meu, com uma única diferença: no dela tinha um pedaço de frango. Um frango que ela tinha comprado congelado, no supermercado mais próximo. Aos olhos da minha tia, aquilo, sim, era comida.

Essa história é uma perfeita ilustração de como valorizamos muito mais carne (seja ela de vaca, galinha ou qualquer outro animal) do que vegetais. O conceito de “fartura” está, quase sempre, associado a uma mesa, ou geladeira, cheia de carnes e laticínios. Mas qual o impacto dessa crença na sociedade e nas nossas vidas?

Vamos começar fazendo algumas perguntas simples sobre a origem da comida que comemos. Quem produz a quase totalidade da carne no país? Resposta: o agro, seja  diretamente, através da pecuária, seja indiretamente, através da soja e do milho que são transformados em ração pros animais de abate. Agora vamos aprofundar um pouco mais a nossa pesquisa.

Quem trouxe as vacas, galinhas, ovelhas, cabras e porcos pra esse território conhecido como Brasil? Pouca gente reflete sobre isso, mas esses animais não são nativos: eles foram trazidos pra cá pelos invasores europeus. Por um lado, porque era a comida que os colonizadores tinham costume de comer e, por outro lado, pra servir de ferramenta de expansão territorial. Foi “passando a boiada” que as terras foram, e ainda são, colonizadas, até que nos tornamos o segundo maior produtor de carne de gado e de frango do mundo! E se engana quem acha que a maior parte da carne e frango produzidos no Brasil é exportada. De acordo com a ABIEC, atualmente 75% da carne de gado produzida no Brasil é consumida dentro do país e quase 70% do frango brasileiro vai parar no nosso prato. A carne desses animais, que não fazia parte da dieta dos povos originários antes da invasão, ocupa hoje um espaço central no nosso prato: enquanto o consumo anual de carne, frango, porco e cabra é de quase 100kg por pessoa, comemos menos de 50kg de verduras por pessoa, anualmente (FAO). 

O que eu vou dizer agora provavelmente vai gerar antipatia pro meu lado, mas aceito correr esse risco. Quando a gente escolhe comer como o colonizador, a gente acaba apoiando o projeto de colonização, que na sua encarnação mais recente atende pelo nome de agronegócio. Valorizar carne e frango acima de qualquer outro alimento reforça o poder do agro. É por isso que uma das palavras de ordem da UVA (União Vegana de Ativismo) é: “Quando a carne é a protagonista no prato, o agro é protagonista no campo.”

Na outra ponta dessa mesa está a agricultura familiar, responsável por dois terços da produção de frutas, verduras e legumes no país. Acho que agora já temos mais elementos pra responder a pergunta que fiz alguns parágrafos acima. 

Quem sai fortalecido quando acreditamos que “fartura” é obrigatoriamente uma grande quantidade de carne, queijo e ultraprocessados (os pacotinhos e potinhos fabricados pela indústria)? Quem perde quando acreditamos que vegetais, e alimentos frescos em geral, são inferiores – tanto em sabor, quanto em status social?

E tem mais! 57 mil pessoas morrem anualmente no Brasil por causa do consumo de ultraprocessados. O consumo de carnes, principalmente as vermelhas e os embutidos (como mortadela e salsicha) está adoecendo a população, principalmente as classes populares. Aumentar nosso consumo de vegetais é essencial pra evitar o nutricídio da população mais vulnerável, mas estamos caminhando na direção oposta. A última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE mostrou que 90% das pessoas no país não comem frutas e verduras em quantidade suficiente, alimentos essenciais pra manutenção da saúde… 

Quando não valorizamos a comida que vem da terra, desvalorizamos também quem plantou aquela comida. O mais triste é ouvir isso da boca de quem vive da terra. Quem nunca ouviu um agricultor falar: “Planto, mas não como” ? Precisamos mudar essa mentalidade.

Enquanto lutamos pra construir o mundo no qual queremos viver, com abundância pra todas e todos, já podemos começar a sentir o gostinho dele na mesa, ao decidir que “fartura” de verdade é comida que nasce na terra, de origem agroecológica. 

Se quisermos derrubar o agro, precisaremos boicotar seus produtos. Não dá pra continuar repetindo que queremos o agro fora do campo enquanto enchemos o prato com a carne que eles produzem. Pra descolonizar a alimentação, precisamos nos recusar a comer como o colonizador.

(texto publicado originalmente no site da Teia dos Povos)

O que como em uma semana

Tem uma categoria de vídeos muito popular na internet chamada “o que como em um dia”. Me fascina ver o que outras pessoas veganas comem, pois a variedade de alimentos vegetais é quase infinita e me inspira ver pratos de outros lugares. Só que quando você começa a ver muitos vídeos “o que como em um dia” acaba descobrindo que os pratos estão cada vez mais parecidos e, o que mais me dá desgosto, que a galera anda obcecada com o consumo de proteínas. E se antes eu via isso entre pessoas que comem animais, agora eu vejo cada vez mais veganas caindo na armadilha da proteinomania.

Não vou falar por que acho isso uma armadilha hoje, mas fiquei com vontade de compartilhar o que aparece no meu prato no dia-a-dia, pois nem todo mundo está “medindo seus macronutrientes”, consumindo proteína concentrada em pó (de origem animal ou vegetal) todos os dias nem comendo os mesmos pré e pós treinos da moda. E como acho que um dia só não é representativo da maneira como nos alimentamos, resolvi compartilhar uma semana inteira de refeições. Acho que pra saber realmente como a gente se alimenta, teria que ser um mês inteiro, pois pelo menos pra mim pode ter bastante variação de uma semana pra outra, dependendo da quantidade de trabalho que tenho, se estou viajando ou em casa, se estou em Natal ou em Paris… Mas no final das contas, a semana que documentei aqui foi bem próxima do que seria uma semana típica na minha vida, atualmente, nesse época do ano (procure sempre comprar vegetais da estação).

Quarta-feira

Café da manhã: tapioca com hummus, tomate e manjericão fresco, banana da terra cozida, hummus + café. Almoço: feijão macaça, arroz da terra no leite de coco, couve refogada e jerimum com coco + pepino, beterraba crua ralada e melão. Lanche: batata doce cozida, hummus com jerimum e grude com melado + café. Jantar: cuscuz no leite de coco e carne de caju guisada. Ceia: aveia dormida com chia e leite de coco, banana (congelada), maracujá e 1 castanha do Pará.

Eu como maracujá assim, mastigando e engolindo as sementes (às vezes diretamente da casca) e adoro colocar rodelas de banana congelada na minha aveia (ela não fica totalmente dura). Eu janto cedo (por volta das 19h), e às vezes sinto fome antes de dormir e como algo leve. Não sou adepta de jejum nem de deitar com a barriga roncando. Aliás, seguindo o toque de uma amiga nutricionista e vegana, observei que quando deito com fome tenho pesadelos com mais frequência.

Quinta-feira

Café da manhã 1: tapioca com hummus com jerimum e couve refogada + café. Café da manhã 2: batata doce cozida, hummus, meio mamão papaia com 1 castanha do Pará + café. Almoço: feijão macaça, arroz da terra no leite de coco, farofa de carne de caju, chuchu refogado e banana da terra grelhada + salada de folhas (alface lisa, alface americana, alface roxa e rúcula), pepino e abacaxi. Lanche da tarde: arepa de carimã (mandioca puba) misturada com hummus (na massa), tomate e manjericão fresco, café com leite de coco (sempre caseiro) e goiaba. Jantar: cará cozido, tofu mexido e caju. Ceia: meio mamão papaya com aveia dormida com chia e leite de coco.

Nas quintas vou à feira, então tomo café cedo, vou pra feira, carrego peso embaixo do sol e quando volto pra casa já estou faminta novamente. Por isso nas quintas tomo dois cafés da manhã. Eu nunca adoço meu café (nem com açúcar, nem com adoçante – gosto amargo). Leite de coco aqui em casa é sempre fresco, ou seja, caseiro, feito com o coco seco que compro na feira. Também compro carimã na feira. Carimã é a macaxeira (mandioca) fermentada na água por 15 dias, um ingrediente típico da cultura alimentar indígena, que já foi mais popular aqui no Nordeste, mas que hoje pouca gente conhece. Sou apaixonada por carimã e desde que descobri que podia comprar na feira, diretamente do produtor, nunca mais faltou na minha geladeira. Cará, pra quem não sabe, é bem parecido com inhame. Compro sempre cará porque é bem mais barato que inhame e tem praticamente o mesmo sabor.

Sexta-feira

Café da manhã: tapioca com hummus com jerimum, meio mamão papaya com 1 castanha do Pará + café. Lanches da manhã: meio copo de lama de coco (polpa de coco verde) e 1 grude com mel de engenho (melado). Almoço: fava com tomate, resto da farofa de carne de caju, farinha e beterraba cozida no vapor + salada de folhas, pepino e abacaxi. Lanche 1: batata doce cozida, hummus com jerimum e café. Lanche 2 (compartilhado com a família): pipoca (de panela). Lanche 3: vitamina de banana com leite de soja, pasta de amendoim e cacau. Jantar: macaxeira cozida, tofu mexido e antepasto de berinjela. Ceia: lama de coco e goiaba.

Tapioca, pra mim, é essencial pra começar o dia feliz. Grude é uma iguaria do meu território, feita com goma (a que usamos pra fazer tapioca), coco seco ralado e sal. Não sei fazer, então quando alguém traz grude pra casa (vende em alguns lugares específicos da cidade – e esse é bem pequenininho) eu faço a festa. Gosto muito de comer com um fio de mel de engenho, contrastando com o sal do grude. Fica uma delícia! No almoço procuro comer uma salada crua com alguma fruta e gosto das minhas saladas sem tempero nenhum (nem molho nem azeite). Os leites que consumo no dia-a-dia são de coco ou castanha, feitos por mim. Não gosto de leite de soja, mas nesse dia era o que tinha pronto na geladeira (de caixa, sem açúcar) e foi o que usei.

Sábado

Café da manhã: tapioca com hummus com jerimum e tofu mexido, meio mamão papaya com aveia dormida (aveia, chia e leite vegetal) e 1 castanha do Pará + café. Almoço: fava, macarrão com molho de tomate (caseiro) e grão de bico, batata doce e beterraba cozidas + banana e mexerica. Lanche: banana. Jantar: cará cozido, grude, queijo de castanha fermentado, café + salada de frutas (banana, mamão, abacaxi e laranja).

Aos sábados dou aula o dia inteiro, em um cursinho popular em um bairro bem afastado de onde moro. Dou aula das 9h às 16h, mas como preciso pegar dois ônibus pra ir e dois pra voltar, saio de casa por volta das 7h e chego em casa depois das 18h. Por isso o café da manhã tem que ser reforçado e levo a minha marmita pro almoço, que é compartilhado com as outras professoras e alunas. Eu não gosto de macarrão, mas sempre faço uma porção grande pra compartilhar com as alunas, que adoram. Também compartilhei a fava, que eu tinha feito no dia anterior. Quando chego em casa, depois de um dia cansativo e 2 horas dentro de um ônibus, geralmente sinto mais enjoo do que fome, por isso o jantar foi leve. Esses pratos são bem pequenos, do tamanho “sobremesa” e as cumbucas que uso também são pequenas.

Domingo

Café da manhã: duas tapiocas com queijo de castanha fermentado e tomate, mamão + café. Almoço: feijão macaça misturado com farinha, arroz com cenoura e espinafre com creme de castanha e grão de bico + salada de folhas, pepino e abacaxi. Jantar: pizza com massa de fermentação lenta, tomate seco e rúcula. Ceia: mamão com abacate, linhaça moída e 1 castanha do Pará.

Minha sobrinha, que também é vegana, estava desejando uma pizza, então fiz algo que não faço quase nunca: pedi uma e comi um pouco com ela. Eu não gosto muito de pizza, mas como essa massa era de fermentação lenta, achei saborosa. Porém o queijo vegetal era industrializado e não gostei nem um pouco do sabor. Eu tento comer uma castanha do Pará por dia pra garantir a dose diária de selênio. Adoro o sabor, então se fosse mais barata aqui em Natal, eu comeria uma quantidade maior.

Segunda

Café da manhã: uma tapioca com queijo de castanha fermentado e outra com abacate amassado com limão e coentro + café. Lanche da manhã: mamão com 1 castanha do Pará. Almoço: feijão carioca com quiabo grelhado, farofa de cenoura + salada de folhas, pepino, beterraba crua ralada e abacaxi. Lanche: arepa de carimã (mandioca puba) com queijo de castanha fermentado (na massa), com guacamole (abacate amassado com limão e coentro), café e um docinho de tâmara com castanha de caju, pasta de amendoim e cacau (feito pela minha irmã). Jantar: sopa de feijão carioca, beterraba, berinjela e coentro + batata doce cozida. Ceia: mexerica e caju.

O que chamo de “arepa” são panquecas salgadas com carimã e algum outro ingrediente pra dar liga (às vezes hummus, às vezes queijo de castanha, mas vezes batata doce cozida e amassada, às vezes feijão amassado). Não sou muito fã de doces e raramente como açúcar. Por questão de gosto, mesmo. Quando como algo doce, geralmente é adoçado com frutas frescas ou secas, e mesmo assim como só um pedacinho. Esse doce que minha irmã faz é uma delícia e gosto de comer antes de me exercitar, pra me dar mais energia. Atualmente faço natação uma ou duas vezes por semana (nem sempre dá pra ir duas vezes) e faço sessões curtas de calistenia no meu quintal nos outros dias.

Terça

Café da manhã: tapioca com queijo de castanha fermentado e tofu mexido, mamão com 1 castanha do Pará + café. Almoço: feijão macaça branco, farofa de cebola e purê de jerimum + salada de alface, pepino e beterraba crua ralada. Lanche 1: pão de fermentação natural com queijo de castanha fermentado, vitamina de abacate e banana (congelada) com leite de coco (caseiro). Lanche 2: pão de fermentação natural com queijo de castanha fermentado, café e um docinho de tâmara, castanha de caju, pasta de amendoim e cacau. Jantar: cuscuz no leite de coco, tofu mexido e uma goiaba.

Terça é dia de natação das 18h as 19h, então faço um lanche mais reforçado (ou dois lanches menores) e janto mais tarde, quando volto da natação. Eu só gosto de pão de fermentação natural, então como raramente, só quando minha irmã faz ou compra (como foi o caso ontem). E, sinceramente, prefiro tapioca, batata doce ou macaxeira.

Então aqui está tudo o que comi em uma semana (do 21 ao 27 de agosto). E como contexto importa, preciso dizer que sou nordestina, vegana, moro atualmente em Natal (RN), compro todas as verduras, frutas, tubérculos, goma (pra tapioca), feijão e alguns cereais (arroz da terra, milho pra canjica e pipoca) na feira livre do meu bairro e cozinho todos os dias, em todas as refeições. E, como disse, tenho um paladar que não gosta de doces, mas também não gosto muito de massas (pão, macarrão, pizza), nem de frituras.

Talvez seja importante concluir esse post dizendo que nunca me consultei com uma nutricionista, e não faço nenhum tipo de regime, nem pra perder peso, nem pra ganhar massa. Como essas coisas porque gosto, mesmo, e porque me sinto muito bem e feliz com a maneira como me alimento.

Vegetal, ancestral e autêntico

Veja como são as coisas. Oito anos atrás eu postei um creme de castanha (pra passar na tapioca ou no pão), que chamei de “requeiju”. A receita levava missô, vinagre, levedura de cerveja e até polvilho. Desde então meu estilo culinário evoluiu e minhas receitas foram ficando mais simples e, na falta de uma palavra melhor, verdadeiras. Não que tivesse algo de falso nas receitas antigas, mas quanto mais meu tempo de vegana aumenta, mais me convenço de que o futuro não é apenas vegetal. Ele é vegetal, ancestral e autêntico. O que significa, pra mim, que a comida capaz de alimentar nosso futuro vem da terra (vegetal), é, na sua maior parte, nativa do território que os nossos pés pisam (ancestral) e respeita a integridade do alimento (nem é ultraprocessada nem ultracomplicada). Então deixa eu voltar pra evolução das minhas receitas.

Depois da versão elaborada que citei acima, comecei a fazer uma versão de queijo de castanha fermentado com kefir. Apenas 3 ingredientes: castanhas, água de kefir e sal. Postei essa receita aqui no blog no início do ano. É uma delícia e muito simples de fazer, mas vinha com uma complicação: pouca gente tem grãos de kefir de água em casa. Isso deixava minha receita inacessível pra maior parte das pessoas.

Até que umas semanas atrás minha irmã me contou que estava fermentando o queijo de castanha no café dela (o Libre) usando… nada. Isso se chama “fermentação selvagem”, que é quando você deixa um alimento ser fermentado naturalmente pelas bactérias que vivem no ar. Dá certo, pode confiar. E desde então é assim que faço queijo de castanha cremoso. Já atualizei a receita, incluindo a fermentação selvagem, e você pode ter acesso clicando aqui.

Fermentação selvagem é um aprendizado filosófico. Você tem que confiar em seres invisíveis, acreditando que eles estão ali na sua cozinha e que vão querer entrar no seu creme de castanha e transforma-lo em queijo. E tem que confiar que apenas os seres benignos vão entrar ali, e pra isso você vai ter que superar algo bem recente na história da humanidade, que é a desconfiança e até medo de toda comida que não sai de um pacote com uma data de validade impressa. Quando eu trabalhava numa queijaria vegetal em Berlim e postava (no meu finado perfil do Instagram) fotos do processo de fermentação, chovia perguntas sobre como saber a diferença entre “fermentado” e “estragado”. No processo de fermentação você vai precisar aprender a confiar no seu nariz e vai, tenho certeza, resgatar (ou conquistar) sua intuição culinária. Aquilo que pessoas que cozinham com frequência tem e parece um super-poder pra quem vive longe da cozinha: saber (olhando, cheirando e provando), entre outras coisas, quando uma comida está estragada.

Então uma receita tão simples quanto esse queijo de castanha fermentado tem o potencial de te convencer que o futuro é vegetal (pois não precisamos de exploração animal pra ter prazer na mesa) e te ensinar a confiar no alimento, nos seres invisíveis com quem dividimos esse planeta e em você mesma.

Termino com o meu lanche de hoje, que incarna lindamente minha filosofia na cozinha, coerente com minha ética antiespecista (e a luta decolonial e anticapitalista) e que mostra, mais uma vez, como minhas receitas seguem evoluindo.

Fiz um panqueca misturando carimã (macaxeira fermentada, também conhecida como “puba” ou “mandioca puba”) e cuscuz no leite de coco (um resto do jantar de ontem). Assei na frigideira, até ficar cozida e levemente dourada dos dois lados. Servi com creme fermentado de amendoim, que também foi atualizado hoje (está mais simples e mais rápido, sempre delicioso) e coentro. Macaxeira, milho e amendoim reunidos no mesmo prato. Três ingredientes dos nossos territórios, representantes fortes da nossa cultura alimentar. Um alimento fermentado tradicional, a carimã, junto com um alimento fermentado recente (mas pensado por um cozinheiro da Amazônia), que honra a comida da nossa terra e ajuda a descolonizar nossas práticas alimentares (xô, requeijão!). Se ficou gostoso? Ficou delicioso!

Um breve curso sobre fazer feira, comer bem e evitar desperdícios na cozinha – parte 2

Se você leu o último post, já descobriu meu método pra comprar comida fresca na feira (frutas, verduras, temperos) e alimentar uma casa com muitas bocas. Agora vou falar sobre o que acontece quando volto da feira e como organizo as refeições da semana.

1- Higienizar os vegetais e guardar

Assim que chego da feira começo o processo de limpar e guardar os vegetais. Coloco as folhas (alface, rúcula, couve) e as ervas/temperos (cebolinha, coentro, manjericão) em uma bacia com água e algumas gotas de hipoclorito. Deixo de molho por meia hora, enquanto guardo o resto dos vegetais.

Como aqui em Natal faz muito calor, principalmente nessa época do ano, guardo muita coisa na geladeira. Dedico a maior gaveta da geladeira pras verduras (abobrinha, jerimum, quiabo, berinjela, tomate, batata…) e as frutas maduras vão pra uma gaveta menor. As frutas que não estão maduras vão pra fruteira, assim como os tubérculos (batata-doce e cará), a cebola e o alho.

A macaxeira, apesar de também ser um tubérculo, vai direto pro congelador, pois compro ela já descascada e cortada em pedaços, em sacos de 1kg. Quando queremos comer macaxeira, não precisa descongelar. Colocamos ela congelada na água e levamos ao fogo. Metade da goma fresca também vai pro congelador. A outra metade vai pra água (a maneira certa de guardar goma fresca) e começará a ser consumida no dia seguinte. Também aproveito pra colocar feijão de molho pro dia seguinte.

Depois que as folhas ficaram meia hora na água, a gente enxágua, escorre e armazena num recipiente plástico grande e com tampa, enroladas em panos de prato limpos. Assim elas ficam frescas por vários dias e quando queremos fazer salada, é só abrir e pegar. É prático e economiza o tempo de preparação das refeições durante a semana. Guardar as categorias de vegetais no mesmo lugar também ajuda a reduzir o desperdício: não corremos o risco de achar uma ou outra verdura apodrecendo no fundo da geladeira, escondida atrás de outras coisas.

Resumindo:

Geladeira: folhas e ervas frescas (lavadas) dentro de uma vasilha de plástico fechada, enrolada em um pano de prato limpo + Verduras (gaveta) + Frutas maduras (gaveta)

Fruteira: tubérculos, frutas verdes, limão, cebola e alho

Congelador: macaxeira (descascada), goma e frutas maduras demais (porções pequenas, pra fazer vitamina ou suco)

2- Fazer um cardápio

Como sei o que tem na geladeira, o que precisa ser preparado logo, o que aguenta ainda alguns dias, vou cozinhando seguindo essa ordem. Mas recentemente resolvi fazer um cardápio (começando na quinta, que é o dia da feira do meu bairro) pois, durante a semana, a maior parte do almoço é feita pela cuidadora da minha mãe, e isso dá mais autonomia pra ela. E o pessoal da casa estava com o hábito de me perguntar, no início da noite, “O que tem pro jantar?”. Às vezes eu estava fazendo algo e tinha que parar e pensar: “O que vou fazer pro jantar? O que comemos ontem, pra não repetir hoje?” Eu estava ficando chateada com isso. Agora todo mundo sabe o que é o jantar todo dia, não precisa mais me incomodar com perguntas, e quem não gostar do cardápio pode já começar a fazer outra coisa assim que a noite cai.

Também faço isso na minha casa, mesmo sabendo o que quero preparar todos os dias, pra facilitar o repasse. Nos dias em que Anne cozinha, ela sabe o que cozinhar (sempre seguindo a lógica do que está maduro/precisa ser consumido primeiro) sem precisar me perguntar. Mesmo se você mora sozinha, escrever um cardápio simples ajuda em vários sentidos. Além de reduzir o desperdício, tem dias que a gente está cansada demais pra criar um prato com o que tem na geladeira e precisa ser cozinhado naquela noite, aí acabamos comendo algo pronto e/ou deixando alguns vegetais estragarem.

O cardápio que fiz aqui é muito simples e segue o padrão alimentar da nossa casa (falei sobre isso no último post). Na verdade é mais um lembrete da ordem em que devemos comer os vegetais do que um cardápio com receitas. Mas eu acho que ter uma estrutura simples, que corresponda ao seu padrão alimentar, acaba reduzindo o tempo que você passa cozinhando.

Se o objetivo for diversificar a sua alimentação, ou deixá-la mais vegetal, dê uma olhada na página Receitas aqui do blog pra ter ideias de receitas pra incorporar no seu dia-a-dia. Mas antes de escolher uma lista de receitas diferentes pra testar a cada semana, uma dica importante: simplifique, não complique. Talvez incorporar uma salada crua com vários ingredientes ao seu almoço atual e comer uma fruta no lanche sejam os primeiros passos a serem tomados. Com certeza são os mais simples e que exigem menos esforços.

3- Preparações de base pra semana

Tem coisas que a gente pode preparar com antecedência e comer durante a semana inteira. Como sempre, vai depender do seu padrão alimentar, mas acho que quase todo mundo come feijão todo dia (se não come, deveria comer!). É possível fazer feijão, e arroz, pra semana e congelar porções que correspondam ao consumo diário da sua casa. E se você gosta de jantar sopa com frequência, pode fazer a mesma coisa.

Incluo aqui coisas que levam algumas etapas pra serem preparadas. Como colocar feijão e/ou grão de bico de molho, colocar castanha de caju de molho (pra fazer leite como expliquei aqui), misturar farinha de grão de bico com água e deixar fermentar pra fazer grãomelete (receita aqui). São coisas que você faz uma vez e pode consumir durante toda a semana.

4- Preparar pastas/patês

Dando continuidade ao ponto 3, considero que pastas (pra passar na tapioca, no pão ou acompanhar cuscuz e tubérculos cozidos) é uma preparação de base pra semana. Principalmente numa casa onde tem pessoas veganas, ou seja, que não acompanham seus cafés da manhã e lanches do trio manteiga/requeijão/queijo.

Escolho uma ou duas pastas, preparo em quantidade e durante o resto da semana tem acompanhamento pronto pros cafés da manhã, lanches e jantares da família. Precisa de um pouco de organização e tempo, mas é bem menos complicado do que imaginam. E muito mais saudável, barato e saboroso do que comprar uma pastinha pronta (ultraprocessada ou artesanal, animal ou vegetal).

Hummus pra semana, mais duas porções de grão de bico cozido que foram congeladas e entrarão em outros pratos na semana seguinte.

Tem muitas receitas de pastas no blog, só clicar aqui pra ver. Mas já deixo algumas sugestões. Pra quem está no Nordeste, esse queijo cremoso de castanha é melhor que requeijão. Outra opção no mesmo estilo é o creme fermentado de amendoim. Pra quem tem uma loja de produtos árabes por perto, hummus é o clássico que não dá pra enjoar nunca. Pra quem não tem acesso a tahina (pasta de gergelim) de qualidade, mas gosta da ideia de hummus, esse hummus cubano é perfeito. E ainda mais acessível pra nós, no Brasil, é a minha pasta de feijão macaça (ou fradinho) com amendoim. Baratinha, nutritiva e deliciosa.

Termino com a opção mais simples de todas, que nem precisa preparar com antecedência, pois fica pronta em segundos: abacate (maduro) amassado, temperado com sal e limão. Se puder acrescentar um fio de azeite e alguma erva (fresca ou seca), fica melhor ainda.

5- Dividir tarefas

Alimentação é responsabilidade de todo mundo. Se você mora sozinha a história é diferente, mas se divide a casa com uma ou várias pessoas, as tarefas relacionadas a alimentação devem ser divididas. Apesar de ser a pessoa responsável por fazer a feira na casa da minha mãe, tem a participação de outras pessoas nas diferentes etapas que envolvem comprar e preparar a comida, além das tarefas de limpeza na cozinha.

Uma das minhas irmãs me levava pra feira e ajudava a carregar tudo. Agora que o horário de trabalho dela mudou, é um irmão (que não mora com a gente) que está fazendo isso. Minha irmã caçula se responsabiliza por comprar uma parte da comida de mercearia da casa. Nossa irmã mais velha compra a outra parte. A cuidadora da minha mãe divide a tarefa de higienizar e guardar os vegetais comigo, além de preparar a base do almoço (feijão e arroz) durante a semana. Eu cozinho as verduras do almoço, além de fazer sopa ou cozinhar tubérculos pro jantar. Antes de almoçar, separo a marmita da minha prima, que é técnica em enfermagem e trabalha numa UBS, pra ela levar no dia seguinte. Quando essa mesma prima faz cuscuz pro jantar, ela faz em quantidade pra sobrar pro nosso próximo café da manhã (e o dela). Se ela fizer uma feijoada (vegetal) no sábado pra levar nas marmitas dela da semana, ela faz bastante pra gente almoçar feijoada no domingo. Minha irmã mais velha geralmente cozinha pra gente nos fins de semana. Durante a semana, a irmã do meio geralmente lava a louça do jantar e, às vezes, a do almoço também. Já a prima lava a louça nos fins de semana. E por aí vai. Semana passada até meu irmão caçula e meu pai, que não moram na casa com a gente, participaram. Meu irmão descascou uma ruma de coco seco que ele trouxe pra gente (nem lembro de onde) e no dia seguinte meu pai rapou tudo. Depois congelei o coco em porções pequenas pra fazer leite durante as próximas semanas.

Não é uma divisão perfeitamente igualitária e algumas pessoas têm muito mais responsabilidades do que outras na nossa casa. Mas achei importante contar como fazemos na minha família justamente por isso. Não poder ter uma divisão de tarefas perfeita não é desculpa pra não contribuir com o que está ao alcance de cada uma hoje. Qualquer responsabilidade que você tomar pra si, mesmo que pareça pequena (digamos, lavar apenas a louça do jantar aos sábados, ou preparar o almoço do domingo), alivia um pouco a carga da pessoa que, no momento, faz tudo sozinha na sua casa. Todo mundo tem que comer, não é? Então deixa eu repetir mais uma vez: ALIMENTAÇÃO É RESPONSABILIDADE DE TODO MUNDO.

Espero que essas dicas tenham sido úteis. Fazia tempo que eu não escrevia um post nesse estilo, mas agora deu vontade de escrever outros. Talvez até propor cursos sobre organização e divisão de tarefas alimentares dentro de uma casa, quem sabe…

Um breve curso sobre fazer feira, comer bem e evitar desperdícios na cozinha – parte 1

Vim passar uma temporada de um ano no Brasil, por razões familiares, e estou morando na casa da minha mãe. Aqui somos seis mulheres: minha mãe, minhas três irmãs, uma prima e eu. Mas durante a semana tem uma sétima mulher, a cuidadora da minha mãe, que toma café e almoça com a gente. E à noite frequentemente tem uma sobrinha, que dorme com a minha mãe quatro noites por semana e toma café com a gente no dia seguinte. Dividimos as contas da casa entre nós seis e a parte que me toca é a “comida de feira”: verduras, frutas, coco seco, goma fresca e farinha. Minha irmã mais velha se encarrega de comprar a “comida de mercearia”: feijão, arroz, fubá, óleo, café… Outra irmã se encarrega de comprar castanhas (de caju e do Pará) e sementes (chia, linhaça).

Adoro ir à feira, então é uma missão semanal que, apesar de cansativa, me deixa feliz. Geralmente vou acompanhada de outra irmã, que tem carro e me ajuda a carregar tudo, e frequentamos a feira do meu bairro, que acontece todas as quintas. Nessa feira tem uma mistura de comida trazida da CEASA de Natal com produção de pequenas agricultoras, que cultivam e vendem seus próprios alimentos ali (principalmente ervas e folhas) e comida vinda de sítios das redondezas (principalmente frutas). A farinha de mandioca e a goma fresca vêm de Brejinho, um município que fica a menos de 60 km de Natal e que tem fama de produzir a melhor farinha do estado, vinda da agricultura familiar.

Tem semanas em que vamos à CECAFES (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária), que fica um pouco mais distante da nossa casa, mas que tem a vantagem de ter produtos de ótima qualidade, sem veneno, por um preço muito justo, vindos de pequenos sítios e assentamentos da reforma agrária. Por essas razões, se eu pudesse escolher, compraria sempre na CECAFES. Porém a diferença nos preços, apesar de não ser enorme, acaba pesando no meu bolso no final do mês. (Os vegetais da foto acima vieram da feira do bairro, os da foto abaixo vieram da CECAFES).

Das seis mulheres que moram aqui, mais a sétima que come conosco durante a semana, apenas duas são veganas: minha irmã caçula e eu. Felizmente na nossa casa todo mundo dá muito valor aos vegetais e faz questão de comer frutas todos os dias. Nossos almoços, pelo menos durante a semana, são 100% vegetais. Também não entra leite de vaca aqui em casa e queijo é algo bem raro. Os únicos produtos de origem animal que sempre tem na geladeira são ovo e manteiga. E os únicos ultraprocessados que aparecem na cozinha aqui são leite de soja de caixinha (duas irmãs adoram), molho de tomate pronto e proteína texturizada de soja. Eu não gosto de nenhum dos três, mas fico feliz em ver que 95% da alimentação na casa é integral (no sentido “alimentos inteiros e naturais”).

Depois de meses comprando, armazenando e preparando comida numa casa com muitas pessoas, pensei em vir aqui explicar como me organizo pra dar conta da tarefa. Talvez você precise de dicas pra organizar melhor as compras da semana. Talvez queira incluir mais vegetais na alimentação da sua família e não saiba por onde começar. Talvez você esteja curiosa pra ver, na prática, como é a alimentação 100% vegetal de uma família nordestina, que mora numa capital. Uma família que, apesar de não ter muitos recursos materiais, tem condições de escolher o que come e valoriza a cultura alimentar do seu território.

Planejar a feira

Não faço lista de compras por duas razões. Primeiro, porque já estou bem acostumada com as coisas que preciso comprar toda semana, além das quantidades necessárias pra fazer comida até o próximo dia de feira. E a segunda razão é que a oferta, a qualidade e o preço dos vegetais podem variar de uma semana pra outra. Então se essa semana a couve tá feia, não compro. O tomate subiu muito de preço? Não levo pra casa dessa vez. Encontrei fruta-pão (algo raríssimo)? Então ele vai substituir o cará essa semana. Não ter uma lista me torna mais flexível e adaptável.

Uma dica muito importante na hora de planejar as compras de vegetais da semana é conhecer bem os hábitos e as necessidades da sua família. Você e/ou as pessoas que moram com você almoçam em casa? Gostam de jantar a mesma comida do almoço? Preferem jantar algo mais leve, como uma sopa? Precisam de vários lanches na semana que possam ser facilmente transportados? Também é importante conhecer os gostos das habitantes da casa. Se só uma pessoa gosta de, digamos, caju, não faz sentido comprar vários quilos de uma vez.

Aqui na casa da minha mãe todo mundo toma café da manhã (umas comem em casa, outras levam de casa pra comer no trabalho). Tapioca e mamão não podem faltar na primeira refeição do dia. A estrutura básica do nosso almoço é: feijão + arroz/farinha + verdura cozida, então compro 3 ou 4 verduras “de cozinhar” toda semana. Todo mundo gosta de salada crua, então capricho nas folhas. Não temos o hábito de almoçar com suco, mas adoramos comer frutas junto com o almoço. Também gostamos de lanchar frutas, logo trago da feira toda a fruta que meu orçamento me permite. O jantar, pra gente, é um tubérculo cozido (macaxeira, cará, inhame ou batata doce) ou cuscuz. Uma vez por semana faço sopa. Então ao invés de comprar primeiro e pensar no que vou fazer depois, faço o caminho inverso: trago da feira o que é necessário pra mantermos nosso padrão alimentar, que é alinhado com a cultura alimentar do nosso território.

Quando você tiver entendido quais vegetais precisa pra atender as necessidades e o estilo de vida das pessoas que moram com você (ou as suas, se morar sozinha), vai ficar muito mais fácil saber o que comprar na feira, sem lista. E se o objetivo for aumentar a quantidade de vegetais que você(s) come(m), vai ficar mais fácil visualizar as áreas que podem ser melhoradas. Talvez vocês estejam comendo pouca fruta. Talvez precise incrementar a salada crua do almoço. Talvez fazer uma sopa de legumes pro jantar seja o caminho. Veja o que faz sentido na sua rotina, respeitando seus gostos (a ideia da sopa só vai funcionar se você gostar de sopa, obviamente).

Tudo fica muito mais simples (e automático) quando fazer feira e cozinhar se tornam rotina pra você. Mas deixa eu te ajudar contando como faço aqui em casa, pois é sempre mais fácil entender um sistema quando ele é exemplificado com a prática.

Eu sei que preciso comprar, toda semana:

-Temperos frescos (cebola, alho, tomate, cebolinha, coentro, limão, pimenta de cheiro)

-Verduras pra salada (alface, rúcula, pepino, tomate)

-Verduras pra cozinhar (escolho 3 ou 4: couve, repolho, chuchu, batata, banana da terra, beterraba, cenoura, quiabo, maxixe, jiló, jerimum, batata doce…)

Tubérculos pro jantar (1 porção de macaxeira, 1 porção de cará ou inhame, 2 porções de batata doce)

-Frutas pro café da manhã, almoço e lanches (banana, mamão, abacaxi + as que estiverem na safra)

Tenho essas cinco categorias na mente, que são as que correspondem às necessidades da minha família, e vou comprando por blocos, assim não esqueço nada, mesmo sem lista, e posso adaptar as compras da semana de acordo com os preços e as ofertas do dia.

Sobre quantidades. A experiência me fez ter noção de quanto era necessário toda semana. Se faltava banana antes da próxima feira, eu recalibrava a quantidade de palmas compradas semanalmente. Se a alface estava estragando antes de ser comida, era porque eu tinha comprado demais e na semana seguinte, comprava menos.

Dica importante: antes de sair pra feira, olho o que ainda tem na geladeira, congelador e fruteira. Às vezes ainda tem goma ou macaxeira congelada e não vai precisar comprar essa semana. Às vezes ainda tem alho, mas não é suficiente pra semana toda e vou ter que completar. E por aí vai.

Evitando desperdícios com frutas e verduras

Talvez seja óbvio pra quem tem o hábito de cozinhar todo dia e fazer feira toda semana, mas se não for o seu caso, lá vai. Escolha frutas em diferentes níveis de maturação. Eu compro 4-5 palmas (pencas) de banana por semana, dependendo do tipo da banana (prata é menor, pacovan é maior). Pra não correr o risco de ter 40 bananas maduras ao mesmo tempo num dia, 30 bananas apodrecendo dois dias depois e zero banana no final da semana, eu compro uma penca madura, outra “de vez” (aquele ponto entre madura e verde) e duas verdes. Assim vão amadurecendo durante a semana e sempre tem banana no ponto. Faço o mesmo com o mamão e o abacaxi, frutas que compro toda semana. Também compro uma mistura de frutas verdes e maduras (por exemplo, uma melancia bem madura pra comer no dia, um melão que vai estar maduro daqui a dois dias, dois abacates que só vão amadurecer no final da semana…) e vamos comendo acompanhando a maturação delas.

Às vezes compro uma quantidade grande de uma fruta madura de propósito, pra congelar e fazer vitamina durante a semana. É o caso da banana. Tem sempre promoção de bananas super maduras na feira. Compro algumas palmas, a casa três semanas, mais ou menos, e assim que chego em casa descasco, corto em rodelas e congelo em porções individuais. Também faço isso com frutas grandes, como jaca. E se percebi que o mamão ou o abacate amadureceu todo de uma vez essa semana, congelo uma parte pra não correr o risco de ter desperdício e uso em vitaminas. Isso funciona bem com frutas boas pra vitamina e suco. Congelo manga, acerola, umbu, graviola… Sei que muita gente compra polpa de fruta congelada pra fazer suco, mas as embalagens de plástico (cada porção de polpa vem num saquinho) me incomodam. Não vai ser tão prático quanto as polpas congelada, mas garanto que vai ser muito mais barato comprar fruta madura na feira e congelar suas próprias polpas em casa.

Quanto às verduras, minha dica principal pra evitar desperdícios é: faça sopa. Os legumes que estão murchando na gaveta da geladeira e os restos de legumes cozidos de outros almoços são ótimos candidatos pra virar sopa. Se tiver um restinho de feijão, então, sua sopa ficará ainda mais gostosa e nutritiva.

No próximo post vou compartilhar 1-como preparo o cardápio da semana quando chego da feira; 2-explicar como incluir o ato de cozinhar no seu dia-a-dia, sem precisar passar horas no fogão todos os dias e 3-dar ideias pra resolver o que parece ser o maior problema das pessoas que querem ser veganas, ou acabaram de se tornar veganas: o que preparar pra passar no pão (no meu caso, na tapioca)?

Construtores e Defensores do Território

No final de janeiro fui convidada pela Teia dos Povos pra participar da Formação de Construtores e Defensores do Território, como formadora. Foi uma honra e uma alegria imensas aceitar fazer parte de algo tão inspirador e importante e hoje vim compartilhar um pouquinho do que vivi na semana em que estive no Assentamento Terra Vista, no sul da Bahia, onde aconteceu a formação.

Dei uma aula sobre a Palestina (pra explicar o contexto colonial – a colonização israelense da Palestina e a luta do povo palestino pela vida, por liberdade e por autodeterminação- e o que isso tem a ver com nós, aqui no Brasil), outra sobre “Descolonizar as práticas alimentares” e contribuí com o curso “Gastronomia do bioma – Mata Atlântica/Cabruca”. Também pude assistir a algumas formações políticas enquanto estive lá e depois de tantas conversas que alimentaram minha esperança e enriqueceram minha luta, voltei pra casa com a certeza que aprendi tanto, ou mais, do que ensinei.

As fotos acima foram da aula sobre a Palestina, que acompanhei de uma exposição com 45 fotos do fotógrafo palestino de Gaza Mohammad Zanoun. Conheci ele através de Anne, pois ambas fazem parte do mesmo coletivo (Activestills). Não foi fácil falar da Palestina enquanto Israel comete um genocídio contra a população de Gaza mas é muito importante fazer esse trabalho. As fotos são tão fortes que deixei muitas viradas pra parede. Só desvirei depois de dar a oportunidade pras pessoas que não estavam se sentindo bem emocionalmente de deixarem a sala de aula antes. Mas pra não falar somente dos horrores da ocupação israelense na Palestina e seu projeto de limpeza étnica, li vários poemas de resistência escritos por poetas palestinas e palestinos. Eu nunca tinha lido poesia (li até slam!) publicamente e emprestar minha voz à resistência palestina foi uma experiencia que me marcou muito. E quem estava naquela aula também saiu impactada.

(As fotos acima foram feitas por Alass Derivas e você pode acompanhar o trabalho dele aqui.)

Visitei o Assentamento Terra Vista (ATV) pela primeira vez há uns 6 anos e ele continuava tão lindo quando nas minhas lembranças. Contar a história desse lugar merece um post inteiro, então hoje vou só recomendar o documentário feito pelo Brasil de Fato (trailer aqui), que estou ansiosa pra ver, além de recomendar seguir o ATV aqui. Mas você também pode ler sobre a história do ATV na página da Teia dos Povos. Falar sobre a Teia dos Povos, essa aliança Preta, Indígena e popular, também exige tempo e carinho, então vou recomendar que vocês sigam a Teia dos Povos naquela rede social que me expulsou.

Não fiz fotos da aula sobre “Descolonizar as práticas alimentares”. Mas lembrei de fazer algumas fotos da aula prática dentro do curso de “Gastronomia do bioma”. Fomos guiadas por seu Loro, um agricultor assentado, durante uma manhã inteira dentro da mata. O objetivo era identificar os matos de comer (PANCs) e os de curar e seu Loro nos mostrou a riqueza da natureza naquele canto do mundo. Ele também abriu cacau e cupuaçu pra gente chupar e até mostrou como tirar o palmito da juçara.

Nunca tinha dado uma aula dentro da mata e, sinceramente, agora estou ainda mais convencida de que esse é um lugar incrível pra aprender.

Não vai dar pra contar tudo que aconteceu naquela semana num post. Vou precisar de mais algum tempo pra terminar de absolver tanto conhecimento e depois traduzir com minhas palavras, acrescentado de minha vivência e sentimentos. Mas não posso deixar de falar das pessoas que conhecei durante a formação. Não tenho foto de todo mundo, porque estava quase sempre imersa em conversas tão ricas que tirar o celular da bolsa e fazer fotos quase nunca cruzava a minha mente. Queria ter voltado com o retrato de todas as pessoas que conheci e que deixaram uma marca no meu pensamento e coração mas só tenho algumas poucas.

Um cheiro grande pra Airam, que me levou pra tomar banho de rio, Tulase, que preparou falafel e me deu conselhos preciosos, Suélen, que foi uma ajuda valiosa pra montar a exposição fotográfica e fazer os vídeos pra Teia (duas vezes!), seu Loro, nosso guia e professor, e Daniel, que me acolheu na noite que cheguei, me deu uma aula sobre a luta da população de rua em Belo Horizonte, da qual ele faz parte, e trouxe ideias pra enriquecer os vídeos que fizemos. Tem muito mais gente do assentamento, da Teia ou de passagem que conheci naquela semana e que estão no meu coração mas, como expliquei, voltei sem fotos desse povo lindo.

Felizmente lembrei de pedir uma foto com Kiune (obrigada por ser nossa fotógrafa, Airam!), minha grande amiga e companheira de luta há vários anos. Ela é de João Pessoa mas mora no assentamento e faz parte da Teia dos Povos. Kiune é uma das militantes antiespecistas mais inspiradoras que conheço. (Se quiserem conhece-la melhor, vejam as aventuras dela aqui).

Espero que não se passem outros 6 anos pra eu voltar ao ATV, nem pra rever seu Loro, Joelson, Solange, Deysi e todas as pessoas maravilhosas que povoam aquela terra encantada.

Gostaria de terminar esse post agradecendo as pessoas que apoiam o meu trabalho e que possibilitam não só a existência desse blog mas também minha participação em tarefas da militância, como essa formação. (Quem quiser apoiar também, é por aqui.)

*Foto da esquerda: eu organizando a aula prática de reconhecimento de matos de comer com seu Loro, na frente da casa dela, junto da vizinhança. A participação do gatinho na conversa foi decisiva. Foto da direita: a casa, no assentamento, onde fiquei hospedada.

Tour político-vegano em Natal

Meu recesso de início de ano acabou essa semana, e junto com a retomada das atividades militantes (tenho muita coisa pra contar, aguardem!) coincidiu de um amigo alagoano da minha sobrinha Luna chegar pra visitar Natal. E, olha como são as coisas, Giovanni acontece de ser um leitor de longa data do blog e apoiador do meu trabalho desde o início da campanha no Apoia-se. A gente tinha se encontrado uma primeira vez em 2019, durante o primeiro ENUVA (Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo), em Recife, mas não deu tempo de conversar daquela vez.

Luna, que é vegana, historiadora e apaixonada por Natal, tinha me prometido um “rolezinho natalense” desde o ano passado. Segundo ela, é o passeio que “o jovem natalense descolado faz”. Como faz tempo que deixei de ser jovem e nunca fui descolada, fiquei curiosa pra ver a minha cidade pelos olhos dela. Então combinamos de fazer isso quando Giovanni (que também é vegano e historiador!) estivesse aqui, porque já juntava a minha vontade de redescobrir minha cidade com a nossa vontade de mostrar a cidade pra ele. Deu certinho.

Passeamos pelo centro e fiquei muito triste ao constatar que a vida nessa parte da cidade está desaparecendo. Quando eu era adolescente, antes de ir morar no exterior, essa parte de Natal fervilhava de atividades e pessoas. Quase tudo era resolvido ali. Compras de qualquer tipo? Tinha. O único restaurante macrobiótico (e quase todo vegetariano) da cidade? Era lá. O último cinema de rua? Lá também. (Inclusive o último filme que vi naquele cinema foi “Billy Elliot”) Precisava de uma garrafada ou lambedor pra tosse? Tinha as barracas das erveiras e erveiros. Pilha pro relógio? Era só ir na rua das relojoarias. Tinha os bares boêmios do Beco da Lama. Esses últimos ainda fazem resistência, mas o resto ou já desapareceu ou está caminhando pra isso.

Mesmo com a tristeza de ver os espaços públicos abandonados, porque quase tudo migrou pra dentro de shopping centers, o dia foi ótimo. Além do centro histórico de Natal, onde tomamos mate, visitamos sebos e batemos perna nos becos, fomos almoçar no Libre, um café vegano (melhor comida vegetal da cidade!), e passeamos pela Mata Atlântica, dentro do Bosque dos Namorados (onde comemos ubaia doce, apanhada do chão).

O “rolezinho natalense” proposto pela minha sobrinha me inspirou e me deixou com muita vontade de propor tours no estilo do que eu fazia em Paris. Como vou chamar Natal de casa até o final do ano, é uma possibilidade pra 2024. Depois de ter guiado pessoas na Palestina e na França, ia ser gostoso guiar pessoas na minha cidade. Se a ideia for pra frente, volto pra contar. Mas se antes disso você aparecer por Natal, me avisa 😉

Depois de nos despedirmos de Giovanni, Luna e eu terminamos o rolezinho natalense em casa, tomando café com soda preta junto com Roberta (a cuidadora da minha mãe). Pra quem não conhece, “soda” (ou “sorda”) é um alimento delicioso, degustado no lanche, com uma textura entre o bolo e o biscoito, feito somente com farinha de trigo, mel de engenho (melado), especiarias e, às vezes, bicarbonato de sódio. Uma das comidas típicas do meu território que são tradicionalmente vegetais, mas que está caindo no esquecimento e desaparecendo, como é o caso de quase todo alimento tradicional. A resistência do centro histórico, apesar de pequena, existe, mas me pergunto quantas pessoas participam da resistência ao desaparecimento da nossa cultura alimentar.

Enquanto degustava minha soda pensei em como gostaria de compartilhar minha cultura alimentar com outras pessoas. Aí lembrei que foi exatamente esse sentimento, de querer compartilhar as belezas e os sabores ameaçados de um lugar, que me fez criar os tours na Palestina… A vida dá muitas voltas, mesmo.

PS Obrigada à Luna pelo rolezinho e pelas fotos que aparecem aqui. Obrigada a Giovanni pelas conversas, pela troca de conhecimentos e pelo apoio ao meu trabalho (e pela foto da ubaia doce).

O fim de um ciclo

Primeiro, deixa eu contar que semana que vem estarei no Brasil. Viajo daqui a alguns dias e tenho planos de ficar um ano inteiro em terras potiguares. Estou indo por razões familiares, mas vou aproveitar o tempo que estiver lá pra participar da luta antiespecista na minha cidade, Natal, e pra estar mais presente nas atividades da UVA.

Então estou fechando um ciclo aqui na França e não está sendo fácil. O contexto social no país está cada vez mais difícil pra quem é militante de esquerda. A conjuntura política atual está sendo instrumentalizada pra intensificar o racismo de Estado e acelerar a virada em direção ao fascismo que vemos mundo afora e que nós, que estamos aqui, vemos de perto e sentimos nos nossos corpos. E acompanhar o genocídio cometido por Israel contra a população palestina, que já entrou na sexta semana, enquanto a comunidade internacional se recusa a tomar toda e qualquer medida que possa impedir esses crimes de acontecerem, e a França segue apoiando politicamente e militarmente Israel é desesperador. Mas não me surpreende. Colonialistas são solidários entre si.

Por todas essas razões, estou feliz de sair daqui e de encontrar minha família brasileira. Minha experiência diz que se eu estiver comendo tapioca e macaxeira o sofrimento se torna um pouco mais suportável. E estar do lado de minhas irmãs e sobrinhas, também ajuda. Mas, por outro lado, não estou indo pro Brasil pra tirar férias prolongadas. Não será um ano sabático, longe disso. Outra batalha me espera do lado de lá do oceano Atlântico: acompanhar minha mãe num estado avançado de Alzheimer. E talvez essa seja a batalha mais difícil que eu já enfrentei. Eu sei o que me espera na minha terra, mas ainda não sei como meu coração, já tão angustiado, e meu corpo, que anda cansado e machucado, reagirão.

Na próxima vez que abrir esse blog pra escrever um post, estarei na casa da minha família. Com um pouco de sorte (minha) o choque emocional não será tão grande e eu poderei compartilhar coisas que trazem esperança. Porque, por mais que atravessemos tempos sombrios, me recuso a abandonar a esperança. Como disse Angela Davis, quando ela falou recentemente sobre a Palestina: “Não podemos abandonar a esperança, porque a esperança é a condição de todas as lutas.”

(A foto acima foi feita em um santuário antiespecista e anarquista no interior da França. Visitei esse lugar no final de setembro e o que vi por lá, e os encontros que fiz, me encheram de esperança.)

Sobre a Palestina e o seu povo

Se você descobriu esse blog recentemente talvez não saiba que a Palestina ocupa uma parte importante da minha vida. Visitei a região pela primeira vez em 2007 e morei lá de 2008 a 2013. Em seguida foram mais cinco anos, de 2014 a 2018, morando lá uma parte do ano, quando eu organizava tours políticos de solidariedade (veganos!) pra pessoas brasileiras que queriam conhecer a Palestina e a luta por autodeterminação do seu povo.

Por razões pessoais, não me encontro em condições de fazer análises políticas atuais sobre a colonização israelense na Palestina e seu projeto de Apartheid, limpeza étnica e genocídio. Mas quem conhece o meu trabalho sabe que sou uma militante muito comprometida com a causa palestina e que minha militância acontece na vida real, no terreno, não (apenas) na internet. Infelizmente, em tempos de ativismo de redes sociais, parece que se você não postar sobre X, então você não se importa com X e recebi várias críticas, mais ou menos explícitas, nas últimas semanas.

Estou cansada e abatida demais pra colocar pra fora, de maneira elegante e coesa, a minha frustração com esse tipo de comportamento. Quem quiser pensar que eu deixei de militar simplesmente porque não uso mais redes sociais, ou que parei de me importar com o povo palestino e sua luta por libertação porque não fiz um pronunciamento recente aqui, paciência. E quem mandou mensagens pedindo, de maneira educada e carinhosa, pra eu voltar a fazer conteúdo informativo sobre a Palestina porque “minha voz faz falta”, peço compreensão. Estou passando por um momento pessoal muito difícil, tanto por questões familiares quanto relacionadas à Palestina, e atravessar cada dia tem sido uma batalha. Mas tem muita gente fazendo isso no Brasil e no mundo (pra quem fala inglês) e tenho certeza que o mais acertado é ouvir vozes palestinas. Vou deixar algumas recomendações aqui.

Tem o trabalho da palestina, nascida no Brasil e que mora atualmente no Canadá, Hyatt Omar Tem também o grupo Juventude Sanaud e o Monitor do Oriente, uma “instituição independente de pesquisa de mídia fundada para promover uma cobertura justa e precisa das questões do Oriente Médio”. Em Inglês (mas nada que a ferramenta de tradução do Google não possa resolver pra quem não domina essa língua) recomendo o site independente de notícias The Electronic Intifada, que é palestino e, além de notícias, traz análises excelentes. E minha última recomendação é +972 Mag. Se trata de um site de notícias, também independente, mas israelense, de esquerda e anti-sionista.

Pra além das recomendações, eu vim aqui hoje pra fazer uma tentativa modesta. A desumanização do povo palestino continua sendo uma arma utilizada por Israel, e repetida pela grande mídia e governos mundo afora, pra impedir que a gente se solidarize com essas pessoas, justificando assim a sua dominação, opressão e abrindo caminho pro genocídio (anunciado e televisionado). Isso não foi algo inventado por Israel, basta estudar minimamente a História pra perceber que todo povo oprimido é desumanizado pelos seus opressores. Então eu vim lembrar vocês das muitas entrevistas e depoimentos de pessoas palestinas que publiquei aqui, além do relato de brasileiras que foram à Palestina comigo. E se você acaba de descobrir o Papacapim, aqui está um convite pra descobrir esse extenso material que há anos mora aqui, mas que não perdeu a relevância.

Começo com a série, em três episódios, “Histórias palestinas”, onde entrevistei dois amigos e uma amiga palestina. Essas pessoas, todas refugiadas, contam suas histórias de vida e como a ocupação israelense impacta absolutamente todos os aspectos do seu dia-a-dia e determinou o lugar onde nasceram e estão criando suas crianças.

Mustafa e Mohamad Alafandi

Meu nome é Mohamad Alafandi, tenho 76 anos e moro no campo de refugiados de Deheisha, na região de Belém. Nasci em Dayr Aban, a 21 km de Jerusalém, no que então ainda era a Palestina. Minha cidade resistiu enquanto pôde à invasão sionista, o que custou a vida de quarenta habitantes. A gente só tinha dois fuzis e os homens se revezavam pra defender nossas casas. Mas o exército sionista era muito mais bem equipado. No dia 18 de outubro de 1948 os soldados do recém-criado estado de Israel invadiram minha cidade e obrigaram a população a partir sem poder carregar absolutamente nada, abandonando nossas terras, casas, animais e pertences, deixando toda a nossa vida para trás. Eu tinha 14 anos quando isso aconteceu. Meu pai não suportou tão duro golpe e sofreu um derrame que o deixou paralisado. Fui obrigado a carregar meu pai nas costas durante todo o tempo em que caminhamos. Minha família errou durante um ano e meio, andando de cidade em cidade procurando um lugar para viver. Meu pai morreu um ano depois de ter sido expulso de sua cidade natal e eu, como filho mais velho, tive que tomar conta da minha mãe e dos meus irmãos. Acabamos chegando em Deheisha, um dos inúmeros campos criados pela ONU. Leia a continuação do depoimento aqui

Mustafa (à direita) com o pai, Mohamad, e o filho caçula, Aissa. Três gerações de refugiados.

Khoulud Ayyad

A vida no campo de refugiados nunca foi fácil, mas lembro de um período, quando eu era criança, que as coisas eram ainda piores. Durante a primeira intifada (entre 1987 e 1993) os soldados israelenses entravam no campo o tempo todo e muitas pessoas foram assassinadas. Todo mundo tinha medo de sair de casa e levar um tiro. Lembro que um dia, eu devia ter uns 8 anos, vi dois jovens correndo no campo. Pensei que os soldados estavam os perseguindo então abri a porta de casa e comecei a agitar os braços, chamando eles pra se esconderem ali. Quando meu avô viu a cena me colocou pra dentro e fechou a porta imediatamente. Depois explicou que aqueles jovens não eram palestinos fugindo de soldados israelenses e sim soldados israelenses a paisana correndo atrás de palestinos.Leia a continuação aqui

Tareq Jawabrah

Meus pais nasceram em Iraq Al-Manshya, um cidadezinha no litoral da Palestina histórica, entre Jafa e Gaza.  Meu pai era agricultor e junto com a família cultivava laranjas e outras frutas cítricas. Em 1948, quando as tropas sionistas invadiram nosso vilarejo, meu pai tinha 20 anos. Fazia já algum tempo que as notícias de expulsões e massacres de palestinos por soldados sionistas chegavam por lá e algumas pessoas tinham abandonado suas casas com medo do que iria acontecer quando a vez de Iraq Al-Manshya chegasse. Toda a população recebeu ordem de ir embora, mas muitas pessoas se recusaram a abandonar suas terras. Os que tentaram ficar foram executados e meu pai perdeu muitos amigos e um irmão. A família do meu pai foi pra Hebron (no sul da Cisjordânia). Quando eles chegaram lá, os habitantes da cidade se compadeceram com o triste destino dos refugiados e os acolheram em suas casas. Alguns meses depois eles escutaram que a ONU estava reagrupando o pessoal em campos de refugiados, na espera do retorno. Foi assim que a família da minha mãe, que também é de Iraq Al-Manshya, e a do meu pai vieram parar em Al Arroub. Um dia, em uma viagem organizada pela escola, fomos à Jafa ver o mar (a antiga cidade de Jafa foi anexada à Tel Aviv). No caminho eu vi uma placa indicando Qiryat Gat, a cidade israelense construída sobre as ruinas da nossa cidade, e pedi ao motorista pra passar por lá. Quando vi aquelas pessoas, que moram hoje nas terras que um dia pertenceram ao meu pai, olhando pra mim como se eu fosse um estrangeiro que não tinha direito nenhum de estar ali meu sangue ferveu e a revolta tomou conta de mim.Continua aqui

yemen e tareq

Muitas das pessoas que participaram dos tours políticos que organizei na Palestina (antes que perguntem, não faço mais esses tours) compartilharam esse vivência aqui no blog e eu também escrevi bastante sobre essas viagens de solidariedade. Além dos relatos, vocês podem ver muitas fotos da Palestina, que tem paisagens lindas, e da comida maravilhosa que degustamos por lá. Seguem alguns desses relatos (mas pra ver tudo, clique na página Receitas e dentro dela, na seção Outros)

“Se eu tivesse optado por um turismo convencional, mesmo tendo uma visão crítica a respeito da ocupação israelense de terras palestinas, muito provavelmente teria voltado com percepções bem diferentes do que esse tour político me proporcionou. Cheguei um dia antes do combinado para me encontrar com o grupo e fiquei hospedada em Jerusalém. Algumas voltas no entorno, vendo israelenses e alguns palestinos na mesma cidade, me deram a falsa impressão de normalidade, de que ambos ocupavam o mesmo espaço sob condições iguais.

Andando apenas em transportes usados por turistas, eu provavelmente não teria percebido que alguns ônibus são reservados apenas para palestinos e outros para israelenses, o sinal mais óbvio de apartheid. Andando pelas ruas e observando as construções, eu certamente acharia que era opção estética ter ou não caixas d’água no teto, ao invés de saber que palestinos não têm água disponível 24h, ao contrário dos israelenses, mesmo essa água tendo sido captada em terras palestinas. Se estivesse em uma excursão tradicional, em ônibus de viagem, teria passado por vários “check points” sem perceber, pois esses ônibus não seriam parados. Mais ainda, eu teria percorrido vários quilômetros de estrada cortando terras palestinas e não saberia que na maioria daquelas estradas só é permitido o tráfego de israelenses. Teria visto as imensas colônias israelenses em terras palestinas e concluído ser apenas mais uma cidade. Teria visitado o Mar Morto sem ver um só palestino e achado que eles não frequentavam outros resorts por opção.” Continue lendo o post “Estou disposto a fazer a minha parte”

“Pude dividir um pouco da Palestina que me emociona e me inspira com um grupo de pessoas maravilhosas, passei 14 dias incríveis e fiz um dos trabalhos mais significativos da minha vida. E além dos cinco brasileiros que decidiram embarcar nessa aventura o acaso trouxe uma islandesa pro nosso grupo, porque loucura pouca pra mim é bobagem. Nosso grupo era um óvni. Imaginem eu explicando a empreitada pros palestinos: “Opa! Tudo certinho? Eu tenho um blog de culinária vegetal em Português e estou guiando uns brasileiros, não, essa daí é islandesa (não, nem irlandesa nem finlandesa, islandesa da Islândia), num tour político-gastronômico pela Palestina e nós gostaríamos de bater um papinho sobre o papel das mulheres no movimento de resistência popular contra a ocupação. Pode ser?”. Juntos vivemos coisas intensas, emocionantes, revoltantes e inspiradoras. Nas fotos vocês podem ver alguns dos lugares que visitamos e algumas das pessoas, principalmente palestinas, mas também israelenses,  que encontramos durante essas duas semanas.” Essa sou eu falando e o relato do primeiro tour que organizei, em 2014, está aqui

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No tour do ano seguinte, participamos da colheita de azeitonas.

“Outubro é a época da colheita de azeitonas aqui na Palestina e é, na minha opinião, o melhor mês pra estar aqui. Eu não sabia nada sobre o cultivo de azeitonas nem sobre a produção de azeite até ter me mudado pra cá, em 2008. Fiquei encantada quando descobri a parte fundamental que a oliveira tem na cultura e na vida dos palestinos. Talvez o mais impressionante pra mim foi descobrir que não existem ‘cultivadores de azeitonas’. Como oliveiras precisam de pouquíssimo cuidado e só recebem água da chuva, os ‘donos’ das oliveiras têm todos uma profissão, que eles exercem durante as outras cinquenta semanas do ano. Durante duas semanas, no início ou no final do mês (de acordo com o amadurecimento das azeitonas), professores, médicos, pedreiros, advogados, estudantes, psicólogos, sociólogos, eletricistas, cozinheiros… todos largam temporariamente suas ocupações e vão pro campo. A família inteira, muitas vezes três gerações juntas, participa da colheita. Uma parte das azeitonas será marinada durante várias semanas e elas serão degustadas acompanhando o café da manhã típico daqui. Mas a maior parte delas vai ser prensada e virará azeite, que aparece na mesa familiar durante o ano inteiro.” O post completo está aqui

E falando em colheita, tem dois posts, de 2012, muito especiais pra mim. O primeiro mostra um pouco do que é esse momento tão importante pra cultura e economia palestina. E outro, no mesmo ano, onde compartilho um momento mágico: meu amigo Tawfic me levou pra uma prensa e pude ver como as azeitonas são transformadas em azeite.

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“O centro da produção de azeite palestino fica em Nablus, no norte, e lá tem mais prensas do que aqui. Porém, o azeite de Belém e das duas cidades vizinhas (Beit Jala e Beit Sahour) tem fama de ser o melhor de toda a Palestina. Meu amigo Tawfic explicou que essa região tem um micro clima perfeito pra produção de azeitonas e por isso o sabor do azeite daqui é superior. Eu posso confirmar: o azeite de Tawfic é o melhor que já provei na vida! Ele tem uma nota verde intensa, com um gosto de mato depois da chuva (nunca comi mato depois da chuva, mas tenho certeza que o gosto é idêntico ao cheiro), mas ao mesmo tempo é aveludado e tão cremoso que chega a ser (pasmem!) amanteigado. É difícil descrever um sabor tão complexo, só mesmo provando pra entender.” O post completo, com fotos do passa-a-passo, está aqui

Pra ver muitas fotos de lugares lindos e pratos típicos deliciosos, é só clicar aqui.

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Na seção Viagens (dentro da página Receitas) tem vários posts mostrando as belezas da Palestina e seu povo acolhedor. Vou só citar alguns, pra esse post não ficar ainda mais longo do que já está.

Tem um post sobre o Vale do Jordão, quando fiquei alguns dias plantando oliveiras em uma comunidade beduína.

E outro sobre o natal em Belém, que era onde eu morava. Imaginem comemorar o nascimento de Jesus…na cidade onde ele nasceu!

Espero que vocês reservem um tempinho pra ler esses relatos, admirar as fotos, salivar diante das comidas e se informar, através das fontes que recomendei. Termino esse post com mais imagens da Palestina, imagens que vocês não verão nesse momento, mas que não deviam sair da nossa mente. A Palestina é um território riquíssimo em história, cultura, culinária e tudo isso, além dos milhões de vidas humanas, está ameaçado.

As histórias que a comida conta

Começou dois anos atrás, no verão. De repente olhei pro meu jantar e me dei conta de que os alimentos naquele prato tinham chegado até a mim por diferentes caminhos, através das mãos de amigas e camaradas. Não lembro exatamente do conteúdo daquela refeição, mas sei que naquele momento vislumbrei pela primeira vez os fios que partiam do meu prato e me conectavam a várias pessoas conhecidas. Foi quando eu escutei a história que aquela comida contava e percebi que tinha uma teia de solidariedade local ao meu redor. Lembro da alegria e gratidão que senti e da certeza de ser uma pessoa extremamente afortunada. 

Desde então esse é um exercício que repito com frequência quando estou comendo e eu sempre me dizia que um dia iria fotografar minhas refeições e escrever as suas histórias, pra compartilhar e não esquecer. Só que eu tenho muitas, muitas ideias ótimas que nunca saem da minha cabeça. Até que uns dias atrás eu estava jantando e ao contar pra Anne de onde vinha cada um daqueles ingredientes vi que eram tantas pessoas envolvidas que não resisti: interrompi o jantar, fui buscar o celular (na nossa casa celular é proibido na mesa – e na cama) e fiz uma foto. Fotografei também o almoço e o jantar do dia seguinte e vim aqui contar as histórias dessas três refeições.

Salada: os tomates vieram da nossa horta de quintal e da horta de uma amiga, a azedinha (escondida embaixo da alface) veio do lote que cultivamos coletivamente (junto com nosso coletivo) nos Jardins Operários, o pepino foi comprado numa loja de orgânicos e a alface veio do lixo dessa mesma loja de orgânicos.

Pausa pra explicar que toda semana buscamos comida no lixo da loja de orgânicos, comida perfeitamente comestível, apenas um pouco murcha ou machucada, mas que é jogada fora. Também pegamos vegetais de descarte nas feiras livres da nossa cidade, mas nesse caso os feirantes deixam a gente pegar antes de jogar no lixo. (O que não é o caso na loja de orgânicos).

O prato principal foi macarrão, comprado na loja de orgânicos de onde pegamos comida do lixo, com cogumelos e espinafre, ambos vindos do lixo da loja de orgânicos, tofu do mercado chinês do nosso bairro (feito aqui, com soja não-transgênica) e creme de castanha de caju, que veio de uma ocupação aqui no nosso território. Essa okupa recebe doações de comida que passou da data de validade, mas que ainda pode ser consumida, e distribui pra toda uma rede de pessoas precarizadas, incluindo nós, do coletivo. Desde o ano passado comemos pasta de castanha de caju, orgânica (!!!!), pois a doação foi gigante!

De sobremesa teve dois tipos de ameixas: as alongadas foram apanhadas no chão dos Jardins Operários (é época de ameixas e nos Jardins tem muitas ameixeiras, então o solo em vários lugares está coberto com essas frutas) e as redondas, menores, vieram da nossa vizinha de lote. As uvas foram presentes da minha vizinha e vizinho, um casal do Sri Lanka que compartilha o nosso entusiasmo por plantar (só que a horta delas é muito maior do que a nossa!). A gente conversa muito por cima da cerca que separa nossos quintais e Vigi, a vizinha, já me deu vegetais, sementes, mudas e conselhos. Na manhã daquele dia eu estava tomando café curtindo um solzinho quando a vizinha e o vizinho me chamaram por cima da cerca pra me oferecer um pouco das uvas que estavam colhendo.

Depois do jantar gosto de ir pra cama com uma caneca de chá de ervas (infusão), que degusto enquanto leio. É um ritual que adoro e aqui fiz chá com a verbena-limão que tinha colhido naquele dia no lote de Chabha, nos Jardins Operários. Chabha, uma senhora argelina, precisou viajar e perguntou se alguém poderia cuidar da horta dela durante a sua ausência. Como já faz um certo tempo que comecei a ajudá-la a regar a horta (é pesado pras costas dela ir buscar água e regar tudo sozinha), estou cuidando do pedacinho de terra dela durante o mês de agosto. E como ela tem um pé de verbena-limão, uma das minhas infusões preferidas, sempre que passo por lá colho uns raminhos pra tomar à noite.

No dia seguinte, depois do café da manhã, Anne foi regar as plantas do apartamento de uma camarada do coletivo, que saiu de férias, e na volta passou por uma das feiras livres da cidade. A feira já tinha acabado e os feirantes estavam descartando os restos. Já disse que temos o costume de pegar comida de descarte na feira e foi exatamente isso que ela fez. A gente só anda de bicicleta por aqui e temos bagageiros sólidos pra poder trazer pra casa a comida que cruza o nosso caminho. Aqui ela pegou uma das caixas de madeira que estavam sendo jogadas fora e fez uma ótima colheita: um melão, um pouco de uva verde, pêssegos e várias bananas. Evitamos comprar frutas e verduras que vêm de longe, então as únicas vezes em que como banana ou abacate, por exemplo, é quando encontramos no lixo da loja de orgânicos ou pegamos do descarte da feira. Como as bananas de descarte sempre são bem maduras, eu descasco, corto e congelo assim que chego em casa. Depois uso pra fazer vitamina, sorvete ou coloco na papa de aveia. Dessa vez tinha bananas verdes (perfeitas!) e elas estão amadurecendo na cozinha nesse exato momento.

No almoço comemos o resto do macarrão com tofu/espinafre/cogumelo/creme de castanha da noite anterior, mais uma salada com a alface do lixo da loja de orgânicos, grão de bico (francês) comprado na loja de orgânicos, folhas de capuchinha do quintal, algas francesas que ganhei de uma amiga, cebolinha do nosso lote, salsinha da nossa horta de quintal e tomates do lote de outra amiga. Essa outra amiga, Dolorès, também está viajando e estamos regando, junto com outras camaradas e jardineiras, o lote dela no momento. E vocês já entenderam que quem cuida do lote ganha o direito de colher o que estiver maduro no dia, né? Nossas amigas agricultoras insistem sempre pra gente colher o que quiser, como modo de nos agradecer o favor e porque quem cultiva a terra sabe que o que não for colhido, se perde. Ou seja, plantar te ensina a compartilhar, incentiva a generosidade.

De sobremesa comemos o resto das uvas da vizinha e alguns dos pêssegos de descarte (que Anne trouxe de manhã).

À tarde fui buscar duas cestas de orgânicos, no esquema CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura), de uma amiga e um amigo, ambas camaradas do coletivo de defesa dos Jardins Operários. As duas saíram de férias com a família (julho e agosto são as férias de verão aqui) e as cestas iam se perder. Você se compromete a pagar um valor fixo por mês e tem direito a uma cesta semanal com vegetais da estação. Como a ideia é apoiar as agricultoras locais, não é possível cancelar nas semanas em que viajamos. Sorte nossa, pois nossas amigas, que também moram pertinho de nós, deixaram as cestas da semana passada e dessa semana pra gente. Uma das amigas, Vivianne, tem uma filha pequena e às vezes, quando ela tem um imprevisto no trabalho, ela me pede pra ir buscar a menina na escola. Nossa comunidade é bem unida e se ajuda mutualmente o tempo todo.

Minha bicicleta voltou carregada com as duas cestas de orgânicos e pude até congelar algumas coisas pra comer nas semanas seguintes.

Fiz lasanha pro jantar e essa refeição é um exemplo perfeito da teia de solidariedade que falei no início do texto. A massa foi comprada, na loja de orgânicos, mas além disso, do azeite e do alho (mais o sal e a pimenta preta), todo o resto dessa refeição foi conseguido de forma gratuita. Comida não deveria ser mercadoria e saber que uma parte, às vezes importante, do que comemos chega na nossa mesa sem passar por lógicas mercadológicas, me deixa muito feliz.

A lasanha tem berinjela e pimentão da cesta de orgânicos da amiga, tomates da cesta da amiga e do lote de Dolorès (vou escolhendo os mais maduros, por isso sempre rola mistura de origem), abobrinha do nosso lote, manjericão da nossa horta de quintal, cebola do lote de Chabha e creme feito com a pasta de castanha de caju da ocupação. A salada tem: alface da cesta de orgânicos do amigo e do lixo da loja de orgânicos, melão de descarte (da feira) e folhas de dente-de-leão do quintal. De sobremesa teve pêssegos de descarte (da feira).

Uma nota sobre PANCs. Uns meses atrás comecei a incluir sistematicamente um alimento selvagem, ou uma PANC (planta alimentícia não convencional), nas minhas refeições principais. Geralmente elas vem do meu quintal ou dos Jardins Operários (dente-de-leão, capuchinha -as flores e as folhas, urtiga, folha de jerimum, azedinha) e minha intenção é diversificar minha alimentação e expandir meu paladar pra sabores menos convencionais, mas também enriquecer minha microbiota intestinal. Não é um sacrifício, é um prazer imenso descobrir novos sabores.

Toda comida te conecta a alguém ou alguma coisa. A quem a sua comida te conecta? A quem a produziu, claro. A agricultora que selecionou a semente, plantou, regou, cuidou e colheu. Mas quem mais entrou no caminho entre a terra e o seu prato? Que histórias sua comida conta? 

Junho

Mês passado fiz um post que chamei de “o melhor de maio” e disse que talvez virasse uma tradição mensal nesse blog. Redes sociais acostumaram o pessoal a ver tudo que todo mundo faz (e pensa) em tempo real. Embora eu não queira mais isso pra minha vida, compartilhar momentos do meu dia-a-dia uma vez por mês é uma maneira de trazer as pessoas que leem o blog mais pra perto do meu cotidiano, mas de maneira menos invasiva (pra mim). Estou atrasada pra falar do mês passado, mas bora lá. Fazer um diário visual de um mês inteiro renderia um post longo demais e nem tudo que faço, eu desejo compartilhar. Então aqui estão alguns momentos (escolhidos) que vivi em junho.

Junho é o mês da transição entre primavera e verão e as flores, principalmente as rosas, causaram uma explosão de cores nos jardins (o daqui de casa e os Jardins Operários).

Anne voltou da Palestina, onde ela esteve trabalhando por um mês, e trouxe presentes das minhas amigas que moram lá. Melado de romã, feito por Dragiša e essa bolsinha zapatista, enviada por Tati. 

As cerejeiras dos jardins operários estavam carregadas, mas esse ano não foi um bom ano pra cerejas, e muitas apodreceram no pé. Mas um belo dia de junho, um coletivo amigo conseguiu uma quantidade imensa de cereja (orgânica) de descarte e voltei pra casa com uma caixa cheia dessa preciosidade. Cerejas são uma das frutas que você só consegue comprar na estação e são bem caras. É fruta de gente rica, por isso não compro quase nunca. Então aquela caixa era um tesouro pra mim. Fartura. Agora é esperar até o ano que vem pra comer cereja novamente.

Degustei, feliz da vida, as favas que plantamos no quintal. Adoro fava e esse ano descobri, graças à uma amiga que também tem uma horta nos Jardins Operários, que quando elas são bem jovens dá pra comer com casca e tudo, sem debulhar, como uma vagem. Aqui fiz um macarrão com molho de urtiga e favas frescas, mais salsinha. E uma salada de folhas de beterraba, alface e dente de leão. Tudo, com excessão do macarrão, veio da nossa horta. 

Também foi o mês das framboesas. No lote que o nosso coletivo cultiva nos jardins operários tem vários pés. Nunca comi framboesas tão deliciosas, e tão grandes, na minha vida. Comi até no café da manhã, em cima da aveia dormida (mais amêndoas de cacau e castanha do Pará, que trouxe do Brasil).

A okupa que nos servia de base foi fechada e foi um momento triste pra todos os coletivos do território, pois era um lugar estratégico pra organizar as lutas aqui. Mas a gente sabe que ocupações são efêmeras e essa conseguiu sobreviver por três anos, o que é um milagre. Felizmente, as pessoas dessa okupa já encontraram outro imóvel pra fazer uma nova ocupação e passamos o mês inteiro fazendo a mudança (todos os coletivos ajudaram). Puxei, pela primeira vez, uma carrocinha na bicicleta, pra ir buscar comida de descarte pro pessoal de lá. Preciso dizer que caí no primeiro dia. Mas no segundo consegui fazer a viagem sem problemas, apesar da carga ser ainda mais pesada do que no dia anterior. Quando a gente diz que a militância é uma escola, acho que muita gente não imagina a imensa variedade de coisas que aprendemos nela.

Tomamos café da manhã todos os dias no jardim e isso, pra mim, é a definição de luxo.

Descobri que a borragem é rosa quando desabrocha, mas em poucas horas ela fica azul. (Observar o jardim e a horta são minhas atividades preferidas no momento.) Plantamos várias borragens na horta dos tomates porque as abelhas amam essa flor. E a gente ama as abelhas. Sabia que a borragem é comestível e tem um leve sabor iodado que algumas pessoas acham parecido com ostra? Não posso confirmar, nunca comi ostra na vida, mas adoro o sabor dessa flor. Só não como tudo na salada porque elas são mais importantes pras abelhas do que pra mim. 

Pelo segundo ano consecutivo organizamos uma festa pras crianças do CoHab onde fazemos, todo domingo, atividades de educação popular. Levamos um forno de pizza (emprestado) pra lá e cada criança pode fazer sua pizza com a massa, molho e legumes que tínhamos preparado. Como nosso coletivo se comprometeu com a luta antiespecista, toda a comida que preparamos/oferecemos é vegetal. Talvez surpreenda algumas pessoas me lendo, mas nenhuma criança estranhou a falta de produtos de origem animal e, mais uma vez, as pizzas foram um grande sucesso. Foi um dia inteiro de trabalho, sem contar o trabalho na semana anterior pra preparar a festa, que também teve muitas atividades lúdicas, e muitos braços pra acompanhar as crianças no preparo de 40 pizzas, além de cuidar do forno. Mas como esses momentos de partilha com a nossa comunidade são preciosos! A luta não é só uma lista de tarefas e sacrifícios: ela também oferece alguns dos momentos de maior alegria da minha vida. 

Umo, um dos habitantes da nossa casa, resolveu voltar. Ele decidiu sair de casa há uns três anos, e passou a morar na rua e a nos visitar somente de vez em quando. Mas parece que ele cansou da vida itinerante, pois umas semanas atrás ele se instalou no minúsculo jardim na frente da casa. Ele se recusa a entrar em casa, porque não se entende com os outros gatos moradores daqui, mas a gente coloca água e comida pra ele lá fora e pelo menos uma vez por dia saímos pra dar carinho pra ele. Apesar de preferir a liberdade da rua e de ter se emancipado das humanas que viviam com ele, Umo adora carinho e ainda pede nossa companhia de vez em quando. 

Esse mês também levei várias turmas de crianças de dois jardins de infância do bairro pra visitas as hortas dos Jardins Operários. Guiar turmas de escola nos jardins é uma das minhas tarefas no Coletivo de Defesa dos Jardins. É uma delícia ver as crianças se maravilharem diante das flores, das borboletas e descobrirem os legumes crescendo nos pés. Aproveito pra conversar com as crianças sobre comida vegetal e até provamos algumas coisas pelo caminho.

Mais pro final do mês aconteceu um encontro militante no interior da França, organizado pelo nosso coletivo de solidariedade popular. Convidamos alguns coletivos de outros territórios e foram 3 dias de muita troca e banho de rio. Eu organizei uma oficina chamada: “O lugar do antiespecismo nas nossas lutas” e fiquei muito feliz em ver a quantidade de pessoa que participou. Foi o primeiro encontro inter-coletivos que organizamos depois de termos decidido colocar a luta antiespecista na nossa declaração de princípios e, pela primeira vez, a comida foi totalmente vegetal e só recebemos elogios.

Mas teve um problema. Um problema de 14kg. Preparamos uma parte da comida antes de pegar a estrada, no dia anterior, e todo o hummus que eu tinha preparado fermentou. Sete potes de 2kg cada, ou seja, 14kg de hummus!!! Eu cheirei e provei tudo e decidi que dava pra comer um dos potes que tinha fermentado menos que os outros. Fomos na fé e todo mundo sobreviveu sem nem mesmo uma dor de barriga. Infelizmente tivemos que jogar o resto fora e isso me partiu o coração. 

Na volta pra minha periferia, no norte de Paris, fui cuidar da horta. Os pés de favas estavam secando (todas as favas tinhas sido comidas por nós). Arranquei tudo, agradeci pela comida oferecida e pelo nitrogênio que elas levaram pra terra, que vai beneficiar todas as outras plantas que crescem ali e coloquei na composteira. Ali os pés de favas vão virar terra novamente e o ciclo se fechará.  Olha que coisa mais linda as raízes das leguminosas. Repare nesses pequenos nódulos. São ali que elas hospedam as bactérias que capturam o nitrogênio (N2) do ar e o converte em uma forma utilizável pelas plantas. Por isso leguminosas são o verdadeiro adubo verde. Eu fico abestalhada diante da sofisticação e tecnologia das plantas.

O primeiro tomate brotou. Ainda vai demorar semanas pra gente poder comer tomates maduros e esperar pacientemente por esse momento só contribui pra que eles sejam ainda mais saborosos pra mim.

O lote do nosso coletivo está cada dia mais luxuriante. Plantamos tomate, abobrinha, couve, berinjela, manjericão, alecrim, cebolinha e azedinha. Tem também um pé de damasco (a safra foi curta e já comemos todos) e uma cerejeira jovem. A primeira abobrinha foi colhida (e comida) e outras já vieram depois. Cultivar a terra com camaradas me enche tanto de felicidade que nem consigo colocar em palavras. E cultivar a terra com as crianças dos camaradas, que estão sempre por ali se maravilhando com os bichinhos que moram naquela terra ou procurando framboesas pra comer, é gostoso demais.

Fiz meu primeiro arranjo floral, com flores do lote, pra receber uma grande amiga de 80 anos que veio jantar com a gente. De sobremesa, fiz o creme-mousse de chocolate branco, gergelim e missô que criei no ano passado e que é um sucesso total. Parece absurdo, mas é absurdamente bom. Servi com as framboesas dos Jardins Operários e minha amiga ficou encantada.

Fiz seis bolos num dia, pras atividades de educação popular com as crianças (no CoHab) e pro almoço com jardineiras e jardineiros dos Jardins operários. Das tarefas da militância, cozinhar é uma das que faço com mais frequência. O almoço nos jardins teve churrasco, mas teve também uma abundância de pratos vegetais. Nem uma jardineira é vegetariana, muito menos vegana, mas vários trouxeram contribuições vegetais pra compartilhar com todo mundo. Quase beijo o jardineiro português que fez esse feijão fradinho, que estava uma delícia. 

Apareceu o primeiro jerimum do quintal. Esse pé cresceu sozinho (não foi semeado) e está se espalhando pelo quintal inteiro. Aliás, impressionada com a proeza e abundância desse pé de jerimum, fui pesquisar pra saber se as folhas eram comestíveis. São! Comi, pela primeira vez na vida, folha de jerimum refogada e adorei. A generosidade da natureza…

Rolou um date de rompimento definitivo de namoro. É conceito. E a comida estava ótima. Mas, falando sério, acho importante celebrar finais tanto quanto celebrar começos. 

Falando em ex namorada, a newsletter desse mês foi sobre isso. Mais especificamente, sobre ter uma ex mítica (quase todo mundo tem). A minha é aquela das alcachofras. Envio uma newsletter mensal falando de amor, em sua imensa pluralidade e com narrativas que vão contra a visão uniformizada que nos é imposta culturalmente, pra agradecer quem apoia financeiramente o meu trabalho

Eu tenho alguns problemas de saúde que são aliviados quando faço musculação e esse mês encontrei uma academia perto de casa e bem baratinha. Sempre gostei de musculação, porque além de aliviar minhas dores, aumentar minha força física faz bem pra minha autoestima, e estou feliz por ter voltado a puxar ferro. 

E pra terminar, os jardins operários em toda a sua glória no crepúsculo do final de junho. 

“Se a gente quiser romper com esse sistema, não vai ser sem audácia” – entrevista com Larissa e Maria

Quando eu estive em Belém, em novembro passado, tive a honra de ser convidada pra tomar um tacacá na casa de Larissa e Maria. Assim como Michelle, que entrevistei aqui, Larissa (que todo mundo chama de “Lara”), é uma companheira do coletivo antiespecista VEM. Maria, também vegana, é a mãe dela. Passei uma tarde na casa delas, entre bonecas de Ângela Davis e Paulo Freire feitas por elas, tomando tacacá e conversando. Aproveitei pra entrevistar as duas, porque elas têm uma história com o veganismo que começou de uma maneira diferente de todas as outras pessoas que entrevistei aqui no blog até hoje. E porque elas disseram coisas que me tocaram profundamente e que eu levo pra vida e pra luta.

Podem se apresentar?

Larissa – Larissa Pontes, socióloga, um tanto artista das manualidades. Nortista meio manauara, meio belenense. Militante por um veganismo popular e integrante do coletivo VEM. 

Maria – Maria Melo, paraense, artesã, vegana mãe de vegana.

Como vocês chegaram no veganismo?

Larissa – Eu sempre tive vontade de conhecer, pela questão animal. Eu já tinha alguma ideia a respeito, mas não sabia exatamente como fazer. Até que a minha mãe desenvolveu uma doença autoimune e começou a ter crises sérias. A primeira coisa que eu fiz pra tentar ajuda-la foi pesquisar sobre o impacto da alimentação na saúde. Parece estranho dizer que eu encontrei uma oportunidade pra me tornar vegana, mas foi a conjuntura perfeita pra eu chegar pra ela e dizer: “Olha mãe, eu acho que a gente pode unir uma coisa à outra. A gente consegue ter uma alimentação mais ética com os animais e ao mesmo tempo vai melhorar a tua situação de saúde.” 

Maria –  Eu fiz um exame de colonoscopia antes de fazer a transição pra vegetariana e ali foi detectado pólipos no meu intestino. Já estava num processo inflamatório bem alto. Algumas pessoas olham pra isso e falam: “Faz parte do processo de envelhecimento”. É verdade, mas você pode melhorar o seu processo de envelhecimento. Eu fiz o exame alguns anos depois de ter me tornado vegana e não apareceu mais nenhum pólipo. Tenho certeza que a mudança na alimentação contribuiu com isso. Tem zero chance de voltar? Não sei, só sei que por enquanto  está tudo na paz.

Larissa – A gente tirou primeiro a carne, depois carne de frango e por último fizemos a despedida do peixe. A gente já estava sem comer peixe há um tempo quando fomos passar o fim do ano na praia, em Salinas. Aí vimos um pescador e a mãe disse: “Ai, eu queria tanto comer peixe!”. Ela foi buscar o peixe lá, junto com o pescador, mas eu já não consegui comer. Ela comeu e depois disse: “É, pra mim também não dá mais. Tá diferente.”

Diferente como?

Maria – Foi como se eu tivesse comendo uma coisa que não fosse comida. Não era mais comida. E olha que o bichinho tinha sido pescado ali, estava fresquinho, não era da indústria, não era congelado, era do pescador que morava ali na beira da praia. Imaginei que ia me dar um prazerzão. E foi três vezes pior quando tentei comer ovo novamente.

Larissa: Por que ovo é o que? É pitiú. 

(Aprendi essa palavra maravilhosa quando estive em Belém. “Pitiú” é, pra paraense, o que “catinga” é pra norte-rio-grandense: fedor, mal-cheiro.)

Maria – No início do veganismo eu tinha umas preocupações, achava que podia não estar me nutrindo bem. Então decidi comer um pouco de ovo. A gente tem amigos que tem sítio, tem ovos de galinha ‘feliz’. O ovo veio pra mesa, ovo caipira… Tentei comer e não deu certo mais, não teve condição. E não é porque tenho nojo, não.

Larissa – Aí eu falei pra ela : “É simples, vamos pro nutrólogo e vamos fazer exames com certa frequência.” No começo a gente fez exames de 6 em 6 meses, porque ela estava com medo de ter alguma carência. Depois de um tempo a gente passou a fazer exames uma vez por ano. Todos os médicos olhavam os resultados dos exames e perguntavam se a gente realmente não estava comendo carne. Não conseguiam acreditar que era possível.

Maria – A gente está mostrando que é possível. A gente faz reposição de B12, claro, e reposição de vitamina D, mas eu vejo que todo mundo, incluindo o povo que come carne, faz reposição também.

Larissa – Às vezes eu fico pensando… Se a gente teve que enriquecer a farinha de trigo com ferro e ácido fólico, por que não pode ter uma farinha, um alimento, enriquecido com B12?

(Quando a farinha de trigo passou a ser enriquecida com ácido fólico, não foi visando a população vegetariana/vegana, foi pra atender as necessidades das pessoas que comem carne, mas não comem vegetais suficiente. E vale lembrar que o sal é enriquecido em iodo.)

O que é veganismo pra vocês?

Maria – Eu não vou negar que no início não foi a questão animal que me fez abraçar o veganismo, apesar deu amar os animais. Foi uma questão de saúde. Eu estava num estado de sofrimento muito grande, por causa da doença autoimune, estava inchada e tendo que começar tratamentos mais agressivos. Fui pra uma consulta médica e naquele dia o meu médico estava muito triste porque tinha perdido uma paciente muito jovem por causa de um problema hepático, consequência do uso de corticoide. O corticoide detonou o fígado e o pâncreas dela. Aí eu fiquei olhando aquilo e falei: “Eu não quero isso pra mim”. Eu sei que um dia vou morrer, como todo mundo, mas até lá vou me esforçar pra viver. E pra viver bem. Então o veganismo foi uma porta, apresentada pela minha filha, que se abriu pra mim e me deu a possiblidade de estar aqui hoje, me sentindo bem, ao invés de estar deitada numa cama, com dor, inchada.

Larissa – Pra mim o veganismo é algo plural. É uma maneira de imaginar um horizonte diferente, onde os animais não são mais vistos como inferiores, nem como mercadoria. É ampliar a nossa visão e entender que a gente partilha esse planeta com outros seres vivos, além dos humanos. É solidariedade. E aí eu fui descobrindo mais coisas no caminho, fui aprofundando a minha consciência. E abriram-se muitas possibilidades de encontrar companheiros de luta, amigos. E eu pude ver a saúde da minha mãe melhorar. Então pra mim, o veganismo representa certas coisas muito pessoais e outras mais amplas. 

Veganismo é a vontade de transformar o mundo pra melhor. Porque está insustentável! E ninguém se responsabiliza por isso! Se está insustentável, a gente precisa construir algo sustentável, um lugar onde não só humanos possam viver. Pode ser que a gente não veja tudo se acabando durante a nossa vida, mas tem muita gente por vir. Então veganismo também é solidariedade com as gerações que virão. 

Pique-nique do coletivo VEM

É difícil ser vegana?

Maria – É maravilhoso alguém chegar pra você, com todo o carinho, fazer uma proposta de qualidade de vida melhor e você ter força pra abraçar. Não estou dizendo que é fácil fazer mudanças na sua alimentação depois de décadas com aquela rotina (com produtos animais). Mas é gostoso também! Você descobre que o que parecia ser um sacrifício passou a ser um prazer, uma satisfação. Você tem N possibilidades alimentares com aqueles ingredientes que antes eram olhados como enfeites no prato. 

A manutenção do meu veganismo se dá por vários caminhos. Pela saúde, sim, mas também pelo caminho da delícia. A gente tem uma comida muito gostosa! Eu não sinto falta de nada parecido com carne, nada que lembre carne, nada com formato daquilo… Eu gosto das nossas comidas, gosto da beleza delas, do colorido. As pessoas tem uma ideia muito equivocada do que é a alimentação vegana. Você tem que interagir com o alimento: ele conversa com você e você conversa com ele. Quanto mais tempero natural você colocar, mais gostosa vai ficar a sua comida. Se você cozinhar só no vapor e não colocar um azeite, um salzinho, você vai olhar aquela batata e não vai dar vontade de comer. 

(Eu disse que a mesma coisa era válida sobre a culinária carnista. Pegar um pedaço de músculo de vaca ou um frango e cozinhar na água, sem tempero, não va ser gostoso. Maria respondeu que a galera do churrasco sempre vem com o argumento de que se for carne, “passou sal, botou na brasa, tá bom!” Aí Larissa lembrou que isso também é verdade no caso de vegetais. Afinal é o calor intenso e o defumado do fogo que conferem aquele sabor característico e tão apreciado. E concluiu dizendo: “Não precisa fazer nada pra uma fruta ficar gostosa. Você pega uma manga e ela é perfeita. Nossa comida já vem pronta.”) 

Junto com o veganismo a gente fez uma transição muito bacana que foi abrir mão, no máximo possível, do industrializado, do ultraprocessado. Não somos as veganas que compram não sei que produto ultraprocessado do futuro, do passado ou do presente, sei lá como é que chama esse negócio. Nem vamos usar glutamato monossódico como tempero. Tem sabores maravilhosos nas nossas folhas, nos nossos limões, tem vinagre de maçã, tem tanta coisa boa pra temperar a comida! Também tento comprar do pequeno produtor, do pequeno fabricante, daquela pessoa que está se esforçando pra sustentar a família. Lara tem uns amigos que fazem linguiça artesanal e é tudo de bom. A família toda é vegana.

Larissa – Essa coisa da dificuldade, eu vejo assim. Antes de se tornar vegana a gente estava nadando no sentido da corrente, estava ali com todo mundo, fazendo a mesma coisa. Aí a gente se torna vegana e a sensação que dá é que a gente passa a nadar ao contrário. Porque tudo vem contra a nossa decisão. Vão aparecer muitas dificuldades sociais e as pessoas vão dizer que tu não come nada. Mas, eu como, sim! Posso inclusive compartilhar a minha comida. Mas tem essas dificuldades no comecinho. 

Mas por que eu sou vegana? Tem gente que acha que não é importante ser vegana porque uma pessoa sozinha não faz diferença. Mas eu sei que eu não sou só uma. Eu quero que a pessoa que está pensando em ser vegana e acha que está sozinha olhe pro coletivo, pra essa ruma de gente que está se juntando, e diga “eu também não sou só uma”. O veganismo é um boicote, mas ao mesmo tempo a gente está dizendo pro mundo que dá pra viver de outra maneira. Acho que é uma ferramenta de reeducação. Quando a gente vive de outra maneira, a gente está dizendo: “Olha aqui, é possível!” Mas vivo isso com zero sentimento de superioridade. Não penso: “Nossa, como eu sou evoluída!”. Sou só o exemplo de uma coisa diferente, e as pessoas ao meu redor podem ver isso e se interessar. É assim que mudanças acontecem. É assim que a gente vai construindo coisas melhores.

Como é que a gente destrói o especismo?

Maria – Um dia eu escutei uma fala do pastor Ricardo que fez muito sentido pra mim. Ele disse: “O mal é extremamente audacioso e o bem é tímido.” Então eu acho que o caminho pra combater o especismo é esse: ser audacioso. A gente tem que ser audacioso e se juntar com quem é audacioso pra formar uma audácia maior ainda! 

Quando a gente chega em algum lugar e as pessoas reagem de maneira negativa ao nosso veganismo, quando dizem: “Você não come nada!”, eu respondo: “Eu como, sim, você que não tem pra me oferecer. Se você me convidou, deveria ter se preparado melhor porque uma boa anfitriã recebe bem um e outro.” A gente tem que ser mais afrontosa e mostrar que estamos aqui pra ficar. Às vezes ouço comentários como: “Ah, você pode ser vegana porque tem condição, porque  pode escolher.” Justamente! Aí falam: “Mas e se você estiver na floresta, no meio do mato?” Aí é que eu vou me dar bem! “E se estiver com uma vaca, no meio de uma ilha deserta?” Quais são as chances deu ir parar numa ilha deserta com uma galinha ou com uma vaca? Tem quem diga: “Não vou falar (sobre veganismo) porque não quero deixar as pessoas desconfortáveis.” Eu quero! Quero incomodar, quero desajustar a situação! 

Larissa – Se a gente quer romper com esse sistema especista, se a gente quer romper com o capitalismo, não vai ser sem audácia.

Maria – Então eu acho que é dessa forma que a gente vai colaborar pra destruir o especismo. Precisamos nos juntar com quem pensa assim e formar esse grande bom combate.

Larissa – É um trabalho de formiguinha. A gente destrói o especismo aos poucos, mas ao mesmo tempo sem cessar, sem desistir. Convencendo mais pessoas de que o nosso sistema de produção  é insustentável. Que a maneira como nos relacionamos com a natureza, e com os seres que partilham o mundo com a gente, é insustentável. A gente tem que buscar possibilidades pra fazer crescer o veganismo. Tem uma oportunidade na educação? Surgiu uma oportunidade ali, numa política pública? Quando a gente vê, de repente, o debate antiespecista não é mais invisível, não existe apenas dentro do nosso grupo. Se torna um rio, correndo pra todos os lados.

Como falar da luta antiespecista com a esquerda?

Larissa – Essa é uma das perguntas mais difíceis. A gente tem um grande amigo de esquerda, super politizado, que trabalha na base, viajando esse estado todinho politizando as pessoas, mas que se recusa firmemente a aceitar a importância do veganismo. E ele tem problemas de saúde, uma mudança de alimentação faria tanto bem pra ele. Ele come a nossa comida e gosta, mas sempre faz piadas depois. Hoje a gente já não responde mais, pra não perder a amizade. Mas é uma situação muito difícil.

Maria – Tem duas situações bastante mal resolvidas na minha cabeça e ainda não encontrei respostas pra elas. A primeira é a questão dos grupos de pessoas com doenças autoimunes dos quais faço parte. Elas não se interessam em aprender sobre alimentação vegana. Tem gente que posta todo tipo de tratamento irresponsável. Já me perguntaram por que não conto a minha história nas redes, mas não sei… As pessoas que consomem corticoides, por causa dessas doenças, acham que tomando esses remédios podem comer carne e vai ficar tudo bem. Não é verdade. Eu estava tomando uma carga pesada de corticoides antes de me tornar vegana e um dia comi um filé e tive uma crise séria, inchei muito. E que pensamento é esse, né? Preferir se encher de corticoide do que parar de comer carne. Não faz sentido.

E a outra situação difícil que eu vivo é dentro dos grupos de prática da solidariedade, que distribuem refeições pra pessoas em situação de rua e famílias carentes. Todo mês a gente faz uma lista com os alimentos necessários pra preparar as refeições e sempre pedem muita linguiça, charque, salsicha, muito embutido. Eu falei: “Trocando essas carnes por legumes a gente consegue oferecer duas refeições por semana, ao invés de uma, com o mesmo valor que gastamos por mês. E ainda melhoraria a qualidade das refeições.” Me responderam que as pessoas iriam estranhar uma comida sem carne, que pensariam:  “Eles comem carne, mas não querem nos dar.” Eu fico sem saber o que fazer. O dinheiro ia render mais, alimentar mais pessoas e alimentar melhor…

Larissa – A maneira como eu costumo falar sobre veganismo pra pessoas de esquerda é tentar mostrar que as opressões não ficam pedindo licença uma pra outra pra oprimir. “Ei, agora eu vou oprimir esse grupo aqui, então tu para. Fica quieta no teu canto que agora é a minha vez de oprimir! Vai pro final da fila e espera!” As opressões agem todas ao mesmo tempo. Elas estão batendo junto na gente há muito tempo, então como é que a gente vai bater de volta separado? Nunca encontrei alguém que conseguisse argumentar a favor desse ideia de deixar uma luta pra depois, enquanto focalizamos nas outras, então logo a pessoa leva pro individual e diz: “Mas é difícil ser vegana!” Ou então solta o token do indígena que caça. Eles caçam, certo, mas não são os indígenas que estão causando a ruptura na natureza. Nosso inimigo é outro.

Depois da entrevista fomos tomar o tacacá preparado por elas. Eu estava saltitante com a oportunidade de degustar algo tão emblemático da culinária paraense, mas não sabia bem o que esperar desse prato. Que negócio bom! Tacacá geralmente é servido com camarão, mas não faz falta. Larissa e Maria, além de pessoas lindas, são ótimas cozinheiras e saí da casa delas com vontade de voltar muitas vezes. Ser vizinha delas se tornou um dos meus objetivos na vida. Quero ser amiga, claro, mas amiga E vizinha. Quero essas duas do meu lado na luta, e na mesa. Como decidi visitar Belém novamente no ano que vem, dias atrás  mandei uma mensagem pra Larissa dizendo: “Pode ir esquentando o tacacá que eu tô chegando!”. E ela respondeu: “Vou esquentando o tacacá e guardando muruci pra gente fazer nosso queijo.” Porque Larissa e eu temos um projeto de queijo verdadeiramente decolonial que vai ser sucesso. Aguardem.

Torta de cebola caramelizada com vinagre e figo

Sei que a última receita que postei nesse blog foi uma torta, mas essa aqui não tem nada a ver com aquela lá. E, sendo bem sincera, a verdadeira receita é a cebola caramelizada. Ela dá uma torta saborosa e elegante? Sim, mas se quiser fazer só a cebola e usar como condimento ou pasta pra comer com pão, tens todo o meu apoio. Mais que apoio, incentivo! Tanto que vou parar esse texto por aqui pra você ir direto à receita.

Torta de cebola caramelizada com vinagre e figo (ou passas)

Você pode usar essa cebola caramelizada pra uma infinidade de coisas. Pra rechear uma torta salgada, como fiz aqui (use essa massa ou a que preferir). Como parte de um sanduíche ou pizza. Pra rechear uma empada ou pastel de forno. Ou simplesmente pra passar no pão (como um chutney). Se você tiver a sorte de ter queijo de castanha de caju por perto, os dois casam lindamente. Vou dar as medidas pra fazer recheio suficiente pra uma torta, mas use como um guia pra te dar uma ideia das proporções e adapte pra quantidade que você quiser fazer. 

4-5 cebolas médias (brancas)

3 figos desidratados (ou um punhadinho de uva-passa)

3 colheres de sopa de azeite

1 colher de sopa de vinagre balsâmico (se não tiver, use de vinho)

Um punhadinho de alecrim fresco (ou uma pitada generosa de alecrim seco)

Sal e pimenta preta

Pra massa:

1 caneca de farinha de trigo (200g)

5 colheres de sopa de azeite

6 colheres de sopa de água (leite de soja – sem açúcar- deixa a massa ainda melhor)

Sal

Corte as cebolas ao meio, depois corte cada metade em fatias. Aqueça o azeite em uma panela média e de fundo espesso. Cozinhe a cebola em fogo médio (coberta) até começar a dourar, depois baixe o fogo e cozinhe, sempre coberto, até a cebola começar a caramelizar. Mexa de vez em quando, usando uma colher de pau, pra que tudo cozinhe de maneira uniforme. O açúcar natural das cebolas vai ser liberado aos poucos, fazendo com que elas fiquem macias, doces e escureçam um pouco. Seja paciente: o processo de caramelização vai levar de meia hora a 40 minutos e quanto mais baixo o fogo, melhor (assim a caramelização vai acontecer sem que algumas cebolas queimem no processo). Junte o vinagre (a acidez é importante pra quebrar o doce e realçar o sabor aqui) e os figos secos picados (ou as passas) e deixe cozinhar até o vinagre evaporar. As cebolas estão prontas quando estiverem como na foto abaixo (essa é a torta antes de ir pro forno. As cebolas vão terminar o bronze lá dentro). Desligue o fogo, acrescente o alecrim e tempere com sal e pimenta preta.

Enquanto as cebolas cozinham, prepare a massa. Misture todos os ingredientes com as mãos, até formar uma bola coesa e elástica. Obs: dá pra inverter as proporções de azeite e água (ou leite de soja) pra deixar a massa mais amanteigada e menos elástica. Questão de preferência pessoa. Deixe descansar alguns minutos (fica mais fácil abrir a massa quando ela está relaxada) antes de espalhar numa forma (ou placa). Quando lembro, cubro a forma com um pedaço de papel manteiga (sai mais fácil depois) e abro a massa com as mão, mesmo, mas nada te impede de usar um rolo. A massa deve ficar fina pra assar direitinho (medi aqui em casa: ela tem que ficar com 26 cm de diâmetro – o tamanho do fundo de uma forma de quiche aqui- pra ficar na espessura ideal). 

Espalhe as cebolas caramelizadas sobre a massa, deixando um dedo de borda descoberta, e leve ao forno médio (180 graus), pré-aquecido ou não (às vezes esqueço de pré-aquecer e dá certo do mesmo jeito). Quando as bordas estiverem bem douradas (como na foto abaixo), tá pronta. Deixe esfriar um pouco antes de servir. Rende 4 pedaços/porções. 

Dicas:

-Coloque umas azeitonas pretas na sua torta, depois que sair do forno, pra deixá-la ainda mais especial. Azeitonas pretas e uma pitada de algas em flocos (ou uma folha de nori picada), então, e vira comida de festa.

-Se gostar de mostarda de Dijon, espalhe uma fina camada na massa crua, antes de colocar as cebolas. 

-Como eu disse, essas cebolas são uma delícia só com pão, então se quiser fazer só o recheio, vá em frente. Guarde em um pote de vidro com tampa e coloque na geladeira. Dura vários dias.

Versão com azeitonas pretas (eu tava distraída e deu uma queimada, ops)

Torta salgada de legumes

Há anos eu procurava uma receita de torta salgada que reunisse todos os critérios que fazem, na minha opinião, uma boa torta salgada. Não gosto de tortas que são secas ou com muita farinha de trigo (as “pizzas de liquidificador” da minha infância eram assim). Queria uma torta suculenta e com muito mais legume do que farinha, mas que ao mesmo tempo pudesse ser cortada em pedacinhos bonitos e servida em ocasiões festivas (ou como tira gosto no meu boteco imaginário). 

Tive o prazer de provar algumas tortas assim feitas por duas mulheres veganas do meu Nordeste (um cheiro pra Natália, de Fortaleza, e outro pra Bia, de Salvador). Mas quem disse que eu tenho a receita delas? Natália até me deu, anos atrás, a receita da torta com lentilhas que ela faz, mas eu perdi. E quando pedi a receita de Bia, ela respondeu que tinha feito no olhômetro, com o que tinha achado na cozinha naquele dia. Então tive que inventar minha própria receita. 

Mas preciso dizer que não iniciei essa empreitada sozinha. Parti da receita de torta de legumes de Ruan Félix (cheiro, Ruan!), que ele publicou no blog de dona Juliana Gomes (cheiro, Ju!). Eu não tinha todos os ingredientes da receita de Ruan, mas ela foi fundamental pra me ensinar o pulo do gato em matéria de torta de legumes suculentas sem usar ingredientes de origem animal: batata cozida. É a bruxaria que faz a beleza dessa receita. E, como ele explica, essas tortas em versão animal geralmente levam ovos, óleo/manteiga e queijo, então são bem gordurosas. Por isso a versão vegetal pode (e deve) caprichar na dose de gordura (ele usa uma maionese caseira, eu uso azeite, mas já usei pesto também). Meus testes também me mostraram que a abobrinha é mais que um “legume” na “torta de legumes”, ela garante a textura úmida que eu procurava.

Foram muitos testes pra entender quais ingredientes são essenciais,e quais são enfeites, e chegar nas proporções ideias. Percebi, por exemplo, que pra chegar na textura suculenta que eu queria, o fermento era desnecessário. Fiz uma versão com farinha de grão de bico e outra com lentilha, mas tenho planos de fazer outra receita-base usando leguminosas. Eu queria que essa receita aqui fosse o mais simples possível, com ingredientes acessíveis pro maior número de pessoas. E também que se mantivesse próxima das tortas de legumes mais tradicionais, embora eu ache que a minha versão é ainda melhor. 

Como precisei fazer quase uma dezena de testes antes de chegar na receita abaixo, pude compartilhar essa torta com várias pessoas e posso afirmar que o sucesso é garantido. E repare como essa torta é linda! Vão perguntar se tem queijo, por causa da maneira como ela fica douradinha por cima e do sabor maravilhoso (obra, em partes, da dose caprichada de gordura ). Responda que ela tem algo muito melhor: amor por todos os viventes e valorização dos vegetais.

Torta salgada de legumes

Essa é mais uma fórmula que pode ser usada pra criar várias tortas diferentes, dependendo do “legume saborizante” que você utilizar. A abobrinha da base é importante pra atingir a textura desejada, então ela não pode ser substituída aqui. Se estiver usando um legume de sabor forte no tempero (como azeitona ou tomate seco), aconselho usar apenas 1/2 medida dele e completar com algo de sabor mais suave. Cenoura ralada fica perfeito aqui e ajuda a baratear a receita (nesse caso ficaria 1/2 medida de tomate seco ou azeitona e 1/2 medida de cenoura ralada). Pra fazer uma torta pequena uso uma caneca como medida. Você pode dobrar a receita (mantendo a caneca como medida) pra fazer uma torta maior. Minha receita foi inspirada em grande parte pela receita de torta de legumes de Ruan Félix.

Base (1 medida = 1 copo ou 1 xícara ou 1 caneca):

1 medida de batata cozida e amassada

1 medida de abobrinha ralada com casca (aperte bem na hora de medir)

1 medida de farinha de trigo (branca ou integral)

1/4 medida de óleo

Sal e pimenta preta a gosto

Temperos

1 medida de um legume “saborizante” (tomate seco, palmito, azeitona, milho verde, ervilha, coração de alcachofra, cogumelo, cenoura ralada… pode ser uma mistura de mais de um)

Alho e/ou cebola a gosto (opcional)

Ervas secas ou frescas

Um pouquinho de suco de limão (opcional, mas eu gosto porque a acidez realça o sabor de tudo)

Misture tudo com uma colher de pau ou espátula. Prove e corrija o sal, se necessário. (Se estiver usando alho e cebola, pique esses ingredientes e refogue em um pouco de óleo por alguns minutos antes de acrescentar à massa.) A massa vai parecer seca e você vai se perguntar se não era pra acrescentar algo líquido ali. Confie, vai dar certo. Mas ATENÇÃO: se os ingredientes que você estiver usando pra dar sabor à torta (“legumes saborizantes”) forem bem secos (milho verde e ervilha, por exemplo), ou seja, não tiverem a umidade de uma cenoura ralada ou de corações de alcachofra, use um pouco menos de farinha (3/4 de medida, ao invés de 1 medida cheia) ou um pouco mais de abobrinha ralada pra equilibrar a massa.

Despeje a massa em uma forma untada com um pouco de óleo (não precisa enfarinhar), espalhe com as costas de uma colher e leve ao forno médio (não precisa pre-aquecer) até ficar bem dourado e levemente firme quando você apertar com o dedo. O ideal é que essa torta não fique muito espessa, então escolha uma forma onde caiba tudo em uma camada não muito alta. O tempo de cozimento vai depender do tamanho da sua forma, então fique de olho e não tenha medo de abrir a porta do forno pra checar regularmente e, nesse caso, é melhor assar demais (vai ficar ligeiramente crocante nas bordas) do que de menos.

Importante: deixe esfriar completamente antes de cortar e servir. Se ela ainda estiver morna na hora de cortar, o interior estará cremoso demais e vai ser purê de torta pra todos os lados. Somente depois de totalmente fria é que dá pra cortar pedaços perfeitos.

O que usei na torta da foto, que é grande (8 pedaços bons):

(Base) 2 canecas de batata amassada (4 batatas médias) + 2 canecas de abobrinha ralada (2 abobrinhas médias, apertei bastante pra entrar tudo na caneca) + 2 canecas de farinha de trigo semi-integral + 1/2 caneca de azeite (Temperos) 1 caneca de cenoura ralada (1 cenoura grande) + 1 caneca de ervilha cozida (compro congelada) + alho poró refogado (aproximadamente 1/2 caneca) + alho desidratado (porque estava com preguiça de descascar alho fresco) + um punhadinho de ervas secas (tomilho/manjericão/orégano) + sal e pimenta do reino + suco de limão.

Dicas:

-Tomate seco fica uma delícia aqui, mas se estiver usando tomates conservados no óleo, reduza um pouquinho a quantidade de óleo da receita. Eu não fiz isso e minha torta de tomate seco ficou bem gordurosa (saborosa, mas gordurosa – e ninguém reclamou dos dedos lambuzados de óleo).

-Se tiver pesto na geladeira, use no lugar do óleo. Fiz isso uma vez e ficou sublime, embora a torta fique verde, o que pode causar estranheza em algumas comedoras que torcem o nariz pra verduras.

-Sinta-se à vontade pra temperar sua torta como quiser. Uso páprica doce defumada e fica ótimo. E imagino que uma versão com curry e coentro fique supimpa também.

Redefinir o conceito de fartura

Esse causo aconteceu muitas luas atrás, numa das primeiras visitas que fiz à minha família, que mora no Sertão do RN, depois de ter me tornado vegana. A tia que me hospedou estava aflita: “O que vou fazer pra você almoçar agora?” Expliquei que ela poderia fazer o que fazia sempre pro almoço, eu só não comeria o animal. Minha tia achava que tinha que fazer algo diferente, já que agora eu tinha um “regime” diferente e eu insisti que, por morar fora do Brasil, o que mais me deixaria feliz era comer a comida da nossa terra, da qual sou privada na maior parte do tempo. Ela se pôs a cozinhar, mas não parecia convencida de que seria capaz de me alimentar. Quando sentei na mesa pra almoçar meus olhos viram um banquete. Além do feijão (Macaça -ou “feijão de corda”-, o mais cultivado no Sertão) com arroz, tinha jerimum, batata-doce, salada crua, suco… Enchi meu prato, que estava lindo e colorido, mas antes de dar a primeira garfada minha tia se aproximou de mim e, olhando pra comida que eu estava segurando, soltou essas palavras: “Minha fia não achou nada pra comer, não foi?” 

Ela estava segurando um prato praticamente idêntico ao meu, com uma única diferença: o dela tinha um pedaço de frango. Mas só o prato dela estava cheio. O meu, aos olhos dela, estava vazio. A comida que veio da terra, plantada por gente dali (com exceção do arroz, aqueles vegetais tinham sido cultivados na própria cidade), parecia não existir pra ela. A única “comida” era aquele pedaço de animal, comprado no mercadinho da esquina (criado confinado em algum galpão, morto, despedaçado e embalado não sabemos aonde). 

Contei essa história várias vezes nas palestras que dei Brasil afora porque ela ilustra perfeitamente os fenômenos de desvalorização do alimento da terra (vegetal) e de colonização da nossa alimentação. E quando o alimento vegetal é desvalorizado, a pessoa que o produz também é desvalorizada. Esse processo também faz com que a própria terra perca valor, já que os alimentos que ela produz não são mais vistos como alimentos nobres. Ao mesmo tempo, a supervalorização da carne animal na alimentação, ou produtos derivados de animais, significa que na nossa sociedade, o pecuarista tem muito mais poder e prestígio que a agricultora. E dar mais poder pra pecuária vem com consequências terríveis: mais latifúndio, monocultura, grilagem, conflitos no campo, roubo de terras indígenas, desmatamento, queimadas, exploração animal, exploração de trabalhadoras e trabalhadores em abatedouros e frigoríficos, zoonoses…

Mas eu abri esse texto contando sobre o almoço na casa da minha tia porque há tempos venho ruminando algo e essa história também fala sobre isso. Quando se trata de comida, o que consideramos “fartura”? Essa pergunta se instalou na minha cabeça uns anos atrás, quando eu estava em Natal, visitando a família. Senta que lá vem mais história. 

Quando estou em Natal uma das minhas tarefas na casa da minha mãe é fazer a feira da semana. Vamos no CECAFES (Central de Comercialização da Agricultura Familiar e Economia Solidária) de Natal e conseguimos comprar diretamente de alguns produtores/produtoras rurais. Tem até gente de assentamento da reforma agrária e a oferta de vegetais é maravilhosa. Quando volto da feira e coloco tudo na mesa pra lavar/guardar, sempre sinto um prazer imenso. Quanta fartura! Quanta vida! Quanta delícia! Saber quem plantou e colheu aquilo ali só aumenta a minha alegria.

Fartura pra mim é ver a fruteira cheia de frutas. É abrir o freezer e ver ele cheio de pacotinhos de coco ralado, pronto pra virar leite, e de polpa de jaca e graviola (cortadas e embaladas por mim), prontas pra virar vitamina. E uma ruma de macaxeira descascada, pronta pra ser cozinhada. É ter uma vasilha enorme cheia de hortaliças na geladeira. É ter sempre um quilo de goma na água, pra fazer as tapiocas mais fresquinhas e saborosas. É ter pratos coloridos a cada almoço, com verduras cruas e cozidas, mais uma fruta. É abrir a geladeira e ter pasta de feijão com amendoim e leite de coco fresco. É sentar pra tomar café da manhã e ter vários recheios pra minha tapioca (pasta de feijão, restos de legumes ensopados do almoço), leite de coco pronto pra colocar no meu cuscuz e no meu café e mamão docinho. É poder escolher preparar macaxeira, batata-doce ou cará pro jantar. É comer banana-da-terra cozida no café num dia, tapioca no outro e cuscuz no outro, variando sempre os prazeres. É ter pinha e manga maduras pra lanchar. Mas nem todo mundo na minha família pensa assim.

Um dia estávamos eu e minha irmã caçula, que também é vegana, nos maravilhando diante da fruteira cheia de frutas e da geladeira cheia de verduras, enquanto lanchávamos tapioca. Nesse momento uma das nossas sobrinhas chegou da casa do namorado. Ela abriu a geladeira e fechou quase imediatamente com irritação. Depois fez uma declaração que me lembrou a tia do Sertão e seu comentário sobre o suposto vazio no meu prato lotado de comida vegetal: “Não tem nada pra lanchar aqui!” Olhei surpresa pra minha irmã, que também não estava acreditando no que tinha ouvido. Como assim não tinha nada pra lanchar? Olha nós ali lanchando! “Tem tapioca, tem frutas, tem leite de coco feito…” Mas antes que pudéssemos terminar a lista das delícias que estavam ao alcance da mão, e da boca, dela naquele momento, ela falou: “Por isso que eu gosto de comer na casa do meu namorado. Lá tem muita fartura. Sempre tem iogurte e presunto na geladeira, sempre tem leite condensado e biscoito recheado no armário.” Nesse momento nossa surpresa se tornou indignação. O problema era outro. Mais uma vez, alguém estava me dizendo que comida da terra não era alimento. Comida, mesmo, a que conta, a que tem valor, a que é gostosa, é o que vem dos animais. E dessa vez, como se travava de uma pessoa jovem e que cresceu na cidade, tinha um elemento a mais: comida é o que vem dos animais e é ultraprocessado pela indústria. 

Quando entrevistei Michelle, em Belém, ela falou em como também percebeu que pessoas com práticas especistas (que vêem animais e seus derivados como comida, patrocinando e perpetuando, assim, a exploração animal) muitas vezes têm dificuldade em ver uma fruta ou um punhado de castanha do Pará como um lanche. Concordo com ela que uma das principais missões do veganismo é colocar o vegetal de volta no centro da mesa. E eu iria mais longe. Talvez a maior tarefa do veganismo (não do antiespecismo!*) seja redefinir a noção de fartura. (*A tarefa do antiespecismo é libertar os animais. Emancipação animal é o nosso horizonte.)

A gente sabe que, no Brasil, em um hectare se cria um boi ( 0,97 boi por hectare, pra ser precisa – fonte: Censo Agropecuário de 2017, feito pelo IBGE). Esse boi vai ser abatido em 3 anos e vai “produzir”, em média, 250 kg de carne (248,1kg é o peso médio da carcassa, de acordo com o Beef Report de 2022, feito pela Abiec – Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne).

Nesse mesmo hectare a gente pode plantar comida, no sistema agroflorestal, e colher 50 toneladas de vegetais por ano. Eu tive a oportunidade de visitar alguns assentamentos da reforma agrária onde as assentadas cultivavam a terra com práticas de agroecologia e agrofloresta e pude ver a imensa abundância de vegetais que crescia em espaços onde só poderíamos colocar uma ou duas vacas. É uma fartura de biodiversidade! 

Precisamos redefinir nosso conceito de “terra improdutiva” pra incluir pasto. E precisamos redefinir o nosso conceito de “fartura”. Eu sempre digo que o prato é uma janela pro campo. Sabe o que acontece quando você só consegue ler como “comida” um pedaço de animal, ou um produto feito com o que sai do corpo de animais, muitas vezes ultraprocessado? A monotonia no prato reflete a monocultura do campo (de soja) e a falta de biodiversidade do pasto. É uma imensidão de terra (latifúndio) na mão de poucos e uma imensidão de animais se tornando pouca comida e deixando a terra arrasada. De todos os ângulos que você olhar, é o extremo oposto de fartura. A única abundância aqui é o lucro dos ruralistas e do agro em geral, ganhado em cima da destruição das florestas e das reservas de água, do genocídio indígena, da saúde da terra e das pessoas e da exploração animal. 

“Fartura” é vegetal no prato, agroecologia no campo e floresta de pé. Pra isso precisamos de reforma agrária popular, claro. Está no programa de luta do veganismo popular. Mas tem algo que é ainda mais urgente e pode ser feito por todo mundo, nesse exato momento: valorizar a comida que vem da terra. 

Feijão macaça, jerimum de leite, pirão de maxixe, banana, salada de alface e tomate, macaxeira e batata-doce cozidas

A foto acima foi feita na casa da mesma tia, no Sertão, meses atrás. Quando cheguei pra visitá-la dessa vez, ela me recebeu com uma bacia de maxixe, que tinha pedido pro marido colher na roça do irmão. “Tem maxixe e coco pra você fazer aquele seu pirão”, ela falou animada. Meu pirão de maxixe é tão famoso na família que as primas vieram das outras casas pra degustá-lo com a gente.