Sobre o livro (e um molho)

Mojo

Eu bem que tentei. Passei semanas sentada na frente do computador, bebendo dois litros de chá e um de café por dia, e só parava de encarar a tela quando sentia que meus olhos tinham deixado as órbitas e se instalado confortavelmente na ponta do meu nariz. Enfrentei problemas de logística climática e geográfica, que eu tinha ingenuamente ignorado, e problemas com minha máquina fotográfica, que está defeituosa desde que voltei do Brasil em dezembro. Depois de dar muitas voltas na cozinha, enquanto preparava a décima caneca de chá do dia, tive que me render às evidências: eu não conseguiria terminar meu livro em abril. E nem adiantava acionar o plano B, que era ascender velas na igreja da Natividade, atravessar a praça e dar uma rezadinha na mesquita que fica do outro lado, só pra garantir (acho prudente me pegar com os santos e deuses locais, mesmo não sendo nem cristã nem muçulmana). Então escrevi pra minha editora no Rio, que está grávida de seis meses e realmente não precisava de mais preocupação ou contrariedade, e disse:

1-É inverno aqui, o que significa que muitos dos ingredientes que preciso estão fora de época e não podem ser encontrados no mercado. Desde o final de novembro, por exemplo, que não tem tomate por aqui e eles só aparecerão lá pro final do mês. Ou seja, todos os pratos que levam tomate só poderão ser preparados e fotografados em abril. Manga só tem a partir de junho e assim por diante. Descobri algo que não tinha ideia: um livro de receitas vegetais tem que ser escrito no mínimo durante um ano inteiro, pra poder usar legumes/frutas de cada estação.

2- Além do “problema” das estações, que reduz a quantidade de vegetais disponíveis, tem também o fato de estar escrevendo o livro no Oriente Médio. Alguns dos ingredientes utilizados de maneira abundante no Brasil não existem aqui. Me incomoda não incluir nenhuma receita com macaxeira, maxixe, fubá, e todos esses ingredientes típicos do Nordeste. Então aproveitarei a próxima viagem pro Brasil pra desenvolver e fotografar esse tipo de receita.

3- Minha máquina fotográfica quebrou em novembro e como não tenho grana pra comprar outra estou usando a de Anne. Acontece que ela é fotógrafa e precisa da máquina o tempo todo, logo só posso fotografar os pratos nos raros momentos em que ela está em casa durante o dia (impossível fotografar comida a noite).

Então é isso. O livro Natural e Vegetal só vai sair da minha caverna e ver a luz do dia no final do ano, ou no início do ano que vem.  Essa nova deadline mais realista tirou um peso enorme das minhas costas e já diminuí meu consumo de cafeína. Estou dormindo melhor, tenho mais tempo pra desenvolver o trabalho no campo e meus olhos voltaram pras suas respectivas órbitas. Porém minha máquina continua defeituosa…

Eu, em momento histórico, saindo da caverna do dragão (minha casa). O vizinho da mercearia do lado de casa ficou tão espantado com a aparição que saiu e gritou “É ano do Halley passar, minha filha?”.

Precisava anunciar isso pra vocês. E já que passei por aqui, vou aproveitar pra falar do meu novo molho preferido. Lembram quando postei a receita do meu pesto de coentro e pistache? Esse molho é parecido, mas tem uma personalidade ainda mais forte. A inspiração veio de um molho típico das ilhas Canárias chamado “mojo”. A palavra deriva do Português “molho” e embora eu nunca tenha colocado os pés nessa terra li tanto sobre o tal molho que precisava tentar uma versão em casa.

Como toda comida tradicional, as receitas variam de acordo com a cozinheira, mas os ingredientes constantes são: alho, cominho, coentro e, na versão vermelha (mojo rojo), pimentão. Misturei um pouco de cada receita que vi, adaptei os ingredientes e quantidades pro meu gosto e criei o meu mojo. Na primeira vez que fiz usei um pimentão grande e o sabor ficou perfeito. Quem gosta de coentro e de sabores intensos vai adorar esse molho. Dessa vez meu pimentão era raquítico e o sabor não ficou tão complexo, mas ainda assim ficou uma delícia. A vantagem é que dessa vez a cor ficou verde esmeralda, enquanto a versão com o pimentão grande tinha uma cor turva estranha. Cor “de burro quando foge”, como a gente diz no sertão (se você não sabe que cor tem um burro quando foge você precisa visitar a caatinga).

Enfim, sinto muito por fazer vocês esperarem mais pra ler o livro, mas garanto que vai valer a pena, e espero que vocês experimentem esse molho delicioso. Prometo que ele vai consolar suas papilas.

Meu mojo

Como expliquei acima, usei um pimentão raquítico aqui, por isso a cor tão verde. Com um pimentão grande a cor fica um pouco estranha, mas o sabor fica muito mais interessante. Uso esse molho em sanduíches e com legumes assados. Ele nasceu pra acompanhar couve-flor assada, mas se esse legume não for sua praia tente outros. Nas ilhas Canárias eles adoram comer mojo com batata assada, então fica a dica. O sanduíche da foto é composto de pão de centeio com sementes, mojo e abacate temperado com limão, sal e pimenta do reino. Uma combinação exótica pra maioria, mas que adoro. Porém só tente se for fã de abacate salgado. Uma versão mais simples e acessível é pão, mojo e tomate fresco. Simples e sublime! Mas use sua criatividade e descubra novas utilizações pra esse molho.

6x de coentro (talos e folhas)
1 pimentão vermelho grande (ou dois pequenos)
2 dentes de alho pequenos
1/2x de amêndoas (ou pistaches ou castanhas), de molho por algumas horas
1/3x de azeite
1cc de cominho em pó
Suco de um limão pequeno
Sal e pimenta do reino a gosto

Asse o pimentão em forno alto até ficar macio e com a casca parcialmente carbonizada. Retire a pele do pimentão (veja como assar pimentão e retirar a pele com facilidade no final desse post). Coloque todos os ingredientes no liquidificador (o pimentão assado em pedaços e o suco de limão devem ficar no fundo pra facilitar o trabalho) e triture bem. Você vai precisar parar o motor algumas vezes e mexer bem com uma colher durante o processo. Se o molho ficar muito espesso, acrescente algumas colheres de sopa de água. Se o molho estiver muito líquido, junte mais um pouco de azeite (despeje em fio com o motor do liquidificador ligado pra criar uma emulsão). Prove e corrija o sal, se necessário.  O que não for usado imediatamente pode ser guardado em um recipiente bem fechado na geladeira durante alguns dias. Rende aproximadamente duas xícaras.

13 comentários em “Sobre o livro (e um molho)

  1. Ainda bem que livro de receitas com ingredientes naturais leva um ano inteiro para ser produzido… é sinal que você usa ingredientes de acordo com a época do ano, não usa de artificialismos.
    Quando morava no Japão era comum ver verduras e frutas fora de época – a maioria vinha de outros países, ou eram produzidos em estufas. Isso tem um custo – o sabor não é tão agradável, o preço vai lá para cima e no caso de uso de aquecedores para estufas, há o custo ambiental da queima de combustíveis.

    Boa sorte na produção do livro, e mesmo que demore, é porque você está respeitando o tempo da própria natureza.

    1. Sim, eu tento comprar somente vegetais da estação. Por isso faz meses que não vejo um tomate:-( Acontece de trazer um ou outro legume fora de época, mas enganada, pois ainda não tenho tanta intimidade com o mundo dos hortifruti.

  2. Olá!

    Aguardo ansiosamente o seu livro, pois sei que virá coisa boa por aí. Mas não é caso de me desesperar, visto que, o seu site é maravilhoso e tem me salvado na minha reeducação alimentar 😉 . Tentei comprar o arquivo que você fez via PayPal mas sempre dá um erro lá com a porcaria da minha senha, daí anotei o número da conta do BB, mas sempre qd saio ou esqueço o papel ou esqueço de passar no banco haha! (um hora dessas eu consigo—>dedos cruzados em torcida rs). Sei bem como é tirar esse peso das costas de prazo de livro e o dormir e acordar pensando no tal prazo rs. Desejo todo sucesso do mundo pra você que merece isso d+ da conta :). Quanto à receita, irei testar aqui em casa, pois ainda não consegui fazer o queijo de castanha (não acho aqui a castanha de caju sem ser torrada e salgada…) e estava sentindo falta mesmo de algo para comer com os meus crackers de linhaça, valeu!
    Abraços

    *ah! não sei se já colocou a receita disso por aqui, mas digo que virei fã do leite de aveia (já deve ter experimentado, né?)…uma opção mais barata do que as amêndoa$ rs (esses leites vegetais tem melhorado a minha alimentação consideravelmente)

    1. Acho que esse molho é forte demais pra acompanhar os crackers de linhaça… acho que ele “pede” um acompanhamento de sabor discreto (como couve-flor ou batata), mas se testar diga como ficou.

      Ainda não dominei a receita do leite de aveia, por isso ela ainda não apareceu aqui no blog. Se quiser dividir a sua comigo eu agradeço:-)

  3. Gostei desse molho, vou tentar fazer em casa! E olha, preciso te dizer que tenho acessado muito o blog na hora de cozinhar. Já fiz algumas das suas receitas, só que acabo esquecendo de comentar aqui…rs O que tenho feito mais é patê, pq comer pão com margarina vegetal não dá. Fiz o hummus com pimentão, o creme de feijão branco e alecrim e agora estou nas tentativas de fazer coisas diferentes usando como base o grão de bico e o feijão. Já fiz com azeitonas pretas e ficou muito bom. 🙂

    Acredite, suas dicas aqui são muito valiosas e têm me ajudado muito a equilibrar minha alimentação vegetal e deixá-la mais saborosa. E o mais legal é que quando alguém olha pro meu prato (às vezes levo comida de casa pro trabalho) me perguntam “nossa o que é isso? parece bom”. E eu digo: parece não, É bom. =)

  4. Ah! E quanto ao livro, esse desgaste todo não é saudável pra vc, por isso não se preocupe com o tempo. Tenho certeza de que vc fará um trabalho melhor se puder dormir bem à noite e aproveitar cada estação para fazer as receitas. O resultado será muito mais satisfatório, com certeza.

  5. Ah, fez muito bem de desacelerar! Esperaremos comportados.

    Sobre esse molho, santa Sandra Papacapim! Devia ser canonizada na igreja católica e, bem, não há adoração de santos no Islã, mas pensarei em algo pois a receita veio muito bem a calhar. Acontece que a última cesta de orgânicos que compramos veio cheia de pimentas cambuci e estou achando que vão ficar ótimas nessa receita.

    1. Que é isso, rapaz… não me ruborize! Confesso que nunca tinha ouvido falar da tal pimenta cambuci e tive que perguntar ao pai dos interssados (google). Se ela realmente não arder, como me disse a net, então vai ficar supimpa. Se tiver aquele gostinho de pimenta de cheiro, então, você tirou na loto. Acredito que seu mojo vai ficar escandalosamente bom. Não deixe de me contar como ficou.

  6. Ola,
    Gostei de seu Blog, de seu trabalho e de voce (uam boa pessoa).
    Talves um dia possa lhe ajudar, quem sabe? Me identifico com todas as suas causas.

    Gostaria de fazer uma pergunta. O abacate sempre escurece depois de cortado e aberto. Como posso conserva-lo?
    Em pate?

    Agradecido por tudo,

    Antonioni

    1. Acho que não tem jeito de impedir a oxidação do abacate (se tem, ainda não descobri). A solução é só cortar na hora de comer e regar com um pouco de suco de limão pra se oxidar mais devagarinho (e realçar o sabor).

  7. Que pena que o livro não vai sair agora, mas é bom que ele vai ser ainda melhor e diversificado! E não dá livro de receitas sem tomate! Rsrs!

    Deixa eu perguntar, vc tem receita de bolo pra diabéticos vegano? Vamos fazer uma visita a um local de pessoas especiais e soube que alguns são diabéticos, e a gente sabe como é ruim não ter opção, né?

    1. Aline, apesar de não usar açúcar nos meus bolos (tirando algumas receitas mais antigas que apareceram aqui no blog), eu adoço tudo com frutas secas e acho que elas não são recomendadas aos diabéticos. Sei o quando é ruim não ter opção, mas dessa vez não vou poder te ajudar. Xarope da agave não é ruim pra diabéticos, então se você achar esse ingrediente por aí tente meu bolo de cenoura e coco com 1/2x de agave no lugar do açúcar. Mas nunca testei, então não posso garantir o resultado…

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